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SAUDADE

Vou sentir muito a sua falta.

I

A demiana Azaniel embainhou a espada, o semblante distante e pensativo.

Devagar pousou sobre o imenso platô repleto de corpos e de anjos que cuidavam dos que não estavam mortos, recolhendo as imensas asas às costas. Não se acostumaria com isso, bem sabia, e era bom que fosse assim. Ali os corpos em suas armaduras, denunciadas pelo brilho embaçado dos metais, caídos, abandonados como carcaças. A grama estava verde, viva, bem diferente dos corpos caídos. Alguns segundos atrás estavam vivos, e agora, ali, sem nada que os animasse. Ali só corpos, grama e dor, e uma solidão que nem mesmo os trovões e relâmpagos conseguiam aplacar.

Como se carregasse um peso grande demais caminhou entre os corpos, que lentamente se desfaziam sob a penumbra do dia molhado e pesado. Olhou para o alto, para a imensa nuvem escura que ia de horizonte a horizonte. Suspirou fundo, os olhos se perdendo novamente nos corpos abandonados. Com lentidão levantou um braço e abriu as nuvens. O sol desceu à terra e tocou todo o platô.

- Amigos... Que se desfaçam sob a luz. Escolhas, fruto do que somos...

Então se voltou para uma pequena ravina, e viu vários vigilantes buscando salvar os seus que podiam ainda ser salvos.

Num impulso silencioso a demiana subiu alguns metros no ar ferido.

- Fizemos uma luta honrada e de valor. A vitória será nossa – Ele falava para os vigilantes que rondavam entre os corpos, que já começavam a desaparecer.

- Não é bem assim, e você sabe... – ele ouviu às suas costas.

Lúcien se virou e encarou Azaniel, que tocava o solo à sua frente. Seu coração palpitou suave e pesado. Ela estava linda em sua armadura, ele suspirou. Ela era alta, morena, o corpo esguio e ágil, os cabelos longos amarrados em rabo de cavalo, os olhos brilhantes e vivazes. Como gostaria que fosse um pesadelo, do qual iria acordar e sorrir para ela, que estaria ao seu lado, presa num sorriso adormecido.

Com um movimento impediu que os seus a atacassem, como viu que ela também impedia que os anjos que desciam ao seu lado viessem contra ele.

- Vocês escolheram a guerra, como nós escolhemos.

- E o que escolhemos? – perguntou, os braços varrendo com pesar o platô.

- Seguir a vontade do PAI, ou não...

- Vontade do PAI... Querida Azaniel, não O ouvimos declarar sua vontade. Alguns disseram tê-lo ouvido, ou tê-lo entendido em sinais duvidosos. Porém, é certo que ELE não manifestou sua vontade por si mesmo. Nós não O ouvimos se declarar.

- Por certo a vontade DELE não seria a de destruir parte de sua criação.

Lúcien sondou o largo espaço, e conferiu os pequenos corpos dos homens que não iriam se desfazer com naturalidade.

- Esses bonecos surgiram como que por acaso – falou, desfazendo seus corpos através de sua vontade.

Então viu alguns anjos descendo e recolhendo alguns corpos de homens que ele não conseguira desfazer, porque não estavam mortos ainda.

- Nosso PAI age assim, você bem sabe – Azaniel sorriu. - E são maravilhosos esses humanos, não são?

Azaniel ficou em silêncio, os olhos conferindo que poucos corpos ainda permaneciam, se desfazendo com lentidão.

Em silêncio ficaram ambos, até que o último se desfez como névoa, deixando o platô limpo e vazio.

Lúcien levantou os olhos para o exército de anjos, brilhantes em suas armaduras, e depois encarou Azaniel. Virou a cabeça levemente para o lado mais ensombreado, conferindo que os seus irmãos se postavam em guarda. Eram como duas muralhas, uma indiferente à outra.

- Não nasceram puros, não nasceram cientes – ele disse, sem esperança de que ela quisesse ouvi-lo. – Eles têm consciência apenas de que estão vivos, mas sem entender o que são. E vão caminhar, vão procurar, tentando entender tudo o que está ao redor, apenas na procura de saber quem são. E assim, nessa procura, vão corromper tudo em que tocarem. Eles são frágeis, são fracos, são desprezíveis. Sem utilidade para a criação.

- Que bom que eles anseiam pelo conhecimento, não acha?

- Não, não acho... Eles vão destruir e incinerar tudo o que tocarem, nessa busca sem fim. Devemos destruí-los. Assim, preservaremos esse lugar criado.

- Preservar... Terras e montanhas, e vida rudimentar e selvagem? Isso, esse paraíso também foi feito para eles. Eles são consciências do pai, elas vivem neles. Eles sabem amar, e sorrir e se enfurecer. Eles sabem cuidar e chorar a ausência. Eles olham para cima e sentem saudades... Saudades, fé... Eles amam... Eles não serão destruídos...

- Então nos ajude... Então que não sejam destruídos, mas que sejam modificados então. Não deixa de ser uma esperança e...

- Mais nefilins? – sorriu Azaniel. – Conspurcação...

- Ele não os criou tal como a nós, Azaniel – falou com a voz mais endurecida. – Eles surgiram do que foi criado. Não houve intenção...

- Não entende, Lúcien? Nosso pai age na criação, não somente para que ela busque evoluir, mas para que nós também evoluamos.

- Eu amei você, Azaniel, e você se posta contra mim...

- Eu ainda amo você, Lúcien. No entanto, não posso permitir que vá em frente, você sabe...

Com um suspiro Lúcien abandonou sua forma de sombras e se fez na forma dahen, que tão bem Azaniel conhecia. Era o último toque de esperança.

- Então não me ama como diz... – falou tomando de sua espada, que sacou com bastante lentidão.

- Quem ama não impõe condições – ela sorriu com amargor. – Mas, amo mais a ELE e a mim. Não vou permitir que faça o que vem em seu coração – falou, a espada saindo pesada da bainha.

As espadas brilharam quando a intenção ficou clara. Azaniel dobrou o corpo, a força intensa na espada, que foi bloqueada. Lúcien dobrou os joelhos, a espada bloqueando a vontade da demiana.

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Num movimento a deixou escorregar, enquanto girava sobre o joelho. Azaniel saltou para trás, escapando por pouco da espada de fogo.

Lúcien saltou, as asas abertas um mínimo. Azaniel desviou mais uma vez, o corpo fletido para a esquerda, a espada saltando para a outra mão, descendo para o lado do anjo. Lúcien caiu ao solo, a espada passando a milímetros do corpo.

Então ele girou e se levantou com um impulso seco.

À sua frente Azaniel desdobrou as asas, ameaçadora, toda concentrada. Lúcien jogou o corpo com violência e atacou. Azaniel se fechou dentro das asas. Quando as abriu o impacto pegou Lúcien despreparado e o lançou longe. Num impulso, como um corisco ela caiu sobre ele, a espada apontada para baixo.

Lúcien se esquivou, a ponta da espada da demiana passando perto das costas, entre os músculos das asas, e se cravando com estrondo na terra.

Lúcien levantou a sua, que entrou pelo lado de Azaniel.

Ele se levantou devagar, levando consigo Azaniel, que tremia na ponta da espada, enquanto a sua própria luz se perdia.

Lúcien a abaixou e a tomou num abraço cuidadoso, os olhos perdidos nos olhos de Azaniel.

Devagar puxou a espada, que deixou cair na terra.

De esguelha conferiu os anjos e os viu em guarda, apenas observando.

A dor o atingiu, a dor da perda. E, ante si, estava novamente o UM, todo manchado com o sangue dela.

Tomado de dor Lúcien urrou de dor e desespero, que os outros anjos nunca entenderiam. Eles só sabiam falar que cada um tinha o que desejava, e que isso deveria ser sempre respeitado.

A dor foi intensa quando a viu sorrir, os olhos se fechando, o corpo amolecendo.

Com carinho a deitou e ficou ali, perdido, olhando. Com suavidade passou os dedos em seu rosto.

Ao lado do platô ensolarado a penumbra existia, e a chuva caia com força.

- Vou sentir tanto, tanto a sua falta... – falou, enquanto ela se desfazia.

Com cuidado tomou uma pequena partícula de luz que dela subia, e chorou.

Anjos não choram, mas aqueles eram tempos diferentes. Combatiam contra demônios e seres da escuridão, e combatiam contra anjos dominados e contra os que se enganavam. Mas ali era diferente. Nunca mais a veria, e fora ele que fizera isso.

Com cuidado abriu os dedos e deixou a partícula de luz, que pegar com cuidado, subir e sumir, juntamente com a muralha de anjos, que partiram em silêncio.

Então se levantou e, com um movimento brusco da mão, fechou o vão nas nuvens, permitindo que a água caísse sobre o platô vazio e solitário.

Um relâmpago caiu ao seu lado.

Lúcien desfraldou suas asas e deixou que as águas corressem por cada dobra e pena, que molhassem seu corpo e sua alma.

Num impulso pesado pegou sua espada e subiu para junto dos outros, desaparecendo a seguir acima das pesadas nuvens.

II

Lúcien sorriu, porque o tão aguardado momento chegara.

- Vingança, ah sim, eu sinto isso em você. Sua energia está amarfanhada, emaranhada de vingança, a podre e doce vingança – gritou para os que desciam frente ao seu batalhão.

Em paz ficou a ponta da espada no chão e nela apoiou as mãos, aguardando o que estava para acontecer.

Gadhiel não falou nada. Assim que tocou o solo da campina cercada por suaves morros foi avançando, os olhos duros e penetrantes. Com dificuldade foi avançando em direção ao vigilante que o observava pacientemente, atacando e se defendendo, abrindo caminho lentamente, como se estivesse satisfeito em destruir tantos demônios, que até bem pouco eram vigilantes.

Olhou ao lado, e viu os outros dos treze avançando como ele, como máquinas, cortando e avançando, formando lentamente um círculo que se esvaziava bem devagar.

Com prazer viu que se aproximava. Poderia se lançar para o alto e cair sobre o vigilante, mas não teria o efeito que desejava, sobre si mesmo e sobre o outro. Tinha certeza de que, a cada passo que avançavam, uma semente ia surgindo dentro daqueles que se batiam contra eles, e principalmente, naquele que tão pacientemente parecia aguardá-los.

Sorriu, conferindo que Lúcien permanecia no centro do círculo, em pé, em paz, apoiado o corpo na longa espada, esperando que apenas ele mesmo sobrasse, porque sabia que os treze tinham a determinação para vencerem, o que ele não tinha.

Por fim, os sequazes, conferindo que nada poderiam fazer contra os treze, se lançaram para o alto e sumiram nas entranhas das montanhas, deixando Lúcien sozinho.

Lúcien lentamente se empertigou, vendo que doze dos atacantes formavam um círculo, enquanto Gadhiel se deixava dentro, junto com ele.

Sem qualquer palavra levantou a espada e atacou, revestindo a espada com parte de sua força.

Num movimento tentou aprisionar Gadhiel com um fio de energia e puxá-lo para o caminho que sua espada descrevia.

Mas Gadhiel apenas virou por milímetros o corpo enquanto girava. Aproveitando-se do giro Lúcien o empurrou de lado.

Com um sorriso avaliou o oponente.

Só isso, Gadhiel? Eu esperava mais de você, do que esse giro defensivo.

Gadhiel não sorriu de volta. Antes, girou com violência três vezes, enquanto ia se abaixando e abrindo as asas, que cortaram Lúcien na altura da coxa esquerda.

Lúcien zuniu a espada para o lado, com a esperança de atingir Gadhiel. Mas, Gadhiel já se levantava, a espada se abrindo na altura do ombro.

- Você já foi melhor que isso, Lúcien, segundo ouvi de suas batalhas, antes que se tornasse essa ruína.

- Ora, então você sabe falar – rugiu, lançando para o lado parte da armadura de ombro que Gadhiel acabara de cortar.

- Eu conhecia Azaniel.

- Ela morreu em uma batalha justa.

- Tal como você vai morrer aqui. Mas, a sua e a de Azaniel não foi justa. Você sabia que ela não iria ser toda a guerreira que era. Foi por isso que você usou a forma dahen, não foi?

- Não, não foi isso – Lúcien reclamou, visivelmente contrafeito. – Eu queria que ela se lembrasse, queria que fosse embora, ou que se juntasse a mim...

- A sua queda te fez mais mal do que pensa... – Gadhiel declarou, os olhos procurando pontos de ataque, e deixando isso bem visível para que Lúcien se preparasse.

E o ataque foi tamanho que Lúcien apenas o viu passando, enquanto sentia que sua armadura se abria no peito, tornando-se vermelha e quente.

Subitamente suas forças foram se perdendo. Depressa fincou a espada no chão, e se apoiou nela, a confusão em seus olhos. Então pensou nas palavras de Gadhiel, e viu que ele tinha razão. Quando tomara a forma dahen realmente ali havia a esperança, mas também havia a maldade como último recurso, usado para enfraquecer aquela que, por alguns momentos, vira como inimiga.

O peso dessa verdade o minou, e ele caiu de joelhos, a espada se lançando para o lado, os braços ao longo do corpo.

Então chorou, livre, se sentindo bem com isso.

- Ah, infelizmente vejo verdade no que disse, Gadhiel. Essa queda na experiencia é... terrível demais – chorou. – Ah, não imagina o quanto estou cansado disso. Mas, obrigado, meu irmão – agradeceu pondo os olhos em Gadhiel, - por me dar o esquecimento, e uma chance de encontrá-la novamente.

- Encontrá-la? Sabe que Azaniel é uma demiana, não sabe? Ela vai estar em uma dimensão em que não conseguirá ir.

- Eu não, meu amigo. Mas, ela poderá descer, e me ajudar a despertar. Sabe, infelizmente só agora realmente descobri uma coisa: amor... Ela vai me encontrar...

Então os olhos se fecharam e ele caiu para a frente, tomando entre os pedregulhos e grama.

Os treze ficaram em silêncio, até que ele, lentamente, se desfez.

Gadhiel fechou os punhos no coração e esticou a mãos a frente, abrindo a mão, quando o fractal de Lúcien se mostrou, antes de se ir.

- Como a luz dele está baixa – gemeu Adiene.

- Será que ele e Azaniel vão se encontrar novamente? – perguntou Amonet, o rosto romântico e pensativo.

Cassiel a abraçou carinhosamente.

Então sorriu, e Layla se preocupou. Discretamente passou os dedos na espada, e depois acariciou o rosto de Amonet. E o mesmo fizeram, para estranheza da menina, Anael e Adiene.

- É uma romântica incorrigível – brincou Bhantor, dando-lhe um grande beijo na testa.

Então, vendo o riso no rosto de Gadhiel e Layla, e nos dos outros, levantou sua espada e examinou seu reflexo. Ficou assombrada por alguns segundos, vendo como seu rosto estava todo riscado de sangue.

- Mas, mas... Vocês não crescem? Que horror – sofreu, passando as mãos com vontade no rosto, tentando limpá-lo. – Gadhiel, olha só o que fizeram.

- Ah, mas você ficou muito bonita. Com certeza – falou ele, tentando segurar o riso.

Layla deu um beliscão no braço de Gadhiel.

- Esses irmãos... – sorriu. – Lá, meu bem. Lave ali no regato – apontou.

- O que você acha? – Layla perguntou tomando a mão de Gadhiel entre as suas.

- Isso está na decisão que tomarem. Infelizmente um só poderá tomar essa decisão, enquanto o outro só poderá sentir uma saudade que não entenderá, caso o que sinta seja realmente verdadeiro – soprou tomando-a num abraço carinhoso, vendo os outros partindo em direção ao abrigo que haviam construído mais para o sul. – Ora, então você também é uma romântica incorrigível? – perguntou.

Layla se separou e ficou olhando aquele rosto e aquele sorriso malandro. Há bem pouco tempo havia ali um guerreiro duro, e até cruel, e agora...

- Nossa, mas você é... Quer saber? Está certo... Dessa vez confesso que isso mexeu comigo. Mas só dessa vez – riu, se elevando bem lentamente, esperando que ele ficasse ao seu lado.

- Sabia que eu mexia com você – ele riu.

- Eu falei era do que aconteceu ali, com Lúcien e Azaniel. Não era... Ah, mas você é muito...

- Incrível, eu sei, meu bem...

- Eu dia dizer outra coisa. Mas, é bom viver na ignorância, não é mesmo? – riu aumentando a velocidade.

- E o que era? – ouviu a voz dele fingindo preocupação se perdendo atrás.