Não prestaremos contas a Deus, mas a nós mesmos pelo que deixamos de ser.
I
- Estou quase pronto, mas ainda não... Falta pouco... – revelou, pousando no alto de um monte revestido por uma grama alta, secundado pelas duas.
- Sério? – Layla o olhava incrédula, balançando levemente a cabeça.
- Vai ser divertido...
- Você gosta da dor, não é mesmo? Viciou nela?
- Até que não é isso, Sekhmet. Eles agora não estão mais me atacando com espadas. Eles só ficam me empurrando...
- Te batendo com cajados e dando socos e chutes, é o que quer dizer, não é mesmo? – a demiana corrigiu.
- É, essa é uma forma de ver. Mas sem espadas – Gadhiel salientou com prazer.
- Deve doer do mesmo jeito... – arrepiou-se a demiana.
- Ara, só um pouquinho. Mas, e vocês? Não querem vir junto? Pensaram? Uma demiana e uma dêmona tentando tomar o céu de assalto... Nossa, ia ser demais.
- Ele é louco, não é? – Sekhmet perguntou diretamente para Layla.
- Acho que é... Mas, eu só o conheci há algumas horas atrás. Então...
- Ah, mas pode ter certeza: ele realmente é louco.
- Sem dúvida... – Layla concordou. – Por que você fica tentando? – perguntou se dirigindo para Gadhiel. - Não está claro para você que eles não te desejam lá?
- Ora, essa é a vontade deles. Eu tenho as minhas – sorriu.
- Sério, por que você fica tentando tanto? – perguntou Sekhmet, os olhos preocupados sondando a face de Gadhiel. – Aqui estão anjos e demônios, aqui estão os que foram rejeitados. Para eles, os que permanecem no céu, meu caro, nós somos menos que nada, somos todos demônios... Sem ofensa, dêmona.
- Tranquilo. É o que sou, não? – sorriu, o que deixou Sekhmet satisfeita com a companhia.
Gadhiel observou as duas, e já não havia mais sorrisos em seu rosto, mas apenas uma paz e uma convicção que as duas perceberam, ocultavam uma grande tristeza.
- Demônio ou anjo, demiana ou dêmona, tanto faz. Vocês não percebem? ELE fez a ambos, e fez tudo o que existe, com amor. Somos todos irmãos, somos todos apenas um. O que nos diferenciou é o que a tudo diferencia: as escolhas feitas, as escolhas respeitadas. Por isso, sabendo disso, como podemos aceitar que alguém fale em nome DELE, que tome decisões como se fosse por intermediário DELE, ou fosse ELE? Isso não faz sentido, e os que estão tomando essas decisões estão errados, adormecidos, esquecidos. Não cabe a nós desistir...
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- Uauuu... – soltou Sekhmet olhando Gadhiel mais profundamente. – Devo confessar que, à princípio, te via como um cara engraçado e um tanto louco, mas agora vejo que é apenas...
- Um ser emotivo e comovente? – riu Gadhiel...
- Um sábio feliz.
- E um guerreiro mediano – brincou Layla.
- Pelo que vi aqui, acho que isso não é bem uma realidade... Ah, está bem, entendi. Ainda não estou acostumada com essas tiragens... Isso, isso mesmo, um guerreiro mais ou menos... – Sekhmet riu por sua vez.
II
Aproveitando que as duas estavam distraídas conversando entre si, com um grito de satisfação Gadhiel desfraldou as grandes asas e subiu como um bólido para o céu. As duas, tomadas de surpresa, apenas ficaram de bocas abertas, seguindo o anjo que subia veloz, cada vez mais pequenino no céu azul.
Então ouviram aplausos e gritos de incentivo ecoando lá nas alturas.
Se assustaram quando, observando ao lado, viram que estavam cercadas por dez vigilantes, todos olhando como que hipnotizados para a tentativa do caído.
Para maior surpresa viram três deles, tomados de energia, partirem rapidamente atrás de Gadhiel.
Os sons de aplausos e ovações aumentaram ainda mais, com o aumento do grupo que tentava tomar o céu.
Layla apresentou Anael, que Sekhmet cumprimentou rapidamente, voltando os olhos para o céu.
Então, curiosa, Sekhmet voltou os olhos novamente para Anael, e viu que ele olhava para cima, os ombros caídos, resignado.
Anael a observou, e sorriu meio sem-jeito.
- O grandão que está subindo lá é o Bhantor; o magrelo, em segundo, é Theliel; e aquela compridona, e a mais lenta, por sinal, é a Amonet.
- Nossa, ela é muito bonita... – Layla admirou.
- Sim, ela é sim – Anael reconheceu, observando a demiana por alguns segundos. – Eu confesso que não sabia que eles eram tão doidões assim – exprimiu surpreso, o que fez Layla dar uma risada abafada. – Esse anjo amigo de vocês está nos corrompendo.
Sekmet, ouvindo a declaração do anjo caído não pode deixar de sorrir.
Subitamente tudo se encheu de vozes, e Layla viu que os morros estavam tomados por inúmeros caídos e dêmonas da superfície, todos abobalhados e sorridentes olhando para cima. E Layla ainda podia jurar que vira algumas dêmonas do interior, mas não tinha muita certeza disso.
Porém, alguns desavisados e não sabendo bem o que estava ocorrendo ali, apesar dos gritos de alertas, acreditando que era uma continuidade da guerra, desembainharam suas espadas e se atiraram para cima.
No entanto, estes que estavam dispostos a guerrear foram barrados logo acima dos montes, e novamente foram lançados contra a terra com espetacular fragor. Muitos correram para onde eles tinham caído e os ajudaram a se levantar enquanto explicavam a natureza do que estava acontecendo ali. Tudo pacificado e explicado, com tudo novamente acalmado na superfície, todos ficaram assistindo a tentativa amistosa de Gadhiel e de seus novos apoiadores.
Quando conseguiram ouvir gemidos e gritos, e sons de coisas se batendo e quebrando, e muitas, muitas imprecações, na terra tudo era silêncio, não desejando perder nem um mínimo ai.
Não demorou muito e gritarias de vitória foram ouvidas e muitos aplausos e festejos, e souberam que tudo havia acabado, por enquanto. Houve uma correria quando eles começaram a despencar com fragor das alturas, sob urras e ovações.
- Mil cento e sessenta e dois!!! Um, um e um – ouviram ribombar suave no céu, como se fosse parte de um anúncio.
- Você estava errada, Sekhmet – riu Layla.
Sekhmet olhou para a dêmona e viu o quanto estava se afeiçoando a ela, o que não passou despercebido para Anael, que a olhava aprovador.
- Pois é... Mas, agora, por enquanto, temos a contagem correta – sussurrou, procurando ver onde ele iria cair. – Inclusive dos seus amigos – falou para Anael, que balançou a cabeça em aprovação, meio distraído.
Então viram pequenos pontos escuros descendo em grande velocidade do céu, as costas arqueadas, os membros balançando-se para cima como trapos, enquanto despencavam. Um após o outro os três impactaram o chão, abrindo grandes crateras. Houve grande rebuliço, e logo eles estavam sendo amparados, todos aguardando a descida do quarto vigilante.
E então o pequeno ponto apareceu, descendo com uma velocidade bem mais suave que a dos outros três. Quando ele impactou o lado de um monte não abriu cratera, mas fez apenas um leve amassado.
Como um herói acorreram para ele e o tomaram nos braços. Ele estava desmaiado, como os outros, e os muito sinais da pancadaria eram evidentes. Mas, tal como os outros três, havia aquele sorriso de satisfação pendurado nos lábios desfalecidos e rachados.