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— Minha senh… Ana, por favor, deixe que a gente faça isso.
— Você tem algo melhor para eu fazer, Miguel?
— Você pode verificar algum assunto interno do reino…
— Ah, cala a boca, ainda não existe a porcaria de um reino — resmungou Ana, ofegante enquanto carregava uma pedra maior que si mesma nas costas. — Agora pare de só olhar e comece a limpar o terreno também.
A rainha usava simples roupas sujas de linho, e seu corpo todo estava encharcado de suor,. Os últimos dias foram todos passados assim, movendo destroços de um lado para o outro ao lado de centenas de mascarados.
Inicialmente tentou se conter, Gabriel e Miguel sempre a repreendiam quando começava a fazer trabalhos braçais, diziam não ser a tarefa de uma líder, mas Ana não conseguiu nenhuma forma melhor de eliminar o tédio.
— E você, o que está fazendo aqui? — Ana perguntou sem rodeios, lançando um curioso olhar de soslaio para Nyx, que os observava de um canto preguiçosamente.
O som de materiais sendo arrastados e dos martelos batendo ecoando ao seu redor mal deixavam sua pergunta ser ouvida, e a poeira que se levantava do solo tornava o ar espesso, dificultando a visão, então a sombra se aproximou antes de responder.
— To na mesma que você, não tenho muito o que fazer — respondeu, sua voz carregada de tédio. — Além disso, já cansei daquela falsa Mãe dando ordens para mim. Sendo bem honesta, não gosto de Gabriel.
Ana apenas deu de ombros, sem demonstrar qualquer surpresa ou preocupação.
— Tudo bem, você não é a pior companhia que eu poderia ter — comentou, enquanto seus olhos percorriam os trabalhadores mascarados que limpavam o terreno. — Mas o que acha de ajudar eles ao invés de só ficar aí parada?
— Olhe meus braços finos! Como vou ajudar sendo tão, tão fraca?!
A rainha apenas balançou a cabeça, cansada demais para discutir com a Sombra. Conforme caminhavam, seu olhar se fixou no velho shopping, uma estrutura que já havia visto dias melhores, mas que ainda se erguia com alguma dignidade. Suas torres improvisadas contrastavam com todo o resto da construção, a deixando levemente incomodada.
— Vocês conhecem Paris? — ela perguntou, repentinamente.
Nyx e Miguel trocaram olhares rápidos, antes de chacoalhar a cabeça em negativa, ambos sem muita familiaridade com o local mencionado.
— É uma cidade interessante — Ana começou a explicar. — Foi organizada em distritos bem definidos, cada uma com sua função específica, misturando beleza e praticidade. É isso que espero construir aqui.
Ela fez uma pausa, avaliando o terreno ao redor antes de continuar, sem parar de andar.
— Primeiro, quero que derrubem aquele shopping. Vamos construir um pequeno castelo, dessa vez um de verdade, naquele local. A cidade será construída ao redor desse castelo, com grandes avenidas em todas as direções. Será nossa base, um ponto de referência.
Miguel assentiu, demonstrando um lampejo de aprovação.
— É um planejamento simples, mas acredito que ficará ótimo. Irei repassar os planos para as demais áreas.
— Certo. Faça rascunhos iniciais e pegue ideias com os demais conselheiros, farei uma revisão quando a versão inicial estiver terminada.
— Farei isso agora mesmo! — disse ele, pronto para partir.
— Ok, ok — respondeu Ana, finalmente chegando ao local de despejo. Virando-se de costas, soltou a grande pedra, a qual fez um estrondo e criou rachaduras no asfalto antigo. Ela colocou a mão na cintura e esticou as costas, dando um longo suspiro.
— Qual é o seu objetivo com tudo isso? Vejo o esforço, mas não sinto paixão real — perguntou Nyx, quebrando o silêncio enquanto via o homem sorridente se afastar.
— Você está certa, em parte. Ainda não sei se realmente desejo um reino ou não... mas não custa tentar construir um lugar para viver.
Nyx assentiu levemente, parecendo satisfeita com a resposta.
— Entendi. Também estou cansada de vagar sem rumo. Sua ideia de um lugar fixo não é tão ruim.
Ana esboçou um pequeno sorriso, um gesto que carregava mais cansaço do que alegria.
— Eu não disse que seria um lugar fixo. Mas enfim, seja como for, não nego que há outro objetivo principal por trás de tudo. Quero que este reino seja atrativo, atrativo o suficiente para que a Colecionadora se interesse em dar uma olhada. Mas claro, isso é para o futuro. No momento, estou apenas jogando um jogo de estratégia.
Nyx arqueou uma sobrancelha, intrigada.
— Jogo de estratégia? O que é isso?
— Nada importante — respondeu Ana, desconversando, seu tom denotando um desinteresse em explicar.
De repente, sua expressão mudou, seus olhos se estreitando ao focar em algo no horizonte. Um grande grupo se aproximava rapidamente de onde estava, correndo em uma formação desorganizada.
— Merda — murmurou ela, antes de gritar com uma voz que cortou o ar. — Peguem suas armas!
Sem esperar mais, começou a correr em direção aos limites destruídos da cidade, com Nyx a seguindo de perto. Porém, apesar do impulso inicial, logo seus pés começaram a desacelerar, e a impaciência preencheu seu olhar.
— O que esses filhos da puta estão fazendo aqui?
Na frente do grupo, de forma imponente, um homem com uma cicatriz grotesca que ia do umbigo ao pescoço, corria velozmente, a linha de brutalidade em seu corpo contrastando com a severidade de sua expressão. Vendo que Ana parou, ele desacelerou, encarando ela diretamente. A rainha, por sua vez, permaneceu imóvel, apoiada em sua espada já desembainhada, sem desviar o olhar.
— Como podem ser tão estúpidos? — Ana gritou, a voz anormalmente fria. — Não deixei claro que não era para voltarem aqui, Lucas?
Lucas sustentou o olhar dela, mas havia uma tensão em seus ombros. Ele sabia que as palavras de Ana não eram vazias, e que desobedecê-la podia ter consequências graves. No entanto, algo mais forte que o medo o havia trazido de volta. Apesar de estar tremendo, ele se forçou para se levantar, mantendo a postura ereta dos humanos antigos.
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— Nossa aldeia foi dizimada — começou o bestial. — A maior parte do meu povo foi destruída. Os cem que estão comigo são tudo o que restou. A maioria são mulheres e crianças… poucos guerreiros jovens… velhos sacrificados.
Ana estudou o grupo que se agachava atrás do homem. Eles estavam exaustos, com os rostos marcados pelo medo e a dor de terem perdido tudo. Era evidente que aqueles não eram guerreiros prontos para lutar, mas sim refugiados buscando desesperadamente por segurança.
— E que merda tenho a ver com isso? — perguntou a mercenária, com os olhos semicerrados, avaliando a situação.
Por um momento, pareceu que iria falar mais algo, mas em vez disso, ela virou o rosto, observando o horizonte. A neblina matinal ainda pairava sobre a floresta quando as novas silhuetas surgiram dentre as árvores.
Eram cerca de trezentos guerreiros humanos puros, suas armaduras brilhantes refletindo os muitos raios de sol enquanto se aproximavam em formação, membros de guildas que Ana já havia visto antes. A mercenária voltou a olhar para Lucas, sua expressão endurecendo.
— Então você decidiu trazer sua batalha para a minha cidade? — a irritação era palpável em sua voz.
Lucas murmurou, sua confiança desmoronando diante do olhar da monarca.
— Não tive escolha… não podia deixar o resto do meu povo morrer.
Ana suspirou, pesadamente, e então entregou a grande espada negra para um mascarado qualquer próximo, pegando a própria espada curta que ele utilizava em seu lugar. Ela sabia que a situação estava prestes a se complicar ainda mais.
— Esconda isso em um lugar seguro — ordenou, avaliando a arma substituta em suas mãos, a qual parecia bem afiada, apesar do metal simples.
Os bestiais, percebendo a aproximação das guildas, correram para o meio dos escombros da cidade, deixando apenas Ana, Nyx e Lucas à frente. Mascarados, com armas em punho, começaram a se reunir ao redor, prontos para qualquer sinal de hostilidade. Ana reconheceu Jasmim entre as fileiras inimigas distantes, e o ar ao redor ficou denso com a tensão crescente.
Após uma breve pausa, um representante das guildas, montado em um cavalo, se aproximou, seus olhos vagando lentamente pelas duas cores da estranha máscara da mulher em sua frente. Ele parou a uma distância segura antes de começar a falar em alto tom.
— Em nome do reino de Barueri, exigimos que entreguem as abominações.
Ana permaneceu em silêncio por um momento, seus olhos avaliando a situação ao redor. Ela sentiu Lucas ao seu lado começando a grunhir, prestes a responder de maneira imprudente.
— Quieto — murmurou a rainha ao bestial de forma ríspida. — Você já fez merda demais, não tem voz aqui.
Ela então voltou seu olhar para o representante da guilda.
— Quem deu a você o direito de entrar tão arrogantemente em meu reino?
O homem não se intimidou, respondendo com desdém.
— Não vejo reino nenhum aqui, apenas lixo.
Ana riu, um som curto e sem humor.
— Você não está errado, é lixo. Mas há uma soberana, e há súditos. Portanto, sim, é um reino.
Enquanto ela falava, mais mascarados começaram a se aproximar de todos os cantos, multiplicando-se rapidamente. O representante, que até então mantinha uma postura firme, agora revelava um leve tremor nas mãos, embora tentasse disfarçar mantendo a postura arrogante.
— Não estou aqui para discutir com amaldiçoados — disse ele, a voz antes segura agora vacilando levemente. — Queremos apenas os humanos corrompidos. Entregue-os, e nós partiremos.
Ana fez uma pausa teatral, permitindo que o peso de suas próximas palavras se acumulasse no ar, como uma tempestade prestes a desabar. Lucas, tomado pelo desespero, deu um passo à frente, os olhos implorando por misericórdia.
— Por favor, te peço em nome do meu povo, não nos entregue…
— Não tem sentido sofrer perdas por vocês — respondeu Ana com uma voz cortante, como se fosse óbvio.
— Podemos oferecer lealdade em troca de abrigo. Sei que você é forte... mas também… gentil.
Nyx, incapaz de se conter, deixou escapar uma risada abafada, lembrando-se de como Ana havia gargalhado sozinha por dias ao receber tal elogio no mês anterior. Ana lançou um olhar afiado para a Sombra, mas por trás da máscara, seus lábios também tremiam, lutando para não sorrir.
— Forte e gentil, hein? — Nyx provocou, a ironia escorrendo de cada palavra.
— Não é o que você espera de uma rainha? — retrucou Ana, finalmente deixando um brilho divertido chegar a seus olhos.
Por fim, suspirando, deslizou a mão pelo queixo em um gesto pensativo, o mesmo que fez instantes antes ao considerar as palavras do representante das guildas. Seus olhos se estreitaram ligeiramente, o queixo levantado, enquanto seu olhar calculista percorria os presentes. Sua mente trabalhava rapidamente, interrompida apenas por uma lembrança que surgiu de repente.
— Oh, quase me esqueci — falou Ana, com uma pitada de sarcasmo em sua voz. — Você é uma conselheira, não é? Então, me aconselhe. Devo?
Nyx deu de ombros com um sorriso malicioso ainda mantido nos olhos.
— Por que não? Mande-os trabalhar.
'— Estava pensando o mesmo.
Ela voltou seu olhar para Lucas novamente, balançando a cabeça lentamente com a situação cômica e absurda. Por mais que soubesse que aceitar os bestiais traria problemas, havia algo quase satisfatório em tê-los sob seu controle.
— Curvem-se.
— O quê?
— Se querem ser meu povo, devem se curvar — explicou Ana, seu tom imbuído de uma autoridade que não admitia contestação.
Lucas hesitou, suas pernas tremendo sob o peso da escolha. O orgulho lutava contra a necessidade de sobrevivência, mas a realidade se impunha. Lentamente, com o esforço marcado em cada movimento, ele se ajoelhou diante de Ana. Como um reflexo instintivo, os outros bestiais seguiram seu exemplo, curvando-se em um círculo ao redor da rainha.
Para sua surpresa, Lucas não sentiu a humilhação que esperava. Ao contrário, uma estranha sensação de paz o envolveu, como se ajoelhar diante dela fosse, de alguma forma, a coisa certa a fazer. Ele ficou confuso com a própria submissão, mas não podia negar a naturalidade do ato.
Ana observou a cena com satisfação, seus olhos saboreando a cena cada vez mais caótica.
— Ótimo. É assim que deve ser — sussurrou, assentindo, enquanto voltava a falar com o representante com uma voz penetrante. — Viu isso? Uma reverência ao lixo! Infelizmente não há como entregar os selvagens. Eles são meus agora.
O homem montado ficou vermelho de raiva, sua mão indo instintivamente para a espada em sua cintura. Quando começou a puxá-la da bainha, Ana levantou levemente o pulso, e em um instante, uma lança atravessou a cabeça do grande cavalo, derrubando-o.
O homem, atordoado e apavorado, começou a se levantar de forma desajeitada, mas antes que pudesse fazer qualquer movimento, Ana se aproximou, olhando-o de cima.
— Eu avisei que este é o meu reino. Você não tem permissão para sacar armas diante de meus olhos.
O representante sentiu um arrepio correr por sua espinha, o medo claramente estampado em cada parte de seu rosto. Sem responder, recuou, rapidamente, enquanto os outros membros da guilda percebiam que a situação não era ideal e aos poucos começavam a recuar também.
— Você vai se arrepender disso — murmurou ele, tentando manter um mínimo de dignidade enquanto se retirava.
Ana apenas os observou em silêncio enquanto se afastavam. Depois que desapareceram na floresta, girou o corpo de forma relaxada, colocando a cidade de novo em sua visão.
— Você me trouxe um grande problema — resmungou para o bestial que ainda se mantinha curvado. Instintivamente ela levou a mão à testa, o que teria sido um gesto simples se sua máscara não a impedisse de alcançar as têmporas.
— Sem enrolação, vocês devem trabalhar firme na defesa e reconstrução da cidade. E, claro, seguir as leis e costumes do reino. Desobediência será punida com a morte.
Lucas olhou para os poucos que restaram de sua aldeia, a tensão em seus corpo aumentou. Ele sabia que seguir regras não era o ponto forte dos bestiais, mas realmente não tinham escolha.
— Está tudo bem se eu der uma olhada nestas leis o mais rápido possível? Gostaria de evitar desastres acidentais… — perguntou, desconfortável.
Ana o encarou por um longo momento antes de responder com um tom exasperado.
— Elas não existem. Não ainda. Mas você deve seguí-las.
Lucas piscou, confuso e sem saber ao certo como reagir. Ana, no entanto, já havia perdido o interesse na conversa.
— Enfim, enfim. Escolham um canto e se estabeleçam por lá por enquanto. Saiba que devem conseguir a própria comida e não incomodar ninguém.
Lucas, ainda sem ter certeza do que fazer, começou a se afastar, organizando seu povo conforme as instruções de Ana. No entanto, antes que ele pudesse se retirar completamente, a mulher o chamou novamente.
— A propósito, a partir de agora você faz parte do conselho. Será o chefe da Liga Bestial. Procure Alex e Gabriel pela manhã e dê mais detalhes da situação. O luto fica para mais tarde, precisam colocar a mão na massa para pagar por toda essa dor de cabeça.
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