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O sol tingia o vasto horizonte com uma paleta de dourado e laranja, enquanto os raios de luz cortavam a névoa do dia cinzento que por algum motivo pairava sobre a cidade. Sem a presença de Ana, o reino, que havia emergido das ruínas com tanto esforço, parecia respirar por si mesmo, uma entidade viva e pulsante. As torres recém-construídas lançavam sombras longas que dançavam suavemente sobre as ruas de pedra, enquanto a cidade despertava para mais um dia de trabalho. A vida fervilhava nas artérias desse estranho povo, mas mesmo com a harmonia aparente, havia uma tensão sutil no ar.
Gabriel caminhava pelas ruas bem organizadas, observando o movimento ao seu redor. O som ritmado dos martelos ecoava das oficinas de construção, misturado ao zumbido distante das forjas e ao canto dos pássaros que passeavam nos telhados das casas. Os mascarados e bestiais passavam por ele e o saudavam com respeito, enquanto o anjo avaliava o progresso. Tudo parecia estar em ordem, mas a pressão de manter tudo funcionando sem Ana estava sempre presente em sua mente.
Ao chegar ao setor de construção, Gabriel avistou a forja monumental. A estrutura, feita de pedra negra e aço reforçado, erguia-se como uma fortaleza em meio ao fervor dos trabalhadores. O calor irradiava de dentro, criando ondulações no ar, enquanto as chamas consumiam vorazmente o combustível, tingindo o ambiente com um brilho alaranjado.
— Bom dia, Jorge — cumprimentou Gabriel, aproximando-se. — Como está o progresso?
O conselheiro bateu suas mãos calejadas no avental, tirando a poeira e o negrume do carvão, e logo virou-se para o anjo. Após um gesto instintivo de limpar o suor inexistente da testa com as costas da mão, deu um sorriso satisfeito, mas seus olhos revelavam a exaustão de quem tem trabalhado sem parar.
— A forja final está quase pronta, Gabriel — respondeu o homem, a voz grave ecoando sobre o ruído constante dos martelos. — Com mais alguns dias de trabalho, poderemos aumentar a produção significativamente. Praticamente dobrar nossa capacidade de criar ferramentas.
Gabriel assentiu, seus olhos percorrendo os detalhes da construção.
— Excelente. Ana ficará satisfeita ao ver isso quando voltar. Apenas precisamos garantir que tudo continue funcionando sem problemas até lá.
O conselheiro robusto assentiu, no entanto sua atenção estava em um pequeno desajuste no movimento de um grupo de trabalhadores.
— Desculpa, mas preciso resolver isso — disse ele, já se afastando para se aproximar de um mascarado e um bestial que estavam prestes a derrubar uma grande viga de ferro. — Ei! Cuidado com isso! Prestem atenção, ela precisa ser posicionada exatamente no centro ou teremos problemas mais tarde!
Com as palavras do engenheiro, os dois construtores congelaram por um momento antes de ajustarem suas posições. Gabriel observou a cena por mais alguns instantes, satisfeito com a eficiência de Jorge ao lidar com a situação. Ele sabia que, sob o comando dele, a expansão continuaria conforme o planejado. Foi então que um vulto vermelho passou a sua frente, e seus olhos sorriram em aprovação.
A garota rubra, Eva, movia-se como um raio por entre as divisões, carregando um grande livro preso às costas, suas páginas preenchidas com uma infinidade de anotações. Cada passo era rápido e preciso, seus olhos brilhando com determinação enquanto verificava cada detalhe, riscando itens da lista e anotando o que ainda faltava. A pequena portadora da máscara de raposa era uma tempestade em forma de pessoa, sua mente constantemente processando múltiplas tarefas ao mesmo tempo.
— Isso seria tão mais fácil se eu tivesse um celular... — murmurou para si mesma, enquanto passava rapidamente pelos trabalhadores, que se afastavam para lhe dar passagem, conscientes de sua urgência.
Ela observava os suprimentos, conferia os mapas e revisava as estratégias de distribuição. Nada escapava aos seus olhos atentos. Era como se o reino fosse um quebra-cabeça gigantesco, e Eva estivesse na responsabilidade de garantir que cada peça estivesse no lugar certo.
Quando finalmente chegou ao quartel, uma visão inusitada a fez parar bruscamente. No campo de treinamento, Alex estava brigando ferozmente com o portador da rabugenta máscara vermelha e segundo conselheiro de guerra.
— Você é um covarde, Fernando! Nunca aceita uma luta! — vociferou Alex, sua voz ecoando pelo campo.
Fernando, por sua vez, mantinha a calma e seu habitual olhar era gélido, como se a raiva de Alex fosse um simples aborrecimento.
— Só um idiota brigaria à toa, especialmente sendo feito de pedra. Já te disse mil vezes que se eu quebrar, já era.
— Só ouço as palavras de um covarde! Covarde! Covarde!
Eva, que já estava à beira do limite, suspirou profundamente e marchou até os dois, com determinação estampada no rosto.
— Isso aqui não é hora nem lugar para brigas estúpidas, Alex! — disse ela, dando um soco leve no braço do guerreiro para chamar sua atenção. — Precisamos nos concentrar, nada pode dar errado. Entendeu?
— Ah, deixa disso — Alex, ainda contrariado, revirou os olhos. — Está tudo caminhando bem até agora, não é?
— Não! Eu tô o dia todo na rua, e você tá só relaxando e tendo discussões ridículas!
Fernando, já tendo visto brigas semelhantes dos dois conselheiros por dias a fio, deu de ombros e, sem mais delongas, voltou ao campo de treinamento, onde os guerreiros repetiam incansavelmente os golpes que Alex havia lhes ensinado.
O som de cada ataque reverberava no ar, um ritmo controlado que ecoava entre os muros sob o olhar vigilante do grande homem. O chão vibrava levemente com os impactos, cada golpe era preciso, cada defesa, impecável. Eles se moviam como uma unidade coesa, cada um complementando o outro, criando um espetáculo de força e técnica.
De repente, uma vibração intensa veio de um pequeno colar que Eva usava em torno do pescoço. Seu rosto empalideceu ao perceber o significado daquela mensagem.
— Não tenho tempo para discutir, Alex — disse a garota, já se afastando com pressa. — A comunicação está uma bagunça, e entregaram os itens nos lugares errados. Eu sabia que algo assim podia acontecer...
Sentindo-se sobrecarregada, ela saiu em disparada em direção ao setor afetado, deixando Alex sozinho com seus pensamentos. Ele a observou se afastar, e uma mistura de culpa e preocupação começou a se instalar dentro dele. Por mais que tentasse manter sua fachada indiferente, a seriedade da situação começava a penetrar sua armadura de bravata.
O guerreiro de máscara demoníaca azul se virou para o campo de treino e caminhou para o lado de Fernando, sentindo uma responsabilidade maior pesar sobre seus ombros.
— Eles são incríveis lutando… verdadeiros monstros — comentou, quebrando o silêncio. Sua voz estava carregada de genuína admiração enquanto observava os mascarados praticando a arte Vajramushti recém aprendida com uma maestria inquestionável.
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— Sem dúvida — respondeu Fernando, assentindo com um sorriso que trazia um toque de melancolia. — Mas essa habilidade não veio fácil. Foram anos de treinamento intenso, forçados a se adaptar rapidamente para sobreviver aos ataques constantes.
Ele fez uma pausa, enquanto observava um mascarado girar sobre si mesmo, desferindo um golpe devastador que parou a poucos milímetros do peito de seu oponente.
— Felizmente, como não precisamos dormir, tivemos tempo de sobra para aperfeiçoar nossas habilidades — continuou Fernando, apertando os punhos ao se lembrar das lutas travadas. — Enfim, nos tornamos mestres em muitas coisas, e mesmo sem mana, temos uma vantagem tática pela falta de fadiga.
Alex assentiu, absorvendo lentamente as palavras de Fernando. Ele sempre soubera que os mascarados eram especiais, mas ouvir sobre o quanto haviam lutado para alcançar aquele nível de excelência aumentava ainda mais seu respeito por eles.
— Me lembram da Ana.
— É bom ouvir isso — respondeu Fernando com um sorriso mais leve.
— Bom, fico feliz que estejam do nosso lado — continuou Alex, cruzando os braços. — Ter vocês como aliados faz toda a diferença em uma batalha prolongada.
— Pode parecer, mas na verdade, batalhas prolongadas não são nosso forte. Com esses corpos rígidos, um golpe bem dado pode ser fatal, então nosso ideal é sempre encerrar as lutas o mais rápido possível — Fernando imitou o gesto de Alex, cruzando os braços e balançando a cabeça de forma resignada. — Por isso somos tão gratos pelo ensino de artes marciais mais avançadas. O domínio absoluto é a única forma segura de enfrentarmos nossos inimigos.
— Entendi… imagino que os caras novos ajudem a reduzir esse risco.
Seus dedos apontaram um grupo de selvagens que, um pouco afastados, tentavam imitar os movimentos dos mascarados. Seus corpos volumosos e desajeitados tornavam os movimentos precisos e elegantes da arte Vajramushti em algo que beirava o cômico. As pernas de um deles se enroscaram em um golpe giratório, resultando em uma queda desastrosa. Outro bestial tentou em vão replicar um soco que parecia ondular, mas o movimento saiu descoordenado, com o pé raspando no chão na troca de postura.
Fernando observou a cena ao lado de Alex, mudando as mãos para trás da cabeça em um gesto despreocupado.
— Eles têm muita vontade, mas falta a finesse — disse a estátua, com uma pitada de humor. — Mas continue olhando…
Apesar da execução ainda desajeitada, havia algo interessante em como continuavam repetindo os movimentos, sem desistir. Com cada repetição, parecia que algo estava mudando, se ajustando. Os movimentos começavam a se tornar mais fluídos, menos forçados, como se a repetição estivesse lentamente se sincronizando com seus dons naturais.
— Está vendo? — continuou o homem da máscara vermelha, inclinando-se levemente para a frente. — Eles nunca vão dominar a técnica, mas têm algo que nós não temos: instinto. O que começa como uma imitação desajeitada pode, eventualmente, se transformar em algo bem perigoso.
Alex assentiu, fascinado com o processo. Ele podia ver o potencial bruto nos bestiais, algo que estava apenas começando a ser moldado.
— É como se a arte marcial estivesse sendo traduzida para uma nova linguagem. As mutações são realmente interessantes…
— Dessa vez é você quem está me lembrando a Ana! — exclamou Fernando, gargalhando alto.
Alex também sorriu, coçando a cabeça de forma envergonhada, quando de repente sentiu um arrepio correr por sua espinha. Ele ouviu um som estranho, quase inaudível, mas que de alguma forma perturbava o ar ao seu redor. Ele franziu a testa, concentrando-se no ruído.
— Você também está ouvindo isso? — perguntou, tenso.
Fernando parou e inclinou a cabeça, escutando atentamente antes de concordar com um aceno.
— Sim. É estranho… algo está fora do lugar.
— Droga… todos vocês, peguem as armas e me sigam!
Sem perder tempo, começou a correr em direção ao estranho evento. Suas botas batiam ritmadamente contra as pedras enquanto passavam pelas ruas da cidade, seguindo o barulho até um canto mais isolado, onde o som parecia mais forte. Após uma corrida apressada, eles se depararam com uma cena bizarra: um grupo de bestiais movia-se de maneira estranha, como se estivesse em transe ou desorientados.
Alex e Fernando se aproximaram, prontos para o combate, com suas armas firmes em suas mãos. Mas, à medida que chegavam mais perto, algo os fez parar. No meio da confusão, perceberam uma melodia se sobressaindo ao barulho, uma música animada e inusitada que parecia se infiltrar em seus ouvidos.
Eles ergueram os olhos e, para sua surpresa, viram Nyx sentada casualmente no topo de uma casa, dedilhando alegremente um alaúde. A música era cativante, e os bestiais, que antes pareciam desordenados, em realidade se balançavam ao som da melodia, seus corpos se movendo com uma fluidez inusitada.
— Estão… dançando? — murmurou Alex, confuso, seu olhar fixo na cena surreal diante dele.
O cheiro de carne grelhada misturava-se no ar, e Alex percebeu que realmente não havia pânico, mas sim uma celebração.
— Fico feliz que vocês vieram festejar também! — gritou Nyx do alto da casa, sua voz ecoando com um toque de diversão, enquanto continuava a tocar a música com entusiasmo.
Alex encarou a Sombra, ainda sem entender completamente a situação. Ele nunca sabia ao certo o que esperar dela.
Percebendo do que se tratava, o pugilista soltou um suspiro profundo e aliviado. O peso da tensão que sentia desde o momento em que Ana deixou a cidade começou a se dissipar, substituída por uma estranha sensação de relaxamento. Com um sorriso que misturava incredulidade e admiração, ele se deixou sentar em um tronco caído, como se aquele pedaço de madeira fosse o único lugar no mundo onde ele poderia descansar naquele momento.
Enquanto se acomodava, algo à sua direita capturou sua atenção. Perto de uma pequena casa de pedra com detalhes em madeira, Emily, a conselheira responsável pelo território, estava de pé, envolta em uma cena de pura serenidade.
Ela brincava com um pequeno pássaro de plumagem vibrante que, curioso, saltitava ao redor dela, intrigado pela máscara que a mulher usava, e Alex não pôde deixar de achar a cena adorável. De repente, a mulher moveu-se com graça, tentando imitar o movimento das asas do pássaro enquanto ria suavemente ao ver ele inclinar a cabeça, confuso com a atuação.
Nesse meio tempo, Jorge, o conselheiro de construção, surgiu do outro lado da praça, carregando grandes pilares de madeira sobre os ombros, como se fossem tão leves quanto gravetos. Seu olhar estava focado em sua tarefa, no entanto, ao chegar à praça e ver a cena que se desenrolava diante dele, parou abruptamente, a carga escorregando ligeiramente de sua posição enquanto ele processava o que via, quando aos poucos começou a rir baixinho.
— Devia ter imaginado que era pra algo assim quando me fez um “pedido urgente”, Nyx.
A Sombra não respondeu, apenas acenou vigorosamente para ele de longe, e logo diversos bestiais foram ajudar Jorge com os pilares, fincando-os no chão e acendendo grandes tochas em suas pontas, dando um ar ainda maior de festival ao local, que aos poucos escurecia.
Ao longe, Gabriel e Eva também se aproximavam a passos lentos, suas expressões refletindo um misto de alívio e compreensão. O anjo mantinha sua postura habitual de calma e liderança, mas havia algo de diferente em seus olhos – um brilho de divertimento contido, como se ele também percebesse a futilidade de seus pensamentos mais sombrios. Eva, ainda carregando o grande livro preso nas costas, balançava a cabeça, um sorriso resignado nos lábios. Era como se ambos tivessem chegado à mesma conclusão ao ver a bagunça à frente: as preocupações que os atormentaram eram, na verdade, infundadas. Este lugar não era um reino onde tudo devesse ser levado tão a sério.
— Tenho que admitir, gosto do espírito da Sombra — murmurou Fernando de repente, com uma gargalhada exageradamente alta logo em seguida.
Alex riu junto, não conseguindo se conter com a infantil atuação de seu companheiro, e teve que admitir que a capacidade de Nyx de transformar o ordinário em algo extraordinário era fantástica. Deixando-se levar pela atmosfera, pegou um copo da amarga cerveja em um dos barris abandonados em um canto da festa e entrou em meio ao povo selvagem para aproveitar o dia de paz.
Enquanto todos se distraiam, um sutil ruído surgia no horizonte. O som se assemelhava a um zumbido agudo e acompanhava uma figura esguia, com asas finas e transparentes, que emergia no alto no céu, diretamente de entre as nuvens.
Vestido em um terno preto impecável, que parecia tão afiado quanto as facas que provavelmente escondia em seus bolsos, o homem carregava uma maleta escura que parecia quase uma extensão de seu próprio corpo.
Seus olhos eram o que mais chamavam a atenção – grandes, redondos, e de um brilho enigmático, como se ele enxergasse algo que ninguém mais podia ver. Olhos de vigarista, astutos e calculistas, sendo ressaltados pelo pequeno óculos, redondo e escuro, que usava quase que pendurado na ponta de seu nariz.
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