Não é o que possuo que me define, apesar de saber o quanto ajuda...
A área que for a adaptada para ser hospital era uma área ampla, que agora parecia ser ainda mais ampla, visto que muitos leitos estavam vazios, com muitos deles já tendo sido até mesmo desmontados, sem previsão de serem necessários novamente. Agora, ali no hospital restavam apenas os casos mais graves.
Mas, naquele dia ele estava lotado novamente, porque ali muitos estavam reunidos para a cerimônia de despedida das pessoas.
Mesmo considerando que já no segundo dia depois que dera entrada no hospital, Gadhiel já se mostrava mais recomposto, ainda levaria um bom tempo para que ele ficasse completamente recuperado.
Gadhiel, com a ajuda de Layla, se sentou no leito e, ignorando as dores e o mal-estar que o acossaram, se forçou a ficar de pé. Com enorme carinho e orgulho ficou observando as pessoas e os seres ali reunidos.
- Pronto, já os viu, e eles te viram. Agora, pelo menos se sente no leito – pediu.
— Eu estou bem, Layla. É o mínimo que posso fazer, me despedir deles sem colocar qualquer mínima tristeza neles – falou. – Eu estou bem, juro. Acho que você está querendo que eu sente porque você não está aguentando o meu peso, não é? – perguntou, jogando um pouquinho mais de peso sobre ela.
- Você não tem jeito. Nem todo machucado assim se aquieta – sorriu amorosa. - Se me amolar, pego você no colo. Aí, quero ver sua cara quando eles vierem se despedir de você – ela ameaçou.
- Ôpa, ôpa... Sem ameaças. Está tudo bem – falou, retirando o peso extra que jogará sobre ela. – Fico pensando, Layla. É tudo muito incrível, não? Tão novos, mas já com tanta capacidade em ajudar, em se doarem por... fé, em seres que nem conhecem bem. Quanta ajuda nos deram, né? – cismou agradecido.
- Sim, eles foram de imensa valia. Sou muito grata a eles. Não deveria, mas sou, por terem te ajudado... – riu, apertando-se mais nele.
Então longas filas de despedida foram se desenrolando, promessa, lágrimas e sorrisos zanzando pelos seres ali reunidos, em harmonia e paz. Devagar o salão foi se esvaziando, quando as pessoas começaram a ser carregadas para baixo pelos anjos, que as tomavam com muito carinho.
Mas um deles exprimiu o desejo de ser o último.
FacaDeFogo inspirou demoradamente, parando à frente deles, os olhos postos nos dois.
- Quem diria, héim? Uma dêmona é um anjo, caído sim, mas ainda um anjo. Foi uma honra estar com vocês. Que batalha monumental, que feitos memoráveis teremos para contar, não? – falou orgulhoso, o peito forte estufado, as tatus um pouquinho rubras, feliz consigo e com os seus, e com os companheiros com os quais lutara.
Gadhiel o observou com carinho.
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- Vocês foram recentemente criados, e já se mostram valorosos. Não era para tomarem gosto pelas guerras e batalhas, mas que bom que a honra foi misturada nisso. Fico feliz por vocês, fico feliz por nós. Obrigado, meu bom amigo.
- Você vê, não é mesmo? Sementes que se plantam, que germinam, e assim há mais sementes lançadas no ar. O que se planta, se colhe.
- Não tinha ideia de que vocês já foram criados velhos e sábios – Layla sorriu.
- Agradeço suas palavras doces, e sua bondade e honradez conosco, Layla. Estou muito orgulhoso e feliz por ter conhecido os dois, por ter conhecido vocês treze – consertou, os olhos pousando nas faces de cada um.
> E quanto a você, Gadhiel, você levou uma surra enorme, você e seu amigo aí – falou sobre Ovandriel, adormecido no leito ao lado. - Então, descansem e se recuperem depressa. Venham nos ver, quando der.
- Será um grande prazer e uma enorme honra – falou Anael, após conferir os sorrisos estampados nos rostos.
- Dansana[1], meus amigos.
- Lenantu – responderam com uma emocionada vênia.
Após a saída das pessoas, que foram descidas para suas terras pelos anjos, e todos os outros se dispersarem, Gadhiel se voltou para Ovandriel, deitado no leito ao lado, parecendo adormecido.
- E ele, Layla, alguma novidade? – perguntou se deixando cair no leito.
Layla, com um sorriso tranquilo abandonado no rosto, sentou-se ao seu lado.
- Nós quase o perdemos, você sabe – contou, tomando a mão dele na sua. - Vai levar um tempo, um tempo maior que o seu, para ele se recuperar.
- Se recuperar totalmente?
- Não... Ele vai ficar com algumas sequelas. Ele foi muito ferido, Gadhiel.
- Um asa?
- Uma das asas foi arrancada, enquanto a outra foi quebrada, muitos ossos danificados, quase triturada, quase extirpada. Um Aruene está de prontidão para a que foi arrancada, e talvez consiga construir uma nova, e a outra está sob cuidados de reconstituição – contou. – Também tem os músculos, principalmente os costais, para serem cuidados intensamente.
- Está certo... Sabe quando ele será despertado?
- Não, eu não. E acho que nem eles sabem direito, ainda. Ele está em estado de inconsciência. Eles estão avaliando.
Gadhiel, que havia girado o tronco para examinar o amigo, endireitou-se novamente, olhando com carinho para a dêmona. Havia uma dor funda em Layla, e uma tristeza que ela não estava conseguindo disfarçar.
Ele a olhou fixamente, e o rosto dela e os olhos que o acariciavam fizeram seu coração crescer, ao mesmo tempo que parecia estar sendo espremido.
Puxou-a para si com intenso carinho. Em paz e em silêncio ficaram abraçados por algum tempo.
- Obrigado, muito obrigado, Layla – disse ele por fim. - Eu sinto muito pela sua dor. Eu tinha que tentar, você sabe – sussurrou pesaroso.
- Eu sei, meu querido Gadhiel. Eu sei. Mas...
Gadhiel saiu do abraço, os olhos perdidos nos olhos dela, que não conseguia terminar a frase. Dos olhos desciam lágrimas de um cinza brilhante, lindas de se ver. Talvez fosse aquele rosto que amava, pensou sobre as lágrimas; talvez fosse por elas estarem ligadas com aquele coração imenso que nunca pensara existir, que seu coração estava pulsando mais forte. Como poderia dizer para ela tudo o que sentia?
Então trouxe para si toda a tranquilidade e paz possíveis, e abriu sua mente que, com grande suavidade, tocou a dela. Abraçando-a novamente fez suas asas se abrirem, postando-as como um arco na direção dela.
Layla sentiu todos seus músculos se alterarem e uma imensidão se abrir. Então esticou suas asas de sombras com grande carinho e se ligou com as pontas das asas dele, enquanto tomava entre as mãos o rosto de Gadhiel.
Ovandriel tentou, mais tarde, dizer sobre o que vira em sonhos. Ele contou que sabia que estava num limbo quando sentiu uma energia nunca sentida antes, ao seu lado. Então, como se não pudesse resistir, lentamente se aproximou do lugar onde aquela energia estava mais forte, e viu dois seres de luz iluminando o mundo.
Admirado, se deixou afundar naquela visão, perdido, observando, até que tudo voltou a ficar enevoado enquanto adormecia novamente.
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[1] Sobre os diversos cumprimentos, vide ANEXO, ao final deste livro.