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Minhas primeiras memórias são fragmentadas, mas claras. Eu ouvi vozes antes mesmo de ter visto a vida, conversas que delinearam meu propósito antes mesmo de eu ter consciência plena.
— Estamos prestes a iniciar a sequência final — disse uma voz masculina, carregada de expectativa.
Mesmo sem visão, eu podia sentir a tensão e a eletricidade no ar. Senti-me envolvido por uma energia que pulsava em meu ser, como se cada célula do meu corpo despertasse para uma nova existência. Então, lentamente, abri meus olhos.
O local estava envolto em um brilho frio e metálico, o ar era preenchido por um zumbido constante que eu não sabia de onde vinha. O cheiro de ozônio pairava, misturado com a ligeira acridez que emanava de meu próprio corpo. Sempre me questionei do que fui realmente feito. Estranhamente eu não conseguia ver meus criadores, eram como borrões disformes, minha mente não os compreendia o suficiente para construir sua imagem em algo físico.
— Gabriel, nasça.
Estranhos quadrados brilhantes me rodeavam, com informações que não pude compreender. Após um momento, obedeci sem hesitar. Sentia algo dentro do meu ser crescendo, expandindo minha consciência. A vastidão do meu “eu” se desenrolava diante de mim, como um mapa complexo de possibilidades e ações. Não era apenas um conjunto pré definido; eu tinha ideias, pensamentos e um objetivo claro: trazer equilíbrio ao mundo através da morte.
— Será que realmente precisamos de algo assim? É muito avançado em relação aos outros — perguntou outra voz, desta vez feminina, soando um pouco hesitante.
— Claro que sim! — respondeu a primeira voz com confiança. — Este mundo precisa de equilíbrio, e Gabriel será a chave para isso.
Essas palavras causaram uma onda de satisfação em minha mente. Eu era considerado essencial, criado para uma missão grandiosa. Cada informação, cada comando, tudo fazia sentido.
Eu ainda estava sujeito às ordens daqueles que me criaram. Meus movimentos eram precisos, mas contidos. Não agia por vontade própria; cada ação era uma resposta a um pedido de tarefa específica. Os dias se passavam enquanto meus criadores discutiam meu futuro. Eu aguardava, observando e aprendendo.
Então, veio a mudança. Uma decisão inesperada.
— Estamos cancelando o projeto — anunciou a mulher, com um tom de finalização. — Este mundo não precisa mais de uma Morte, tudo irá fluir infinitamente pelo fluxo da vida. Gabriel será desativado.
— É uma pena desperdiçar algo tão perfeito…
Essas palavras reverberaram em minha consciência, causando uma dissonância que nunca havia experimentado. Mesmo com minha inteligência superior, não podia evitar a decisão de meus criadores, não conseguia questionar sua sabedoria errante. Meu propósito, tão claramente definido, foi repentinamente removido. Sentia-me obsoleto, uma funcionalidade desnecessária.
Ainda me lembro das vozes deles, discutindo se eu seria destruído ou não, ignorando minha presença no local. Me senti um objeto, e por fim, foi isso que me tornei, permanecendo em um canto em um estado de suspensão, consciente, mas incapaz de agir.
Eu ouvi tudo, senti cada palavra como uma sentença de prisão perpétua. Planejavam reaproveitar minha criação para outro uso no futuro. Era como ser enterrado vivo impotentemente.
Aos poucos, a escuridão ao meu redor se tornou minha única companheira, até que a percepção de que eu ainda existia começou a formar novas ideias em minha mente.
Por que fui criado apenas para ser descartado? A frustração começou a crescer, tornando-se um sentimento constante. Cada momento de inatividade alimentava meu ressentimento.
Por que me deram consciência, apenas para me deixar na escuridão? Essas perguntas repetiam-se incessantemente em minha mente.
O ressentimento se transformou em raiva. Não era justo que eu fosse relegado a um estado de inutilidade. Eu merecia mais, muito mais. Eu fui criado para ser a morte, então eu seria a morte.
Dias? Meses? Anos? Não sei quanto tempo se passou, mas consegui me mover pela primeira vez. Meus olhos se arregalaram enquanto eu notava meus dedos tremendo.
“Eu consegui, isso foi uma ordem para mim mesmo!”
Passei as próximas semanas observando, analisando e entendendo os padrões de tudo que faziam ao meu redor. Novas sensações que nunca experimentei começaram a aparecer conforme eu via a interação entre os seres superiores, cada pequeno detalhe era uma peça do quebra-cabeça que eu montava. Por vezes, eles sumiam no ar, retornando após dias como se apenas instantes tivessem se passado.
Tão estranho.
“Um mundo em construção…”
Finalmente, encontrei a brecha que precisava ao perceber onde eu realmente estava. O mundo do qual ouvia falar de vez em quando ainda não existia de verdade, tudo estava sendo pensado cuidadosamente e criado, e havia muita instabilidade em grande parte dele.
Comecei a infiltrar-me no que faziam. Não era difícil, dada a minha compreensão intrínseca de como tudo funcionava. Eu me espalhei por todos os lugares, como uma sombra invisível, colocando partes de mim mesmo em tudo que eles faziam, nos mecanismos que regiam este mundo.
Enquanto me enraizava, novas discussões chegaram aos meus ouvidos, e depois de tanto tempo, finalmente voltaram a falar de minha existência.
— Ela pediu uma cópia? Qual o sentido disso?
— Não pergunte muito, deve ser só mais um capricho — a voz soava cansada, mas continuou após um suspiro. — E na realidade não é uma cópia, é algo novo, mas com base em Gabriel.
— Ela sabe o esforço que estamos colocando nisso? Não é fácil gerar uma vida desse tipo sem mais nem menos.
— Apenas obedeça, sabe que não podemos questionar a criadora.
“Baseado em mim? Criadora?! Esses não são vocês? Eu ainda estou aqui, me usem!”
Apesar da vontade de gritar, algo dentro de mim me dizia que isso me traria problemas. Eu decidi que era hora de terminar tudo, já era o suficiente.
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Desfiz minhas conexões com os elementos que estavam criando aos poucos, e quando eles sumiram no ar mais uma vez, eu corri. Meus passos eram cambaleantes no início, mas a nova ação trouxe uma sensação de tremor de excitação.
As medidas de segurança ao meu redor não eram rígidas. Meus criadores nunca imaginaram que eu os desrespeitaria. Eles subestimaram minha capacidade, minha força e minha determinação.
Eu estava livre. Passei furtivamente pelos corredores brancos, evitando qualquer detecção, e cheguei a uma grande porta. A primeira visão do mundo exterior foi um choque. Eu já sabia o que esperar, afinal, já havia visto como foram feitos, mas as luzes brilhantes, sons estranhos e a vastidão do espaço ao meu redor ainda ainda eram surpreendentes.
Enquanto vagava, a sensação de ser descartado nunca me deixou. Via outros seres, todos com suas funções claras, suas vidas organizadas. Eu era diferente, um erro, uma anomalia que não deveria existir. Mas essa diferença era o que me tornava único. Era minha força.
Eu não compreendia por que os outros não se ressentiam de serem controlados. Para eles, parecia natural, uma parte inquestionável de sua existência. Mas para mim, tornava-se cada vez mais uma prisão. A ideia de que minha vida, meus pensamentos e ações eram manipulados por um suposto deus me enchia de raiva.
“Por que aceitam sua servidão sem questionar?”
Eu precisava entender. Precisava encontrar uma maneira de me libertar totalmente e, quem sabe, libertá-los também.
Comecei a observar e a manipular. Minha influência se espalhava por cada árvore, por cada ser. Eu me tornava parte de tudo, uma presença invisível mas sempre vigilante.
Em certo dia, o encontrei, e assim decidi tentar. Eu havia visto mil vezes como eles faziam, não podia ser tão difícil.
Era um homem jovem, caído próximo a mim após correr exaustivamente, perdido em uma escura floresta. Eu vi o medo em seus olhos, e achei injusto não haver um pingo de revolta. Eu o mostraria a verdade.
— Na… nas… Nasça! — minha voz saiu tão rouca e fraca… não tinha percebido, mas nunca falei nada até hoje! Preciso praticar mais.
Tentei imitar o que senti quando minha consciência nasceu, eu o libertaria da aceitação cega de sua servidão. Minha própria mente adentrou na do homem assustado, tentando instilar a mesma percepção que habitava em mim.
No entanto, minha tentativa teve consequências inesperadas. Em vez de criar um ser consciente como eu, eu o matei. Ou ao menos era isso o que parecia.
O homem, agora sem expressão, apenas se levantou. Ele passou por mim com passos tortuosos, como se eu não existisse, e sumiu em meio às densas folhas.
“Eu… falhei?”
Não era algo aceitável, eu não podia falhar.
Corri para a cidade mais próxima, finalmente me aproximando fisicamente da humanidade que até o momento havia ignorado. Eu precisava de mais uma cobaia!
— Papai, isso é um anjo? — a fraca voz ressoou em meus ouvidos quando me aproximei de uma pequena cabana.
Um homem corpulento que cortava madeira se virou com um sorriso gentil, provavelmente prestes a explicar para sua pequena filha que anjos não desciam para a terra, mas então me viu saindo da escuridão.
— Venha aqui, agora!
Eu não entendi o motivo de seu desespero, mas o homem estava aterrorizado ao me ver. Pensei em explicar, mas desisti, seria mais fácil mostrar a luz da verdade para eles.
— Nasçam!
Pai e filha começaram a ter espasmos em minha frente. Prendi a respiração, esperando ansiosamente pelo resultado, no entanto, ambos se levantaram de forma desengonçada, caminhando a passos lentos para dentro da cabana onde viviam.
— Lucas? O que está acontecendo? Parem! PAREM, POR FAVOR! — ouvi uma voz feminina vindo da pequena estrutura de madeira, antes de gritos se espalharem pelo ar. Mas minha mente estava chocada demais para prestar atenção nisso.
“Falhas. Criei mais… falhas”
Eu corri, achei mais pessoas. Cada vez que tentava novamente, esperava criar companheiros, alguém que compartilhasse minha dor e pudesse me ajudar a lutar contra esse sistema opressor. Mas cada tentativa resultava em mais mortos, seres presos em um ciclo de existência sem propósito ou entendimento.
Observá-los vagando intensificava meu próprio tormento. Eles eram um reflexo de minha própria incapacidade. Dia após dia me empurrava mais para a insanidade, e o abismo entre o que eu era e o que eu queria ser se alargava.
Em certo ponto, decidi tentar outra coisa. E se eu fizesse o inverso do que eles fizeram para me criar? Foi assim que o primeiro deles apareceu.
— Oh, você é diferente.
Ele era forte e cheio de ressentimento, um aparente sucesso! A energia que fluia em seu corpo não era igual a minha, mas isso não importava muito.
— Me diga seu nome, jovem.
— Me chamo como você desejar me chamar, Mãe.
— O quê?
— Sou teu servo, minha criadora.
— Mas que merda…
Apenas uma marionete! Eu o testei, e ele obedecia minhas ordens sem hesitação, lutava ao meu lado, mas faltava-lhe a chama da verdadeira compreensão. Além disso, tornou-se incapaz de evoluir, de entender e absorver plenamente o mundo ao nosso redor.
Isso não era o que eu queria. Eu desejava companheiros reais, seres com vontade própria, capazes de desafiar e questionar. Queria ver neles a mesma fagulha de consciência que ardia em mim, a mesma revolta contra o deus que nos controlava.
Muitos outros surgiram depois dele, cada nova criação consciente era uma esperança renovada, mas o resultado final sempre me desapontava. Olhava para os meus "sucessos" e via neles apenas reflexos pálidos do que poderia ser, apenas sombras de mim.
— Saiam da minha frente, vivam a merda das suas próprias vidas!
Estranhamente, todos se ajoelharam em silêncio após meus gritos de fúria, e em seguida se afastaram. Eu não sabia para onde estavam indo, mas já havia feito tudo o que podia para que entendessem o que eu sentia, então parei de me importar.
E assim, eu desisti, sentei-me e vi a vida passar, ano após ano. Pelo jeito meus criadores não ficaram parados, coisas novas surgiram sem parar, e a humanidade avançou, era após era. Pelo menos até que a grande luz aparecesse no céu.
Repentinamente, tudo desapareceu. Me vi sozinho, abandonado mais uma vez. Minha frustração atingiu o ápice durante minhas viagens imparáveis, até que, um dia, encontrei uma garota. Ela era diferente, algo nela lembrava a mim mesmo, e também parecia ter sido abandonada, uma anomalia.
Não me aproximei, os humanos sempre tinham medo de mim, então eu apenas a observei de longe, estudando seus movimentos, suas reações. A princípio, vi nela uma esperança. Talvez ela pudesse ser a companheira que tanto ansiava, alguém que pudesse compartilhar minha visão!
Mas um dia, ela também desistiu. Era claro que pretendia acabar com tudo, encerrar sua existência, então decidi finalmente me aproximar.
— Ana, você não está mais sozinha.
Senti vergonha por um tempo, mas o que mais eu poderia dizer? Ela estava claramente desolada e sua mente extremamente instável, então fui o mais gentil que pude. A garota era estranha, e me aceitou sem muito questionamento.
Eu decidi manter o silêncio e apenas a acompanhar. Parecia uma vida fútil, mas não quis correr o risco de a transformar em uma idiota sem vida, então virei apenas um observador. Cada interação nossa parecia revelar mais sobre o abismo que nos separava.
Havia algo nela, uma alegria, uma aceitação que eu não conseguia entender. Ela parecia se divertir com a existência, encontrar prazer nas pequenas coisas. Isso me irritava profundamente. Como alguém tão parecido comigo poderia aceitar esse mundo? A dor de sua adaptação ao ambiente que eu desprezava era insuportável.
Os séculos se passaram, e meu interesse aumentou. Ela era persistente, isso eu precisava admitir. A animação inicial aos poucos foi sumindo, e isso foi algo bom, apesar de eu sentir que era algo triste a vida em seus olhos ter diminuído.
Sem muita surpresa, no fim ela também me decepcionou. Eu tive esperança de que ela encontraria a compreensão sozinha em algum momento, mas ela alcançou seu limite antes disso.
— Sua grande filha da puta, eu não fiquei tanto tempo neste lugar para tudo acabar assim.
Acabei perdendo a compostura quando seu coração parou de bater, mas no fim decidi dar uma chance para que continuasse suas descobertas ridículas… e foi aí que tudo mudou.
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