Suspirando pesadamente, Graco e Eztli se sentem aliviados.
Se eles ainda estão conseguindo manter o aspecto umbral, quer dizer que não se passou o tempo do recorde recente de quase 6 minutos estando na metamorfose.
'Conseguimos.'
Graco diz jogando o livreto entre as mãos e o abrindo pela primeira página da direita.
Os anteriores desenhos ilustrativos desorganizados e espalhados pelas folhas, agora estão alinhados de forma sistemática e sem linhas borradas.
A caligrafia vertical e o traço limpo eram bonitos e charmosos, apresentando um artesanato manual requintado acompanhado com uma aparência torpe.
Eles não entendiam o idioma do grimório, mas as frases, palavras e letras insinuavam um significado intrínseco dentro de suas almas coexistindo com a autoridade da entidade abissal.
Como se somente os que detém este poder corrupto pudessem compreender e interpretar, por instinto, esta língua cognitivamente dissociativa e desumana.
'A primeira página mostra as técnicas de respiração sem núcleo, a com núcleo e uma de misturar o Miolo Putrefato com a Energia Mundial para obter a Essência Abjeta .'
Eztli diz absorta nos textos de dedução intuitiva.
Olhando para esta página, eles olham para a última ilustração, desenhada como a sombra errática em formato de um humano sentado no centro de um pentagrama enquanto usurpa os resquícios da vitalidade de um cadáver
Os textos passam o pressentimento que para absorver e encontrar a Essência Abjeta, eles precisam profanar a energia vital de defuntos, pois seu espelho esférico inicia um processo de definhar que libera algo chamado Miolo Putrefato, o alimento para produzir a Essência Abjeta ao mesclá-lo com a energia mundial.
Tal Essência Abjeta e o Miolo Putrefato, são os principais combustíveis para evoluir todos os organismos primitivos do Aspecto Umbral.
Ademais, a alma do indivíduo se desprende do corpo até se extinguir, este é o tempo de a armazenar e conservar, contudo ela é perecível em poucos segundos.
Portanto, assaltar a alma do indivíduo é dificultoso, pois ela é um recurso zelado e subconsciente, ou seja, pode o repelir, mas não o atacar.
Entretanto, ao apoderar-se dela você ganha a capacidade de a transformar em um Protozoário Cleptomaníaco.
O Protozoário Cleptomaníaco pode ser usado para cultivar Obras Nefastas, que, segundo o grimório, são Imundícias Paridas ou Arautos do Receptáculo do Aspecto Umbral.
'É como um manual ...' Graco comenta enquanto lentamente vira a página.
'Sim, as definições das nomenclaturas são bizarras.' Eztli diz com interesse
'Protozoário Cleptomaníaco - Alma capturada que se torna corrupta, tomada por desejos malévolos e traiçoeiros. Impossibilitada de viver sem possuir um vaso, devido a isso, um parasita sedento por roubar e habitar corpos.'
Graco lê seu instinto
'Obras Nefastas - Criações do Reparador, existências banidas do submundo. Define-se em dois ramos:
Stolen from its rightful author, this tale is not meant to be on Amazon; report any sightings.
> Imundícias Paridas - Proles e Aberrações oriundas do Abismo.
> Arautos do Receptáculo - Abominações do Aspecto Umbral '
Eztli diz perplexa
Um silêncio mútuo cai. Os dois, apesar de tudo, esperavam isso, Eztli, porém, se aquieta, devido ao processo de ficar mais estável. Graco por estar indo longe em pensamentos
'Você disse que não consegue mais controlar algumas funções normais do corpo e sua cauda é como se estivesse viva certo?'
Eztli se ilumina, e fica pasma
'Sim ... ?' Graco diz com receio
'O texto pronuncia que a Essência Abjeta evolui os organismos primitivos do Aspecto Umbral. Acho que sua cauda e outros órgãos que você tem e irá adquirir são seres vivos que coabitam e coexistem no seu corpo numa relação de parasita e hospedeiro utilitários, como o mutualismo entre os animais.'
'Puta merda!'
Graco no meio da explicação já estava estupefato, e ao olhar o conteúdo da próxima página, ele enrijece atordoado.
Os textos citam que a matéria só pode ser transformada, nem criada ou destruída. Destarte, os recursos para a composição das Obras Nefastas devem ser consumidos para a criação.
Carne, ossos, tendões, cartilagens, órgãos, pele, núcleo, e qualquer material biológico, independente da raça, espécie, sexo e idade.
O texto circunda o desenho ilustrativo de uma enorme boca sem lábios e com dentes chatos no abdômen e outra pequena na palma da mão esquerda e direita, devorando os restos da carcaça de um defunto junto com a boca do rosto do Reparador.
O pentagrama ainda é presente neste ritual.
O Orbe Abissal é uma casta de Espelho Esférico, os dois servem para a vitalidade e para o corpo. Eles convivem e são engrenagens do mesmo físico, contudo o Orbe Abissal é o sustento do Aspecto Umbral.
Desenvolvendo o Orbe Abissal, é a chave dos limitadores do Aspecto Umbral. Sua alma é a fonte para suportar tudo, que ela será contaminada e imunda no final, mas que isso é o preço deste poder.
'Inevitável Reparadores serem caçados, somente lunáticos e maníacos da pior corja utilizam tal poder vil.'
Eztli pronuncia suas palavras escorrendo nojo e repulsa.
Na cultura da antiga sociedade de Eztli eram muito presentes rituais antropofágicos em ocasiões de celebração, era uma iguaria, um dote e até um produto comercializado em tempos de necessidade.
No entanto, ela nunca foi adepta ou conseguiu normalizar estes banquetes canibais. Pelo contrário, ela achava repugnante e repulsivo, gerou muitas crises de náusea e vômito em seus tempos viva.
'Inevitável também termos que usar tais métodos, ao menos posso não utilizar a boca do meu rosto no ritual.'
Graco diz com frieza e imperturbável, a sua surpresa inicial já passou por suas comuns conjecturas de barganha e aceitação das circunstâncias, deixando-o apenas com uma refeição de realidade crua que Graco consumiu, tragou, engoliu e digeriu indiferentemente.
Eztli olha para seu rosto e tenta sentir seus sentimentos, apenas para sentir a pura insensibilidade apática patológica de Graco. Ela sabe que humanos estarão incluídos no cardápio, porém o que a assusta e a deixa ainda mais enjoada é a descrição de idade.
Há meses ela não vê este lado inescrupuloso de Graco, é como se ele tivesse outra personalidade em que se torna um triturador implacável de emoções e sentimentos, que o deixa lúcido e também protegido de remorso e culpa.
Ela tem medo do que Graco pode fazer em estado de fúria e histeria, de ter a chance de virar uma peneira ou funil que filtra toda a bondade e empatia de sua existência.
Vendo tal Graco, ela vê como a guerra moeu e distorceu o senso de valores, moral e ética dele.
Ela sabe, ela teve essa conversa com ele muitas e muitas vezes durante os meses que passaram juntos, que ele faria o possível para ter o que quer e proteger o que ama.
Que ter se tornado um Reparador era apenas outro modelo de poder que ele adquiriu em sua visão, somente um mais infame, atroz e desumano.
Mesmo que seja corrupto, maligno e doentio, ele não teria escolha de recusar e ignorar mesmo se negasse, pois já é ele, está ligado a sua alma e não têm capacidade de conserto. E que iriam descobrir devido a sua fraqueza.
E ele não irá sufocar e recusar este punhal vicioso que possui, pois se é proibido, ilegal, condenado e amoral é porque tem mais letalidade, é mais fatal, destrutivo e catastrófico do que os outros tipos de magia.
Se for como em seu velho mundo e como ele disse: ''Se é crime de guerra, é efetivo.''
Que usaria para seus objetivos, que este é apenas uma forma de matar que sofre escrutínio da sociedade porque os governantes não têm o controle sobre este poder.
Porque o que os poderosos mais temem é um poder que rivalize com o deles.
Ele não quer ser novamente um peão, uma ponta de lança, bucha de canhão ou uma simples peça no tabuleiro da guerra.
Que não se importará de ser difamado, odiado e repudiado pelo mundo se perder tudo mais uma vez, ele não se importará com nada, nem consigo mesmo.
Que é isso o que ele exatamente precisa, uma vantagem opressiva perante os demais. Uma forma de que se acontecer dele perder tudo o que possui novamente, ele não vá sozinho, mas que arraste todos seus inimigos e opositores para as ruínas junto com ele.
Causar o mais devastador e aterrorizante dos genocídios, uma ruptura irrecuperável, o colapso das nações, deixar tudo entre os escombros e destroços é seu último plano caso tudo se estilhace diante de seus olhos.
A destruição mútua é seu ás, e a única feitiçaria mais conveniente e útil para isso, é a escuridão da entidade.
Sentindo todas estas emoções de Graco, Eztli somente inferiu que ele nunca saiu da loucura que entrou profundamente. Graco saiu do abismo, mas ele adquiriu um em seu próprio coração.
Que toda a tranquilidade que viveu, a família carinhosa que recebeu, um novo começo são o que está preenchendo este vazio. Que são camadas que se forem mortas e se ele tiver o poder necessário para expressar sua insanidade, ele não irá se conter, quiçá cogitar hesitar.
Pela primeira vez Eztli viu o distúrbio psicótico da inconsequência nociva de alguém que não tem nada a perder, se perder. De uma pessoa que considera milhões de mortes como estatística.
Eztli acredita em milagres, mas não depende deles. Porém, desta vez, ela reza, para sei lá o quê, que ela, e nem Graco, chegue até as últimas consequências.
Pois sabe que este poder trará muitos conflitos angustiantes.
.
.
.
Os dois saem do Aspecto Umbral, a escuridão da Entidade já estava tentando macular suas almas.