Com qual régua devo medir o tamanho do amor que te faz abrir mão até mesmo da sanidade?
I
Derfla sentiu a dor dos ganedrais, e afastou um mínimo sua consciência da deles. Havia um intenso amor ali, viu, como havia uma terrível preocupação.
- Não entendo – falou para a mônada que pulsava suave e gentil acima do planeta. – Por que escolhe cair? Quer dizer, cair ainda mais?
- Vocês conseguem ver? – Urântia vibrou com suavidade. – As pessoas surgiram, e esse é o começo. Novos seres irão nascer aqui, e eles serão maravilhosos... Mas, eles serão inocentes, e vão cair, porque serão seduzidos pela escuridão. Não há como deixá-los sozinhos na escolha que farão. Eles são UM, que irão escolher se dar essa experiência. Na verdade, eles ansiarão por ela.
- Ah, será um tempo longo demais nessa escuridão ainda mais densa que pensa, minha querida amiga. Nunca foi conseguido êxito em algo assim, não nessa profundidade dentro da escuridão...
- Em algum momento isso irá acontecer, porque essa experiência já está no UM. Se não for aqui, agora, será em outro lugar.
- Um mergulho assim foi tentado pouquíssimas vezes, porque causa terrível receio, e em nenhum local foi conseguido. Os sistemas que ousaram cair uma fração disso foram destruídos numa loucura horrorosa e numa densidade indescritível. As mônadas que participaram da experiência tiveram que ser tratadas com muito cuidado. Não houve quem suportasse o tamanho da loucura.
- Alguns suportaram sim, meu amigo. Você bem sabe, não é mesmo? Os velhos guerreiros raivosos conseguiram... E muitos se curaram e se tornaram extremamente lúcidos e fortalecidos. Esperança, é o nome deles, para mim.
Sênior sentiu um peso na alma, e sorriu entristecido, uma dor tão funda que o fez se calar por algum tempo, sob os olhos amorosos de Urântia.
- Não sabíamos daquela experiência. Fomos engolidos por ela..., tal como os outros. Muitos não conseguiram – suspirou dolorido. - Foi muito difícil...
- Eu sei, meu querido. Então, agora veem que precisamos tentar aqui, não veem? Sinto-me preparada, como as consciências que estão aqui comigo também se sentem. Se conseguirmos, será uma marcação em um caminho que estará aberto...
- Nunca fui contra qualquer escolha, realizada com a liberdade sagrada do livre-arbítrio, mas...
- Apenas confiem... Vocês me prepararam, me apontaram o caminho. Agradeço por isso, ganedrais.
- Não há como estar preparado para isso, Urântia. Você bem sabe que a confederação não irá ajudar nisso. Você e os seus, ao escolherem isso, estarão sós...
- Sabemos, e aceitamos. Em algum dia, no futuro, iremos emergir disso. Mas, apesar do que disse, sabemos que nunca estaremos sós. Além do UM, teremos vocês...
Derfla a observou com cuidado, junto com todos os outros ganedrais.
- É certo que sempre estaremos por perto, Urântia – prometeu Jasmiel, a voz doce e amável.
- Eu sei, querida amiga. E, agora não mais Urântia. Gaia eu sou, porque nessa terra entregamos tudo o que somos...
Os ganedrais ficaram em silêncio enquanto Urântia ia se transformando sob seus olhos. A luz poderosa tremeu e diminuiu lentamente de frequência, como se estivesse adormecendo. Com o coração contrito apenas ouviram como que um suspiro no espaço, enquanto Gaia descia para dentro do coração do planeta, onde se recolheu.
Com pesar viu que muitas formas de consciência se despregavam e partiam enquanto outras diminuíam rápida e drasticamente suas vibrações, as luzes que eram esmaecendo perigosamente. Viu anjos descendo rapidamente e recolhendo as que, em pura agonia, se debatiam, assustadas com o que acontecia.
Foram dias e anos ali, até que tudo foi se acomodando.
Sênior não sabia se deveria ou não ficar contente por Gaia. Todo o sistema de Satânia estava atento, e respirou aliviado quando Gaia, contra tudo o que se pensava, conseguiu o que nunca o fora antes: Gaia havia caído na mais profunda escuridão.
Sênior decaiu sua vibração e a examinou na dimensão em que estaria por um tempo extenso demais, a terceira dimensão. Ali estava ela, um planeta lindo e azul em torno do qual, como uma bailarina, a lua girava, como um inseto em torno de uma lâmpada. Mas seu coração doeu, porque essa lâmpada não era nem mesmo uma pálida lembrança do verdadeiro coração de Urântia, de Gaia.
Então viu os escuros afoitos e esfomeados, aguardando alguma brecha para nela descerem.
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Sênior encheu o peito lentamente, pesaroso, os olhos passeando pelo sistema de Satânia. Ali já fora muito diferente, se recordava. Ali havia muito do espírito seu e de seus irmãos, que ajudaram a construir cada pedra, cada sopro; que auxiliaram as mônadas excitadas com as possibilidades imensas que ali se mostravam a se estabelecerem nas esferas que surgiam no cortejo daquele belo sol, no humilde braço da galáxia.
E viram a vitalidade de Vintra aceitando ser alijada da terceira dimensão, enquanto se fortalecia nas outras; e viram Mitra morrer lentamente, mesmo que nas outras dimensões ainda estivesse bela e fresca. Doeu elas terem tido que abandonar aquela dimensão que, mesmo que dura, tinha sua beleza e possibilidades, como todas as outras, tal como doeu a destruição do pequeno planeta e...
Sênior abanou a cabeça, pondo de lado esses pensamentos que apenas o entristeciam e faziam sua energia diminuir.
Foi nesse momento que o silêncio se tornou ainda maior. O coração se tornou terrivelmente pesado, pela sorte que todo aquele planeta lançara sobre si: com pesar viu todas as mônadas na superfície diminuídas drasticamente em suas energias, suas vibrações quase no limite mínimo.
E havia os seus irmãos, onde via crescer o desejo que descer à superfície, onde encarnariam vezes sem conta, por um tempo que não se podia contar.
- Eles estão esquecidos – sofreu Azazel, tomada de dor, seguindo as consciências que estavam no planeta.
Sem perda de tempo os ganedrais se aproximaram dela e a envolveram nas chamas que eram, e ali ficaram se apoiando, vendo a escuridão se acomodar por todo o planeta.
Sênior, em silêncio, como sabia que os outros também estavam fazendo, lentamente foi avançando no tempo, seguindo a nova linha de tempo que Gaia havia criado. O impacto inicial foi doloroso demais. Ele se isolou, deixando visões rápidas irem surgindo e se desvanecendo.
Então, como se fosse uma melodia, das sombras densas uma luz explodiu silenciosamente contra o solo do planeta que morria, e tudo foi, bem lentamente, se recuperando, até que...
Sênior abriu os olhos luminosos, não conseguindo acreditar em tudo o que vira. Voltou-se para seus irmãos, e viu que eles também haviam presenciado e entendido tudo o que acontecera, e estava para acontecer ali.
Azazel segurou o braço de Sênior e lhe transferiu todas as visões que tiveram de Gaia, e viram comovidos seus olhos se encherem de água.
- O caminho mais forte e claro é que ela vai conseguir – suspirou Azazel agora toda tomada de luz. – Quer dizer, as linhas mais fortes, mesmo que mais dolorosas, dizem que ela vai conseguir.
- E tem a promessa... – sussurrou Anaita, totalmente maravilhada, um arrepio maravilhoso correndo por todo seu corpo.
- Nunca vi nada desse porte – Sênior falou, a voz num tom maravilhado e meio embargado.
- Será que Gaia chegou a ver? – perguntou Khyah.
- Acho que não – sorriu Sênior. – Ela fez por amor, e não por promessas. Nunca vi um coração como o dela – declarou com a voz embargada.
- O UM sabe, e por isso fez a promessa de enviar os três mostradores do caminho – falou Anaita totalmente enlevada, lembrando-se das luzes poderosas que vira atingir a superfície do sombrio e triste planeta, e como isso renovava tudo o que Gaia era, como renovava e avivava toda a consciência que ela, como mãe, lutava em proteger.
II
Sênior voltou a sentar-se, após ter colocado todos a par do que haviam visto, os pensamentos febris tomando sua mente. Em todo o conselho e em Derfla, reunidos com os ganedrais, havia a mesma expressão de assombro e maravilhamento, em todos eles a expectativa, a esperança intensa e luminosa.
Então seus olhos se fixaram por algum momento em um ser estranho que se mantinha em completo silêncio, apesar de ver que nele havia grande poder. Elahin, se lembrou de quando Derfla o apresentara. Com cuidado o examinara na ocasião, e vira que ele até mesmo já havia sido por algum momento um demônio de poder, e que dessa condição voltara.
Então suspirou, deixando esse assunto para algum momento em que se apresentasse importante. Outras coisas agora exigiam cuidados.
- Não acreditávamos que seria possível... – murmurou o antigo, observando as distâncias do tempo e espaço.
- Vai levar um grande tempo. Não podemos perder as linhas para a redenção – considerou Derfla.
- O caminho será muito longo, é certo – falou o antigo. – Há muitos entroncamentos frágeis a que teremos que estar atentos, até que todo o processo possa ser considerado estável, seguro e firme. Mas, a decisão de Gaia, apesar de temerária, é... Não tenho palavras. Digamos..., esplendorosa - suspirou.
- Nunca essas linhas de tempo se mostraram tão fortes. Nas outras vezes em que isso foi tentado as linhas eram das mais frágeis. Mas, agora... – Derfla observou o céu azul, a respiração longa e cheia.
- Então temos que nos preparar...
Sênior parou, os olhos se fixando no antigo, que tinha um ar estranho e descrente, como se segurasse algo amargo que tinha receio ou pudor de colocar para fora. Foi como uma lâmina fria, quando percebeu o que poderia ser.
- Vocês acham mesmo aconselhável que participem de uma experiência tão incrível, e frágil, quanto esta – ouviram a pergunta quase sussurrada.
Sênior observou os presentes, e sentiu o silêncio tumular. Nos ganedrais havia uma revolta silenciosa principiando, enquanto no conselho uma tranquilidade um pouco indiferente. E havia Derfla e Elahin, e se surpreendeu que Elahin parecia concordar com Derfla, ao demonstrar discordar do conselho.
- Somos muito indicados – falou com a voz firme e calma. – Sei que pensam em nós como guerreiros, e temos orgulho disso. Sermos no início dos tempos construtores foi como respondemos à experiência, e um pouco após sendo os que germinaram em Aden; respondemos como tardischs à agressiva escuridão, como voltamos a responder sendo ganedrais. Nenhum de nós, quando fomos conscientizados como um pelo UM pode se arvorar perfeito, apesar de o sermos. Estamos aqui, fomos colocados aqui para isso, para experimentar.
- Eu ouvi alguma coisa de vocês, tardischs – apartou Elahin, um olhar escrutinador passando pelos ganedrais. – Fizeram muitas loucuras por aí.
- Tal como você, ao que parece, que vi que por pouco não se perdeu como um demônio de poder, tal como Escuridão, Trevas e Mercator.
Uriel sorriu, ao ver como Elahin ficou um pouco mais tenso.
> E mesmo tendo acreditado que está bem, você se mostra bem mais frio e duro que um tardisch, bem agora.
Elahin prestou mais atenção nos ganedrais. Se ele próprio era um impartido, ali estavam muitos deles, e Sênior era, sem sombra de dúvida, um ser que deveria ser estudado.
- Talvez esteja certo, Sênior. Gostaria de ouvir de você sobre vocês – falou. Sei que tem uma proposta, e só quero poder ouvi-la dentro do contexto correto.
Sênior se virou para o conselho, e viu que todos eles se mostravam em silêncio, permitindo que aquela conversa fosse continuada.
Então inspirou demoradamente, os olhos presos em Elahin.