Tenho que aceitar o risco da perda para poder ter esperança.
Depois que voltaram, Sekhmet viu Layla pensativa, perto da orla da floresta, sentada num grande cupim. Sem perda de tempo tomou aquela direção e parou ao lado da dêmona, também perscrutando o interior escuro da mata.
- Você pode não ver, Sekhmet, mas há muitas trilhas a partir daqui, muitas possibilidades. Mas, se observar com mais força, saberá quais delas são as mais promissoras, para o que você entende ser sua necessidade.
- Um bom pensamento. Por que o tem agora?
- Pensando...
- Burrice... – jogou secamente.
Layla sorriu, o peito se enchendo e se esvaziando bem lentamente.
- Muito provável que sim...
- Você não pode pensar em fazer isso...
- É a única forma de encontrá-lo, de tentar trazê-lo de volta para... para mim – gemeu abatida. – Ele foi me buscar, e se perdeu...
Sekhmet a observou, e vendo aquela dêmona, sua neblina se enrodilhando em torno de si daquela forma tão triste e pensativa, sentiu todo seu sofrimento.
Mas, o que ela pretendia fazer era perigoso demais.
- Não faça isso, minha amiga. Eu te peço...
- Não há como não fazer. E, peço que isso fique só entre nós. Ninguém mais deve se arriscar, nem por mim nem por ele.
- Nisso eu concordo, se você insistir mesmo nisso.
- Já está decidido. Vou partir para o oeste, onde relatos dizem de muitas celas dos demônios dos submundos. Vou me tornar uma guerreira temida por eles, e aí terei a “honra” de ser capturada e torturada.
- Por que não fica apenas vigiando esses lugares, esperando por ele? – sugeriu, mesmo sabendo que ela iria rebater isso com facilidade.
- Você já sabe... Preciso criar uma comoção que suba para as outras dimensões, até que ele sinta, e sentindo, me procure, porque aí ele saberá que é por ele, pelo que ele representa para mim, e que não vou deixa-lo sozinho.
Enjoying the story? Show your support by reading it on the official site.
- E se ele não aparecer? – Sekhmet quase não conseguiu soltar a voz.
- Ah, eu espero que Gadhiel apareça antes que me imolem. Se não aparecer, não tem importância... Tenho que fazer isso.
- Eu posso te monitorar e...
- Sabe que isso não é possível. Gadhiel deve ir apenas pelo motivo dele. Se ele descobrir que é uma armadilha, mesmo que seja apenas para ter com ele, posso perdê-lo de vez. Não vou arriscar isso.
- Eu sei, eu sei... – concordou com a voz baixa, tirando de seu lado um coto de espada, que pôs no colo da amiga.
Layla a observou com atenção, após tirar os olhos da face de Sekhmet.
- É o que penso que é?
- Eu fiquei curiosa com a estória que a Adiene contou, e pedi para que ela me mostrasse, e com ela em mãos procurasse entender sua estória. Ela fez isso, e disse que a estória era muito, muito antiga, mas que ela foi partida numa guerra muito terrível, e que o dono dela foi aprisionado por muitos anjos. Esse pedaço da espada foi deixada abandonada sobre a terra, e nela foi se enterrando, até que tudo ficou esquecido. Tenho certeza de que esta espada era de Damãni, a Guardiã. Ela deve ficar com você – declarou.
- Depois que toquei a pena de Damãni eu me esqueci da possibilidade da espada. Ela conseguiu ao menos um contado com a energia do dono?
- Não, não conseguiu, minha amiga.
- Acha prudente eu levá-la comigo? E se essa espada for realmente dele, a que chamam de maldita Guardiã, e se ela reforçar alguma coisa nele, do guerreiro esquecido que ele era?
- Você está arriscando a sua vida... Já há riscos demais envolvidos... Além disso, ela já está desperto como Damãni, não está?
- É, ele já despertou para Damâni...
Layla levantou o toco da espada com as mãos, e prestou muita atenção nela, se fixando com mais cuidado no pedaço da lâmina fixada no belo punho. Ela deveria ser maravilhosa, naqueles dias. O cabo era algo como se feito de prata, naquele branco leitoso, envolto no tecido com que os anjos fazem suas armaduras; o pomo era como que uma esfera feita num metal azulado, de um azul quase branco, que se reforçava ao sol. E, no pedaço da lâmina, havia um resquício de inscrição, que começava com “Ao UM...”.
Claramente era uma arma angélica. Apesar de tantos e tantos anos, longos demais, sua lâmina parecia nova, impecável, e no pouco da lâmina via-se que conservava seu fio.
- Ela contou onde está o resto da espada?
- Ela disse ter visto que naqueles dias os anjos foram naquele campo e levaram os pedaços. Mas, estranhamente, não conseguiram achar essa parte da espada.
- Entendo... Essa é uma espada de poder, e não quis ser encontrada até o momento certo. Então, se eu não tivesse me decidido, agora me decidiria. Eu devo ir...
- Desejo-lhe sorte, Layla. Mas, tenho que lhe pedir algo: quando for capturada, bem antes de ser torturada, se preserve, oculte uma parcela de seu enorme poder. Se ele não aparecer, salve-se no último momento. Promete? E, se puder, se ainda se lembrar de mim, de nós, nos chama?
Layla sondou os olhos da outra, e não pode deixar de sorrir, com uma aura que não é dada aos demônios.
- Esses dias estão sendo mágicos. Mesmo que eu desaparecesse agora, ah, quanta coisa boa me aconteceu. Obrigada, minha amiga, de todo o meu coração escuro.
- De escuro já sei que ele nada tem. As sombras da floresta são tépidas e gentis, e são protetoras. Essa é você, e sou feliz por poder te chamar de amiga.
Sem poder se conter Layla torceu o tronco e ficou abraçada com ela por um longo tempo, mantendo no rosto um sorriso abandonado e gentil.