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Capítulo 6 - Condenação

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Ana estava perdida em seus pensamentos, contemplando o horizonte distante, enquanto o céu era lentamente tingido pelos últimos raios de um sol poente. Ao seu lado, Gabriel compartilhava do mesmo silêncio, imerso em profunda contemplação.

— Estou satisfeita — sua voz ecoando com a profundidade acumulada de mais de mil anos desde o Grande Vazio. Havia uma calma inusitada em suas palavras, uma calma que contrastava vividamente com a turbulência que ela carregava dentro de si por séculos a fio.

— Satisfeita?

— Sim, acredito que já vivi o suficiente. Pensei que sempre encontraria algo novo para explorar, algo mais para aprender, mas... já não sobrou nada — seus olhos, agora brilhando com lágrimas não derramadas, fixaram-se no além. — Gabriel, eu desejo morrer.

Sua declaração era um sussurro, mas carregava o peso de séculos de existência, cada palavra impregnada com angústia e um anseio profundo por um propósito.

— É uma pena — o olhar do anjo estava perdido na pequena cicatriz em seu dedo, uma marca quase imperceptível deixada pelo gume da faca que Ana havia forjado séculos atrás. — Eu tinha grandes expectativas para você. Parece que é hora de discutirmos um pouco sobre o Grande Vazio.

Levantando-se, ele encarou Ana com olhos que destilavam uma perturbação estranha.

— Você, Ana, é apenas um acidente, um descuido. Você foi esquecida por Deus.

As palavras de Gabriel caíram como pedras no silêncio que se seguiu, pesadas, mas envoltas em uma estranha serenidade, enquanto ambos contemplavam o infinito do horizonte.

— Aaah… então é isso. Sempre questionei se havia um grande propósito destinado a mim, mas vejo agora que sou apenas uma pessoa comum, não uma heroína — O sorriso radiante que compartilhavam era um raio de sol que cortava a sombria verdade, iluminando seus rostos que há tempos não conheciam tal calor. Seu coração leve apesar da gravidade da revelação.

Neste momento, nuvens surpreendentemente brilhantes começaram a se formar acima deles, o cenário mudando tão rapidamente quanto os pensamentos de Gabriel.

"Depois de me ignorar por tanto tempo, eu não esperava que você aparecesse agora… Parece que um certo alguém não quer que eu espalhe suas falhas.", refletiu o anjo, acelerando suas palavras enquanto uma premonição tomava forma em sua mente.

— Eu também sou um ser esquecido; melhor dizer, abandonado.

O céu acima deles, outrora tranquilo, agora se agitava com nuvens que cresciam a um ritmo alarmante.

— Você deve ter ouvido a história de que o mundo foi criado em sete dias. Mas essa narrativa, embora não inteiramente falsa, é imprecisa. O ‘criador’ levou oito dias para completar sua obra.

Ouvindo as palavras de Gabriel, Ana procurou em sua memória qualquer lembrança dessa passagem, confusa com a direção da conversa. Sua atenção se desviou ao notar correntes com uma aura dourada descendo rapidamente do céu, uma visão tão estranha quanto alarmante.

— É um segredo, mas no oitavo dia, Deus criou a morte. — a voz de Gabriel saiu em um sussurro rouco. Seus olhos serenos endureceram, transformando-se em uma frieza glacial. Suas penas, antes puras e imaculadas, tingiam-se de um negro sombrio enquanto ele materializava uma foice sinistra do aparente vazio. — Sou o arrependimento dos céus, um resíduo descartado para vagar solitário pela eternidade.

A lâmina em suas mãos era de um negro profundo, absorvendo a luz ao redor, com veios de um azul gélido correndo por sua superfície, como se fosse forjada das próprias sombras da noite. O cabo, entalhado em madeira escura, era adornado com símbolos arcanos que sussurravam promessas de morte e fim.

Gabriel assumiu uma postura defensiva enquanto correntes celestiais desciam como verdugos implacáveis, cada elo brilhando com uma luz fria e indiferente que negava qualquer misericórdia ou redenção. Sua foice, um contraste de sombras contra o cinza do céu, brilhava com um fulgor ameaçador.

Ele se movia com desespero e graça, uma dança macabra contra os emissários da condenação. As correntes, no entanto, pareciam prever cada um de seus desvios, ajustando suas trajetórias com precisão implacável. Eram as ferramentas do Criador, afinal, projetadas para subjugar até os seres mais poderosos do céu.

O conflito era brutal. Gabriel retalhava o ar com sua foice, desferindo golpes carregados de uma fúria ancestral, mas as correntes retalhavam com uma crueldade implacável, cortando não apenas seu corpo, mas também a própria essência de sua existência. Uma após a outra, as correntes impiedosas atravessavam sua forma etérea, cada impacto uma explosão de dor que pintava suas magníficas penas de um vermelho profano.

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Um som de desafio e desespero misturado saiu de seus lábios enquanto puxava as correntes, tentando libertar-se com um fervor que queimava o ar ao redor. Ana observava, seu coração batendo contra o peito, um testemunho silencioso da batalha desesperada. Por um efêmero momento, a esperança cintilou ao vê-lo rasgar as correntes com uma fúria divina. Mas era apenas um vislumbre passageiro, pois, em resposta, os céus desencadearam uma torrente ainda mais densa e vingativa de correntes, uma afirmação inabalável do destino selado de Gabriel.

Encontrando o olhar de Ana, uma compreensão muda passou entre eles, um adeus silencioso tecido no caos de uma batalha perdida.

— Irônico, não é? A morte está prestes a morrer — lágrimas de sangue escorriam por sua face pálida, mas seus lábios traziam o esboço de um sorriso resignado. — Em minha busca por vingança, eu a tornei uma eterna prisioneira deste mundo. Espero que você possa me perdoar, Ana, por tentar torná-la uma arma em minha guerra pessoal contra aquele que me destinou a esta existência vazia.

Se aproximando da garota com os últimos resquícios de sua força, ele a envolveu num abraço melancólico, seus lábios encontrando os dela em um beijo final, um toque trêmulo e resignado que contrastava com a brutalidade de sua luta, selando a despedida entre dois seres marcados pela eternidade. Neste beijo, ele a marcou, uma promessa de um final e de um novo começo, entregando a ela o presente derradeiro da mortalidade.

— Com isto, te liberto de sua solidão. Que você tenha uma bela morte, minha amiga.

Então, com um violento puxão das correntes celestiais, Gabriel foi arrastado para o céu, deixando para trás uma quietude que pesava como chumbo. Ana, marcada pela mortalidade, permaneceu parada. O vazio em seu peito refletindo a perda do único companheiro que compartilhará sua eternidade.

— Adeus, Gabriel — Ela sussurrou para si mesma, sentindo um misto de raiva e saudade ao perceber que não voltaria a vê-lo.

No mundo onde uma vez viveram lado a lado por eras, só restava uma memória do anjo que, por um breve momento, ousou desafiar o próprio céu.

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— Não há como eu enfrentar isso. Me desculpe por não seguir seu desejo, Gabriel — disse rindo ao se jogar de costas na grama, aceitando seu cômico e trágico destino. Ela, que a pouco havia descoberto que não passava de alguém deixado de lado, não conseguiu nem mesmo sonhar com uma vingança, podendo apenas zombar de si mesma.

Com um suspiro profundo, Ana se levantou., seus olhos ainda fixos no horizonte distante onde Gabriel havia desaparecido.

— Eu não me lembrava que a mortalidade causava tanto incômodo — resmungou para si mesma. No momento em que os lábios de Gabriel tocaram os seus, Ana voltou a sentir o tempo, e, com isso, a sensação de seu corpo envelhecendo.

Não era algo que um humano deveria sentir, mas Ana tinha um nível impensável de controle sobre seu corpo, além de ter vivido anos em um estado imutável. Ela sentia que cada segundo parada definhava seu corpo, cada minuto vivendo modificava suas células, deixando-as mais fortes ou mais fracas dependendo do movimento que fazia.

“Acho que ficarei louca se isso continuar.”

Tentando se acostumar com a nova sensação, Ana iniciou seus passos decididos em direção ao desconhecido, uma sensação de urgência acometia seu ser. As nuvens divinas, imponentes no céu, pareciam observá-la, deixando-a inquieta.

— Não é possível que também venham por mim, certo? — sua mão instintivamente foi para a faca em sua cintura. Ela se preparou para a batalha, mesmo sabendo que resistir seria fútil. Felizmente, contrariando seus pensamentos, apenas uma luz celestial começou a irradiar, sem sinais de novos ataques. Essa nova luz reviveu lembranças de um passado distante.

— É absurdo, mas faz sentido, não tinha como aquilo ser natural.

Ela não se lembrava dos detalhes, seus dias no escritório, seus amigos, o metrô e até mesmo sua família não passavam de um borrão na mente de Ana, mas estranhamente a luz cintilante que ela viu antes do Grande Vazio nunca foi completamente esquecida. Nesse instante, o cosmos era novamente visto no céu.

— Quer saber, foda-se! Eu não ligo mais!

Enquanto gritava seus ressentimentos para o além e se virava para seguir seu caminho, seu corpo foi subitamente levantado no ar, indo em direção aos destroços dos poucos resquícios da cidade em que vivia antes do mundo ficar vazio.

Na verdade, não apenas seu corpo estava flutuando, mas o mundo havia entrado em um enorme Caos: materiais de todos os tipos voavam a velocidades absurdas em direções aparentemente aleatórias, enormes árvores começaram a diminuir enquanto novas começaram a crescer e construções surgiram imponentemente, como se simplesmente estivessem nascendo do chão. De repente, tudo ficou escuro.

— Mas que merda vai acontecer agora? — sussurrou, enquanto perdia o resto de sua consciência.

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Numa manhã comum de São Paulo, sob o cinza indiferente do céu que prenunciava mais um dia, Ana despertou. O som persistente do despertador não era apenas o anúncio do início da manhã, mas o símbolo da repetição incessante de seus dias. Enquanto se levantava, a luz morna do sol filtrada pelas cortinas tocava os objetos espalhados pelo quarto, cada um carregando uma história, uma promessa não cumprida, um sonho adiado. O cheiro do café vindo da cozinha de sua casa, a muito esquecido por Ana, roçava em seu nariz. Ao abrir as cortinas, ruas movimentadas podiam ser vistas.

A humanidade havia voltado.

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