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“As estrelas… parecem tão erradas”, pensou Ana, com uma pontada de confusão cruzando sua mente. “Sempre foram assim?”
Seus olhos estavam fixos no céu a alguns minutos, a admiração da vastidão acima misturando-se com pensamentos perdidos. Não se recordava disso, mas as estrelas brilhavam com uma perfeição irreal, como se cada uma estivesse posicionada com precisão matemática. As constelações eram as mesmas que se lembrava, mas havia algo de estranho, algo que a incomodava, mas sem saber como explicar.
“Bom, talvez o tempo no escuro esteja bagunçando minhas memórias”.
Com um suspiro, voltou a caminhar com passos vagarosos. Estando em Pinheiros, Barueri ficava a aproximadamente trinta quilômetros no mundo antigo, uma curta viagem, mas, com a mescla dos mundos, essa distância havia aumentado consideravelmente. Ana não sentia que era um problema, principalmente agora que, com o aumento de mana, o lobo ganhou uma resistência irreal, tornando-se uma fera animada e incansável que corria o dia todo pelas grandes florestas.
— Eu preciso de uma pausa de novo — resmungou Lúcia, correndo para um arbusto próximo. Sem conseguir resistir ao vômito, despejou sua última refeição nas folhas, deixando um cheiro azedo no ar.
— Logo seu corpo deve se adaptar, só precisa aguentar um pouco mais. É melhor que não esteja vomitando tanto quando chegarmos na cidade.
— Certo… — com uma voz rouca, a menina voltou a soltar o viscoso líquido.
Diferente do lobo, que deu apenas uma espreguiçada ao sentir as mudanças do corpo antes de se pôr a desfrutar do doce calor do Sol, Lúcia estava passando por dificuldades. A garota também havia mudado, e ficou horas agachada, dizendo em alto tom como era uma sensação incrível a energia aparentemente infinita que começou a correr em suas veias, mas então veio o primeiro baque.
Lúcia começou a ter fortes contrações que a faziam se dobrar de dor, como se seus músculos atrofiados pelo baixo fluxo de mana do abismo estivessem finalmente começando a ser verdadeiramente usados. Em seguida vieram as dores de cabeça, tão intensas que a impediam de usar sua montaria, já que até um leve balançar era como uma explosão. Por fim, surgiram vômitos constantes após cada refeição, como se seu estômago recusasse tudo que vinha do exterior.
Felizmente, Ana não estava com pressa, então as duas decidiram caminhar lentamente. Apesar da jornada não ser tão agradável quando pensaram que seria, os sintomas aos poucos tornaram-se mais brandos.
— Apesar de tudo isso… — Lúcia disse, enxugando a boca com o dorso da mão. — É incrível sentir essa intensidade de mana no corpo.
Ana acenou, compreendendo parcialmente. A mercenária também sentia a mudança em sua própria percepção, mesmo com a mana ambiente não sendo tão útil para ela.
A caminhada foi em grande parte de descoberta e tranquilidade. As refeições eram momentos animados, onde compartilhavam histórias e risadas. A carne dos animais que caçavam era suculenta e diferente do que estavam acostumadas, um lembrete da abundância da natureza em contraste com a escassez do mundo escuro do subterrâneo. As cores vivas das flores silvestres, as borboletas coloridas que dançavam no ar e o som constante dos riachos criavam um ambiente quase mágico.
Em certas situações, encontravam animais que Lúcia nunca tinha visto, como uma família de cervos anormalmente grandes que pastava tranquilamente em uma enorme clareira no meio da mata. Lúcia tentou se aproximar, mas os animais, com sua agilidade graciosa, desapareceram na floresta antes que pudesse tocá-los.
Quase todas as criaturas nas redondezas de Barueri eram assim, fugindo ao primeiro sinal de perigo. Não haviam monstros realmente fortes, nenhum passava do rank C, e mesmo esses eram poucos. Além disso, não se depararam com encontros hostis por enquanto, parecia que o lobo estava afastando qualquer ameaça.
“Me pergunto se ele é de alguma espécie já catalogada”, seus pensamentos chegaram ao grande ser canino, o qual já era uma parte significativa do grupo.
Muitas criatura renascidas pela mana criavam aparências distorcidas ou grotescas, mas o lobo era estranhamente proporcional, mantendo a majestosidade de sua espécie, algo muito diferente do lobo cinzento que enfrentara em sua primeira batalha no novo mundo.
“Só espero que quando morrer eu esteja por perto, não tive a chance de pegar os cadáveres de seus irmãos”.
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Em meio ao seu suspiro resignado, sua visão captou uma estranha construção se erguendo entre as árvores. Era um pequeno muro de pedra, pouco maior que um homem adulto e quase totalmente coberto por trepadeiras.
Ao se aproximar, curiosa, notou que a estrutura, claramente feita por mãos humanas apesar de sua rusticidade, circundava uma minúscula vila destruída. As casas eram apenas restos, sombras do que um dia foram, e em seu lugar a natureza crescia abundantemente. A atmosfera era tranquila, mas carregava uma forte sensação de melancolia.
— O que acham de dar uma olhada? — sugeriu Ana, logo conduzindo o grupo pelo portão quebrado após ver um aceno de concordância de ambos.
O silêncio da vila destruída era quase reverencial. Os escombros contavam histórias de vidas interrompidas. Pequenos objetos pessoais espalhados pelo chão, como brinquedos e utensílios de cozinha, sugeriam uma saída despreparada, mas a falta de um ambiente totalmente caótico indicava que não foi algo desesperado.
Uma pequena casa um pouco mais preservada, apesar de levemente chamuscada pelas chamas, parecia ter sido um ponto central, talvez uma antiga taverna. Fragmentos de mobília de madeira estavam espalhados, agora tomados por musgo e ervas.
Continuaram a explorar, encontrando um pequeno lago onde a água estava cristalina, refletindo o céu estrelado. Algumas flores exóticas cresciam nas margens, suas cores vibrantes contrastando com o ambiente sombrio da vila destruída.
Havia um charme estranho em tudo aquilo. Ao invés de desconforto o lugar trazia um certo aconchego inesperado, como se estivesse em sincronia com a vitalidade da natureza que o reclamava. O verde vibrante das plantas que cresciam entre as ruínas e o som suave da água corrente criavam um cenário mágico que não se via com tanta frequência.
— Vamos acampar aqui esta noite. Não parece haver nada hostil por perto — disse a mercenária, enquanto começava a preparar um pequeno acampamento. — Você, garoto, vai lá buscar algo para o jantar.
O lobo bufou, mas logo disparou em direção a floresta. Enquanto coletava pequenos galhos, Ana sentia uma estranha sensação de ser observada, mas achou que podia ser apenas sua mente pregando peças após tanto tempo na escuridão. A menina ao seu lado ainda parecia confortável, o que ajudava a aliviar um pouco sua já não tão grande preocupação.
O lobo retornou em um instante com três grandes coelhos nos dentes, depositando-os orgulhosamente aos pés das mulheres. Lúcia sorriu e acariciou a cabeça do animal, e Ana começou a preparar o jantar. A fogueira crepitava suavemente, lançando sombras dançantes nas ruínas ao redor.
Enquanto cozinhava, a sensação de ser observada persistia, mas olhando ao redor não se via nada além das sombras. Mesmo assim, o sentimento não a deixava em paz.
A refeição foi tranquila, com as duas apreciando a simplicidade do momento, as horas se passaram, mas a brisa estava agradável o suficiente para se manterem acordados em um confortável silêncio, com a mente de todos ainda borbulhando com as novidades do primeiro dia na superfície. Nesse instante, Lúcia decidiu caminhar, meio impaciente, até uma estranha flor roxa com pétalas brilhantes chamar sua atenção.
— Olha isso, Ana! — comentou a menina, ajoelhando-se para olhar mais de perto a sutil mudança de cor conforme a luz da lua tocava a planta. — É tão perfeita!
— Não encoste nela — respondeu Ana, sorrindo de forma intrigante ao ver que Lúcia pretendia arrancar do solo o objeto de apreciação. — Creio que não vão ficar felizes se fizer isso.
— Quem não vai ficar feliz?
— Essas malditas flores — sussurrou ela, finalmente percebendo de onde vinha sua inquietação.
A visão das duas navegou por toda a vegetação circundante, era uma vitalidade incomum que não estava presente na floresta do lado de fora dos muros. De qualquer forma, Ana apenas torceu o lábio e fechou os olhos, aproveitando a noite agradável.
Em contraste, Lúcia se afastou rapidamente, olhando ao redor com olhos arregalados após a estranha revelação. As flores pareciam inocentes sob a luz da lua, mas agora, com a sugestão de Ana, havia algo sinistro em sua presença.
— As flores? — repetiu a menina, ainda confusa. — Mas elas são apenas plantas, não podem...
— Elas estão nos observando, mas não sinto hostilidade. Vamos, só deita aqui e finge que não sabe de nada, eu não to com saco pra trocar o lugar do acampamento.
Ouvindo a conversa, o lobo levantou a cabeça, farejando o ar, como se confirmasse a suspeita de Ana. O silêncio que antes parecia tranquilo agora se tornou opressivo para a criança e o animal. Os dois integrantes não conseguiam manter a mesma calma da bizarra mulher deitada a sua frente.
— Você não devia ter me dito isso! Como vou conseguir dormir agora?
— Para de drama… — murmurou a mercenária, virando-se de lado com uma voz sonolenta. — Vamos sair cedo amanhã, antes que decidam que não somos bem-vindas — as palavras foram acompanhadas por um bocejo, e possuíam uma ponta de humor sombrio para assustar ainda mais a garota.
— Idiota! Idiota! Idiota! — Lúcia se sentou em meio a sussurros que mais pareciam gritos, abraçando os próprios joelhos com olhos lacrimejantes, torcendo para a noite acabar o mais rápido possível.
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