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— O que você estava pensando, Lúcia? Você sabe o quanto é perigoso ir tão longe sozinha! — uma mulher de aparência forte com olhos preocupados, falava em um tom firme, mas amoroso.
— Eu... eu só queria ajudar — murmurou a menina, com os olhos cheios de lágrimas enquanto a repreendiam severamente.
— Ajudar? Você quase se matou! — exclamou seu pai, cruzando os braços. — Já perdemos tantas pessoas, não podemos perder você também.
Um tenso silêncio preencheu o ar por um momento, e finalmente se voltaram para Ana, que observava a cena com uma expressão neutra.
— Agradecemos por ter salvo nossa filha — os olhos da mãe de Lúcia brilhavam, cheios de gratidão. — Não sabemos como retribuir.
— Foi sorte eu estar por perto, não se preocupe — respondeu Ana com um aceno de cabeça. — Mas o que é exatamente essa aldeia?
A mulher deu um profundo suspiro, antes de começar a explicar.
— Quando os mundos se mesclaram, tivemos muito azar. Acordamos neste lugar escuro e desolado. Haviam aproximadamente trezentos de nós no início, mas nos primeiros dias, sem conseguir lutar contra os monstros, muitos morreram...
Ana escutava atentamente, enquanto sua visão passava pelas pessoas de aspecto cansado.
— Então um dia, enquanto fugiamos, encontramos a forja da deusa, e o milagre do mar de metal. Estava repleta de armas de todos os tipos. Elas eram muito boas, apesar de não serem especiais, mas para os monstros da região, eram mais do que suficientes. Em grupo, conseguimos revidar e, com isso, começar este pequeno povo.
A mulher parou, vendo o olhar desconfortável de Ana com a menção da divindade.
— Oh, não entenda mal, não somos loucos. Pouco mais de cem de nós restaram vivos, a Deusa do Ferro é o que nos dá forças para acreditar que milagres existem. Pode parecer bobo, mas imaginar que ela olha por nós é o que nos permite viver em paz — continuou a mulher, seu rosto assumindo uma expressão preocupada.
— Ou ao menos era, já que o fluxo de monstros está estranhamente alto ultimamente. Eles não deveriam estar na parte "clara" do mundo escuro, mas sim nas profundezas — acrescentou o pai de Lúcia, franzindo a testa.
“Espero não ter feito merda…”, pensou Ana, torcendo para não ter sido a culpada pela alteração do ecossistema. Lembranças da criatura que havia matado no estranho portão, logo antes de sair da escuridão absoluta, passavam por sua mente.
— Recomendamos que você fique aqui por uns dias, pelo menos até ser mais seguro viajar — disse a mãe de Lúcia, olhando para a mercenária com seriedade.
Ana refletiu sobre a oferta. Ela precisava de um lugar seguro para se recuperar e seguir com suas investigações, então não era um mau negócio.
— Vocês têm instalações médicas que eu possa utilizar? — perguntou, esperançosa.
Os pais de Lúcia riram e balançaram a cabeça.
— Não temos nada tão avançado. Tudo aqui é muito rudimentar no momento.
— Entendo… bom, eu agradeço pelo convite, vou aceitar ficar aqui algumas noites — Ana sentiu uma pontada de decepção, mas com um suspiro resignado, ainda aceitou a sugestão.
Após uma refeição simples, a garota foi levada para uma pequena cabana próxima à onde Lúcia morava com seus pais. O lobo encontrava-se deitado do lado de fora, e embora a infraestrutura fosse rudimentar, a generosidade e a hospitalidade do casal eram evidentes.
O teto do lugar não se diferenciava muito do “céu” do lado de fora, e ao se deitar na cama, um estranho amontoado de feno macio coberto com lençóis improvisados, Ana refletiu sobre tudo o que havia visto. As armas que os aldeões usavam eram, sem dúvida, dela. Era estranho pensar que algo que ela havia feito tanto tempo atrás agora servia como a base da sobrevivência de um grupo de pessoas que nem sequer sabiam quem ela era.
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As horas se passaram em um piscar de olhos, e logo Ana se levantou, decidindo caminhar pela vila. Os olhares incessantes direcionados a ela não eram um incômodo, a garota já estava habituada a plateias. Havia uma mistura de curiosidade e desconfiança nos olhares dos habitantes, e mantinham uma distância respeitosa, mas evidente.
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O vilarejo era um lugar simples, mas havia um estranho calor humano que Ana não sentia há muito tempo. As casas eram construídas em torno de sua antiga forja, feitas de madeira robusta e pedras encontradas na região, e cada construção revelava as cicatrizes de suas lutas diárias pela sobrevivência. Era uma modesta arquitetura que entrava em sintonia com a densa vegetação que cercava a, criando um cenário tanto de beleza quanto de desolação.
Crianças corriam pela praça central, brincando com espadas de madeira e escudos improvisados. O cheiro de comida sendo preparada em fogões a lenha vinha de várias direções, trazendo uma sensação de lar, mesmo em um ambiente tão difícil. Surpreendentemente, o som de pequenos e encantadores pardais era ouvido por toda parte, misturando-se aos murmúrios dos habitantes que cuidavam de suas tarefas diárias.
“Acho que é o lugar mais confortável desde que cheguei ao abismo”, pensou ela, logo antes de notar um grupo de homens que afiavam espadas desgastadas.
Muitas das armas estavam em más condições. As lâminas estavam cegas em um nível que impedia uma recuperação adequada, com entalhes profundos e ferrugem começando a se formar. Intrigada, ela se aproximou, chamando a atenção do grupo, que interrompeu o que estava fazendo para encará-la.
— Isso precisa de uma manutenção mais profunda do que simples afiação — disse a mercenária, franzindo a testa ao examinar mais de perto uma espada que mal parecia capaz de cortar uma maçã.
— E o que isso importa pra você, forasteira? — respondeu um dos homens, encolhendo os ombros com desdém. — Fazemos o melhor que podemos, mas não é o suficiente para algo tão antigo.
Os olhos ferozes mostravam que claramente ela não era bem vinda ali, mas decidiu oferecer sua ajuda como uma forma de retribuir pela hospitalidade que estava recebendo. Além disso, desde que a tensão de ter que se esconder na floresta gradualmente sumiu ao longo da noite, Ana estava entediada.
— Vamos, deixem de drama, coincidentemente me dou muito bem com o ferro, posso fazer isso por vocês.
— E quem disse que queremos sua ajuda? — retrucou outro homem, cruzando os braços. — Não precisamos de uma estranha mexendo nas nossas coisas.
— Esperem! — exclamou Lúcia com as bochechas levemente coradas, uma reação ao esforço de vir correndo de longe ao notar que a situação estava esquentando. — Foi ela quem me salvou ontem à noite. Se não fosse por ela, eu estaria morta.
Os homens se entreolharam, e vendo o olhar sincero da criança, a hostilidade suavizou um pouco. Finalmente, um dos mais velhos deu um passo à frente e assentiu lentamente.
— Se Lúcia confia em você, então acho que podemos dar uma chance. Mas estamos de olho.
Ana sorriu agradecida, acenando com a cabeça. Diferente do que imaginava, permitiram sem muita relutância que usasse a forja, e logo o calor e o cheiro familiar do metal se espalharam pela cidade.
Ela se sentia em casa, como se estivesse voltando a uma parte de si mesma que havia deixado para trás há muito tempo. Seus dedos acariciavam as ferramentas do balcão, as quais estavam estranhamente limpas e organizadas, apesar do tempo dar um aspecto desgastado a cada centímetro.
Ting… ting… ting
O som do martelo batendo no metal ecoou pela monótona vila.
Era um trabalho simples, então seu alto foco não se manteve por tanto tempo, começando a ajustar as espadas quase que no automático. Lúcia observava de longe através de uma janela, curiosa.
— O que acha, Lúcia? — perguntou Ana, levantando uma espada aquecida com a lâmina recém reconstruída.
— É lindo!
Ana apenas sorriu, instigando a garota a se aproximar enquanto mergulhava o brilhante metal em água fria.
— Quer me ajudar? Soube que vocês não tem um ferreiro, não seria incrível se você pudesse ajudar todo mundo se tornando uma?
Os olhos da menina brilharam com entusiasmo, e ela correu para o lado de Ana, ansiosa.
— Eu vou ser igual a deusa?!
— Vai sim — uma gargalhada abafada saiu de seus lábios ao notar o genuíno interesse.
Pegando outra espada, Ana começou a explicação. Lúcia prestava atenção com uma concentração intensa, absorvendo cada palavra e movimento.
— A primeira coisa que você precisa aprender é como segurar o martelo corretamente — disse Ana, demonstrando a posição das mãos. — Não é só bater com força. É sobre precisão e controle.
Lúcia pegou a ferramenta e tentou imitar os movimentos de Ana, seus pequenos braços tremendo com o esforço. Ana corrigiu sua postura, guiando suas mãos com paciência.
— Assim? — perguntou a menina, mudando levemente a pegada.
— Isso aí, assim está melhor. Agora, tente bater no metal de forma constante.
Não demorou muito para a criança começar a pegar o jeito, e Ana sentiu um orgulho inesperado ao ver a garota progredir.
Enquanto trabalhavam juntas, os aldeões começaram a se aproximar, observando com interesse renovado. A desconfiança inicial parecia diminuir, substituída por uma sutil apreciação pelo que estava sendo feito.
O dia passou rapidamente, e à medida que o sol começava a se pôr, a forja estava cheia de armas restauradas e brilhantes. Lúcia estava suada e cansada, mas um sorriso largo iluminava seu rosto.
Ana sorriu e olhou para suas mãos sujas pelo constante manuseio do ferro.
“Talvez esse lugar não seja tão ruim”, pensou, sentindo que havia encontrado um propósito temporário, algo para se manter ocupada enquanto planejava seus próximos passos.
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