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A Eternidade de Ana [Português, Brasil]
Capítulo 112 - Entre Tons de Vermelho

Capítulo 112 - Entre Tons de Vermelho

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Lúcia estava agachada no chão, concentrada na tarefa ingrata de esfolar uma das bestas que tinham caçado naquele dia. As criaturas eram monstruosas, e como sempre, pareciam ter sido criadas a partir dos pesadelos de alguém. Tinham peles ásperas que brilhavam com um tom acinzentado sob a luz do dia, e suas placas ósseas protuberantes se destacavam como armaduras naturais.

Os olhos das criaturas eram um espetáculo à parte – grandes, opacos e vazios, como se a vida tivesse sido sugada deles mesmo antes da morte. Os dentes, longos e serrilhados, ficavam expostos mesmo com as bocas fechadas, enquanto as garras, afiadas como lâminas de obsidiana, eram retiradas tanto como troféus como para uso futuro em confecção de armas.

Ela deslizava a faca com precisão ao longo do ventre da criatura, abrindo caminho entre blocos grossos. Um odor acre e nauseante se espalhou pelo ar, vindo das feridas abertas, uma mistura de sangue coagulado e carne em decomposição, mas Lúcia não fez uma careta sequer. Suas mãos estavam firmes, os movimentos cuidadosos para não estragar o que precisava. Ao seu lado, uma pilha crescente de pedaços se acumulava. Apesar do trabalho sujo, ela mantinha-se quase impecavelmente limpa, como se o sangue e as entranhas não ousassem tocá-la.

Arthur estava ao lado dela, lutando para manter o ritmo. Seu rosto estava suado e sujo, coberto de vísceras, parecendo uma bagunça em comparação com a garota. Ele arrancou um pedaço de carne da criatura em um corte mal feito, sujando ainda mais as roupas já empapadas de sangue, e fez uma pausa ao ver a expressão de frustração no rosto de sua companheira.

— Não foi exatamente isso que imaginei quando disse que não queria mais ficar o tempo todo na guilda — Lúcia resmungou, empurrando a faca um pouco mais fundo na carcaça para retirar uma parte da espinha do monstro.

Arthur riu, uma risada leve que parecia destoar da atmosfera tensa do acampamento. Ele parecia estar se divertindo, e limpou o suor da testa antes de respondê-la, ação que inevitavelmente deixou um rastro de líquido viscoso nas beiradas de seu cabelo.

— O que esperava? Não é tudo sobre lutar bem. Eles ligam muito para senioridade — ele deu de ombros, sua voz carregada de um humor suave. — Principalmente depois da briga que você teve com a Jasmim, quatro meses como assistente é um castigo pequeno para a forma que falou com a líder.

Lúcia bufou, revirando os olhos ao lembrar do confronto que teve logo após retornar da batalha. A faca em sua mão parou por um momento antes de voltar a se mover com mais força.

— Não vou deixar ela continuar dando ordens ridículas — disse ela em um tom carregado de irritação. — E não vou mais participar de massacres sem sentido.

— Você realmente não tem medo de um ataque dos corrompidos?

— Você é idiota ou o quê? Um ataque de pessoas que vivem em vilas? Que nem mesmo podem usar manifestações?

O jovem ficou em silêncio por um momento, sem saber como responder. Ele abriu a boca, fechou-a novamente, e depois tentou mais uma vez.

— A-alguns são mais perigosos que isso — gaguejou, desviando o olhar. — Nem todos são tão fracos… além disso, seu lobo…

Lúcia apenas balançou a cabeça, cortando outra parte da carcaça com precisão cirúrgica.

— Não quero mais falar sobre isso. Vou lutar quando achar que preciso lutar, e fim de papo.

— Tá bom — Arthur respondeu, resignado. Ele sabia que quando Lúcia tomava uma decisão, não adiantava insistir.

Nesse momento, o som de passos pesados foi ouvido. Os jovens ergueram o olhar e viram um caçador de rank C vindo em direção a eles. Era um homem robusto, com cicatrizes cobrindo seus braços musculosos e um olhar arrogante que lhe dava um ar de superioridade, arrastando consigo mais alguns corpos das bestas. Ele tinha um sorriso debochado nos lábios, o tipo de sorriso que Lúcia aprendeu a detestar nos membros mais veteranos da guilda.

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Os monstros caíram com um baque surdo, levantando uma pequena nuvem de poeira e espalhando um cheiro ainda mais fétido. A menina o encarou com uma expressão irritada, mas ele apenas gargalhou. Sabia que a estranha menina tinha um temperamento forte e parecia se divertir provocando-a.

— Os novatos estão ficando muito ousados ultimamente — disse o homem, a voz carregada de sarcasmo. Ele lançou um olhar rápido para Arthur, que imediatamente se endireitou e levou a mão à testa em uma saudação desajeitada. — Limpem esses também. Não adianta só ficar aí encarando.

O garoto manteve a posição até o caçador desaparecer entre as tendas, antes de voltar a se sentar, apenas para notar dois olhos faiscando de raiva ao seu lado.

— Covarde.

Arthur colocou a cabeça entre os joelhos, cabisbaixo de vergonha.

— Não tem o que fazer… nem todo mundo é talentoso como você, eu preciso ser assim se quero crescer por aqui...

Lúcia soltou um suspiro, mas sua raiva suavizou ligeiramente ao ver a expressão abatida do garoto. Ela sabia que ele estava certo, de certa forma. Não era só sobre coragem ou falta dela; era sobre posição, experiência, e, sim, uma dose de talento. Mas não ia admitir isso tão facilmente. Em vez disso, ela voltou ao trabalho, fincando a faca na carne dura do monstro, fazendo esforço para separar os ossos do braço.

— Não é assim. Só tive mais oportunidades de aprender do que você. Não é questão de talento.

Enquanto ela falava, algumas gotas de sangue espirraram em seu rosto, manchando sua bochecha pálida com um vermelho vivo, coisa que ela não pareceu notar ou se importar.

Arthur a observou por um momento, uma mistura de sentimentos fervilhando dentro dele. Admiração, desconforto... e algo mais, algo que ele não conseguia nomear. Ver Lúcia tão focada e determinada mexia com ele de um jeito estranho. Um desejo de protegê-la, de entendê-la. Em um gesto impulsivo, talvez para afastar aquela sensação estranha, ele se aproximou, sua mão se movendo antes que pudesse pensar. Com o polegar, tentou limpar sua bochecha, mas ao invés de remover acabou deixando um pequeno rastro, quase como uma pincelada de tinta vermelha manchando sua pele.

O toque inesperado foi suave, e Lúcia congelou por um instante. Ela não estava preparada para isso, para a proximidade repentina. Com a mão ainda na bochecha dela, os olhos dos dois se encontraram. Por um momento, o mundo pareceu parar. Os sons do acampamento se tornaram um murmúrio distante, e a única coisa que existia eram aqueles olhares profundos e intensos.

Os olhos da menina se arregalaram ligeiramente, e ela piscou, como se tentasse entender o que estava acontecendo. Era um sentimento novo, estranho, que ela não sabia como lidar. Arthur, por sua vez, parecia igualmente perdido, com a vermelhidão crescendo desde seu pescoço.

Ambos viraram o rosto de uma vez, como se o contato tivesse os queimado. O rubor espalhou-se rapidamente pelas bochechas de Lúcia, e ela não conseguiu evitar morder o lábio inferior. Arthur deu um passo para trás, os olhos arregalados, tropeçando em uma carcaça. Ele caiu de costas no chão, se sujando ainda mais no sangue e nas entranhas espalhadas, e seu dedo ainda pairava no ar, perdido, como se não soubesse onde pousar depois daquele momento.

Lúcia bateu as mãos nas pernas, tentando se recompor. O rubor ainda estava presente, mas agora misturado com uma expressão de surpresa e, talvez, um pouco de diversão, fazendo-a se segurar para não rir. Ela estendeu a mão, tentando não demonstrar sua timidez, mas seu toque foi hesitante, com os dedos tremendo levemente quando se encontraram com os dele.

— Vamos, levanta — disse ela baixinho, evitando olhar diretamente para o escudeiro enquanto o ajudava a ficar de pé. — Temos que terminar isso logo…

Arthur aceitou a ajuda, os dedos dele fechando em torno dos dela com uma firmeza inesperada, apesar da hesitação inicial. O par ficou ali por um instante, um ao lado do outro, como pimentões ligeiramente desconfortáveis. Em meio ao sangue, às carcaças e ao trabalho sujo, havia uma pequena bolha de um silêncio confortável, um que não precisava de palavras, apenas da presença um do outro.

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