Correndo pela densa selva úmida com terreno irregular, em meio as grandes árvores tropicais e solo barrento, um homem com roupas imundas e desgastadas de um soldado corre em um frenesi discrepante com a sua situação desolada.
Contudo, é nítido sua maestria em desviar de raízes grossas, se equilibrar pela terra molhada devido as pancadas de chuvas e encontrar um caminho apesar do nevoeiro torrencial, sua persistente corrida mostra sua rotina em tal ambiente desgastante, como se vivesse a tempos em tais condições insalubres.
E vendo pela sua expressão indiferente, como alguém que viu as mesmas cenas repetidas vezes, é nítido o definhar dos anos em sua mentalidade.
Chegando em um terreno elevado, ele logo se ajoelha, sujando-se com barro ainda mais, logo ele começa a vasculhar rapidamente o chão com as mãos, em sua emergência ele fura as mãos com galhos e espinhos, mas em sua expressão somente transparece a indiferença com a sua integridade.
Logo ele encontra a solidez entre a terra pouco sólida, vendo as tábuas de madeira, apressadamente ele começa a chutar com ferocidade e adentra o esconderijo.
Antes de se aprofundar no espaço, ele cobre e camufla a entrada novamente, mas quando se vira tem dois pares de canos cilíndricos e facões gastos apontada para sua cara e pescoço.
Encarando os moradores esfarrapados, Loc ganha uma expressão de interrogação.
"Calma porra, sou eu Loc. Vira isso para lá, Thai ... é difícil enxergar no escuro?"
Falando com fervor para os combatentes, eles o olham com especulação por alguns segundos. Cansado de esperar suas respostas, Loc se move e atravessa o pequeno cerco de pessoas decadentes.
Caminhando pela pequena cavidade do corredor esculpido, Loc chega em um espaço maior com metralhadoras encostadas nas paredes e outra pessoa deitada no chão, respirando pesadamente.
"Só estávamos vendo seu estado, Loc. E como anda a situação lá fora? Os norte foram embora?"
Thai, um vietnamita de estatura média com fadiga excessiva transbordando em seu semblante, grita cansadamente suas perguntas.
Dois de seus aliados ficam na entrada verificando nervosamente as proximidades , e um o segue com o facão pairando preguiçosamente em sua mão caída.
Chegando no espaço maior da gruta formada por homens, ele vê Loc apontando a pistola a poucos centímetros da testa de um combatente enfermo e dando um tiro.
"Ele está ferido além da recuperação, esperar que sua morte não aconteça neste estado é somente sofrimento desnecessário. Ele está até melhor que nós agora"
Loc verbaliza isso com o rosto impassível acompanhado de uma naturalidade racional, e dá uma pequena risada que inesperadamente tem um tom de empatia em sua habitual apatia implacável.
Sem se preocupar com reações, Loc volta a organizar seus pertences sistematicamente. O frio da umidade já começa a surtir efeito após a queda da adrenalina intensa, fazendo suas mãos tremerem levemente.
Thai vendo o desenrolar da situação, somente consegue suspirar com a própria tentativa de ter novamente esperanças na realidade. "Ainda bem que o coitado estava inconsciente. Encontramos ele em uma vila próxima daqui, espero que sua família esteja bem pelo menos"
Thai tenta falar com calma, mas a instabilidade de seu tom denota a sua frustração e ressentimentos com o estado das ocorrências recentes, este foi somente um minúsculo evento em comparação com os dos últimos anos de caos que viveu.
A sua dificuldade de se acostumar com a morte alheia não o transforma em um carrasco como Loc que acha mais fácil e conveniente tomar tal rumo destrutivo, mas um sonhador que prefere pequenas escolhas que não envolvam mais homicídios.
"Napalm pegou todo mundo daquela vila provavelmente, tivemos simplesmente sorte ou azar de não estarmos crocantes como eles" Loc agora sentado e bebendo de um cantil em trapos, comenta com olhos fechados e com insensibilidade.
Depois de um longo gole que fez crescer em sua garganta, Loc pergunta languidamente a Thai
"Tem comida?"
"Não, não comemos a quase um dia"
Thai responde enquanto se joga para se sentar em uma pilha de trapos em cima de uma tábua, com os cotovelos nos joelhos e mãos na cabeça, Thai tenta em vão não relembrar os momentos de carnificina que presenciou.
"Vamos aproveitar a utilidade do seu amigo então?"
Loc pergunta sem polidez enquanto se levanta lentamente com a faca na mão, mas espera pela concordância de Thai, porém vendo-o tão abatido e desistente na realidade ignóbil em que vivem, Loc sabe que por causa do jejum grupal em que estão, Thai está mais instável.
"Não profane o cadáver Loc, o cara morreu não faz minutos, maluco desgraçado" Gritando com raiva crescente e chutando as tralhas do chão, Thai começa a encarar intensamente Loc com um fuzil na mão após se levantar abruptamente. Indignado com a permanente atitude despreocupada de Loc, Thai puxa a trava da arma. Thai tomada por toda a emoção acumulada, não vê a irracionalidade de toda a atitude, apenas a importância de não ceder à amoralidade.
"Não adianta fazer isso, Thai. Como você falou, ele já é um cadáver, ele não tem outra função além de engordar as larvas, então qual o mal de nos alimentar dele em vez delas?" cinicamente Loc responde, mas antes de poder tirar os olhos do corpo moribundo, ele já esta sendo empurrado com revolta por um Thai frustrado e furioso.
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"Sempre esse papo de filho da puta saindo da tua boca, só porque estamos a anos nessa maldição de guerra, você acha que pode fazer o que quiser? Isso que tu quer fazer é o fim, é para lixos, é o último passo contra nossas crenças. Eu não vou fazer isso, e não vou deixar você fazer também, você pode achar que estou ficando louco, mas olha para si mesmo. VOCÊ..."
apontando a arma para Loc, Thai bufando com ódio pelo mundo, por onde acabou chegando, por ser obrigado a fazer algo para manter o mínimo de decência humana, continua após dar algumas respirações fortes e velozes
"Está sugerindo comer uma pessoa, ele já teve uma vida, pessoas que o amaram, filhos. Só não faz isso, eu não quero mais fazer a violência sem sentido. Nos conhecemos a tempo, não me obrigue..."
Resmungando com ameaça abundante as últimas sentenças, Thai faz o clima da gruta imunda e pobre parecer o prelúdio de um conflito sangrento.
Loc vendo o silêncio que pairou na cúpula cavernosa, somente ouvindo as derrubadas da chuva intensa e olhando indiferentemente para seu amigo, ele ganha a lucidez fora do véu da apatia que o acompanha diariamente.
Reconhecendo a preocupação que Thai tem por ele, Loc vê as cintilações de um homem que não quer mais viver, mas que proporcionalmente vive para tentar causar a mesma quantidade de mal que o causaram enquanto ainda pode.
No fundo do olhar de seu último dos irmãos de guerra que já teve, Thai, Loc sabe que está olhando a reflexão de si mesmo, a desesperança e a loucura que o ser humano os causou somente os fez agir e pensar de forma diferente, porém na mesma perspectiva destrutiva, somente a de Thai mais nobre.
Após segundos de uma tensão intensa, Loc volta a se deitar lentamente no chão , colocando a sua mochila molhada embaixo da cabeça e se virando de lado para a parede.
Vendo que conseguiu fazer pelo menos isso, Thai agradeceu silenciosamente por conseguir manter este resquício de humanidade. Seus outros colegas já o olham como lunáticos, não enxergando as consequências em um homem que vive no moedor de carne durante anos de sua vida.
A calma retorna a moradia dos soldados, contudo humanos, banhados pela insanidade consequente da ganância dos abastados, faz com que a vivência em tal estado não os atormentem mais, simplesmente o conforto da paz escassa já os enchem de tranquilidade.
Entre a vigilância e pequenas conversas, as horas voam, e Loc enfrenta uma nova batalha: a turbulência de sua mente inundada de cicatrizes necrosadas.
Loc após se deitar e não conseguir dormir novamente pela já centésima vez em alguns meses, inescapavelmente começa a refletir sombriamente sobre a sua existência.
Relembrando os momentos que passou com a sua mãe, ajudando-a a colher a agricultura local, lavar as roupas, a acompanhando onde que fosse, seus sorrisos carinhosos, e de seu pai, quieto e introvertido, mas que gostava de dar abraços apertados em sua esposa e filho.
Como morava em uma pequena vila rural, de sua escola pobre de somente um professor, era um homem quase idoso, diligente e rígido com a educação, que pregava o estudo e a dedicação, ele era um professor que realmente se preocupava com seus alunos.
A paz e tranquilidade que viveu até a adolescência hoje considera como tempos divinos e celestiais.
As brincadeiras que fez com seus amigos de infância hoje já falecidos, o som das risadas infantis, das vaias de comemoração, os elogios que recebeu, os flertes que deu, a excitação da juventude, a busca por um romance.
Aquele ímpeto e propósito que desenvolveu, ter o objetivo de conhecer novos lugares e ver o mundo, novas pessoas.
Tudo corrompido por ideologias que pregavam a igualdade entre seus cidadãos, mas que colapsaram a relativa paz de sua vida e pulverizaram a vida de muitos. O tempo valioso que teve de ócio entre os conflitos, somente o fez se perguntar o porquê.
Por que ele vive após ver os restos carbonizados de sua família, ato feito pelos próprios aliados estrangeiros do ocidente, Loc sabe que a ordem não vem entre os lacaios, e isso somente o enche mais de uma fúria fria e atemporal.
Sobreviver nesta espiral aterrorizante somente para causar mais horror nesta terra deformada, criando apenas mais cicatrizes nesta sociedade deturpada pelas decisões de seus governadores oportunistas.
Presenciando a traição, e sendo jogado contra a sua vontade para se sacrificar por um país irrecuperável e fadado à miséria, lutando por uma guerra perdida, um país em frangalhos socioeconomicamente.
Uma batalha de dois lados, obrigado a se envolver por uma glória vazia, tal honra que não o trará motivos para continuar a viver, não ter nenhum senso de pertencimento e ter que viver como um nômade não tendo casa, mudando-se frequentemente, comendo restos, passando frio e fome. Qual o sentido?
Este vazio existencial, este abismo que o engoliu, o limbo que está o corroendo até o deixar oco sentimentalmente, rastejando-se entre a miséria e atrocidades.
Mesmo que ganhe ou perca esta guerra de interesses e influência das grandes nações, viverá nas ruínas de uma civilização para ver apenas mais tristezas, podendo ser isolado por ter lutado pelo lado errado, podendo ser um bode expiatório de alguém com mais poder que ele.
Não existe mais barganha, nem negação, tristeza ou qualquer coisa, apenas a realidade de sua circunstância infernal que não irá desaparecer enquanto estiver vivo.
Em algumas horas, todos já estavam dormindo profundamente, porém Loc estava acordando desesperadamente. Em mais uma rotina de pensar, pensar, pensar até querer que sua própria cabeça se exploda, obrigando Loc a iniciar uma outra sessão para se acalmar psicologicamente.
Cortando-se com seu punhal entre o peito, antebraços, braços, pernas e coxas, queimando-se com seu cigarro e isqueiro, até a dor sufocar suas emoções turbulentas e vir a paz oriunda do vácuo de sensações, mutilar-se é útil para ele, é como chegar ao extremo de uma Enantiodromia artificial. Isso até...
"Mas um dia excruciante no purgatório em? ... Loc Wang. Não me ignore, você acha que não conheço este seu jeito estupido de querer entorpecer rapidamente suas memórias?"
Uma voz gutural e macabramente zombeteira é ouvida na penumbra, uma que Loc nunca conseguirá calar e fazer sumir de suas noites. Loc sabe que é somente uma alucinação, mas isto não sai dele, já é ele.
Inicialmente, em seus poucos meses no combate, ouvia os resmungos, os relances de algo escuro o seguindo, mas era isso, era aceitável e adaptável.
Agora tal entidade originada de sua cabeça o persegue como um maníaco, balbuciando mais pensamentos em sua mente, contando verdades que ele já sabe, como se fosse um lembrete persistente de tudo que ele fez e não fez, ensinando-o como um professor do diabo.
A entidade demonstra abertamente o escárnio, esfregando forçadamente as sequelas.
"As pessoas podem não conseguir se acostumar com a dor, mas elas podem se acostumar a aguentá-la, Loc. Você é uma delas, meu querido amigo. Você vivencia os acontecimentos e os passa como um folhear de um livro, insistindo em continuar a andar em um círculo vicioso, você está nadando contra a correnteza, Loc, e ela um dia te levará ainda mais abaixo neste abismo que te prende em uma gaiola de culpa, ódio e ressentimentos.
Aproveite enquanto ele ainda está aberto, com probabilidades de sair dele, de ter um fim escolhido por si mesmo, de simplesmente não viver mais"
A voz solta cada frase com uma eloquência delirante e bizarra, a ternura de um hábil demônio que assumiu as rédeas da autopreservação, levando Loc a inconscientemente levar a sua mão a sua pistola e a alinha com a sua têmpora, tremendo enquanto chora silenciosamente e sem piscar os olhos, lutando por instinto com o peso das emoções.
"Cala boca, cala boca, para para com isso. Filho da puta louco"
Gaguejando e murmurando sons incompreensíveis além dele mesmo, Loc vira seu olhar para o formato alto de uma pessoa o olhando na entrada da gruta, o observando calmamente e parado como uma estátua psicodélica.
Sem nem perceber, Loc inicia um coro de pequenas risadas agonizantes, as batidas de um coração sincronizadas com as gargalhadas que Loc tenta, inutilmente, suprimir.
"Loc, você sabe, ensino-o todos os dias. A liberdade significa guerra, se todos tem permissão de fazer o que quer, isso leva a anarquia, mas muita opressão leva à guerra. Os controladores das nações, eles querem andar confortavelmente entre as tangentes deste caminho tortuoso, consequentemente você não viverá em um mundo tedioso pelo menos"
"Este mundo chato se chama paz, seu doente de merda" pronunciando pesadamente e ofegante estas palavras, Loc olha para o cano da pistola apontada para a própria testa e sorri largamente, mostrando seus dentes amarelados por fumo constante.
"Certo também. Mas não importa se você tira a vida de algo, não é? Animal ou ser humano, os dois, no final, são simples vidas efêmeras, vão sofrer de qualquer maneira, só as tira mais cedo deste buraco massacrante. O que importa é o valor que essa vida vale para você. Um abate para sobreviver, comer ou se vestir, ou foi algo como assassinatos mesquinhos só porque eles são de outra nação ou ideologia?"
Falando preguiçosamente, a entidade se aproxima de Loc, pairando maliciosamente em cima dele e o olhando atentamente, bizarramente os dois apresentam o mesmo sorriso torto e louco.
"Chorar e não sentir nada sabendo que vai se matar" a voz diz com pena e tristeza, ergue seus braços formado por sombras fantasmagóricas, os abaixo lentamente, se ajoelha ao lado de Loc e observa como uma criança curiosa.
"Estarei te esperando" Loc diz enquanto coloca a arma dentro de sua boca.
"Estarei lá em breve" A voz diz enquanto assiste Loc assentir com a cabeça e sorrir levemente, passa os braços em volta de sua cabeça, abraçando Loc com carinho.
Após o disparo tudo se apaga, Loc sente brevemente uma paz bizarramente recompensadora o levando, fazendo-o fechar os olhos levemente, a última coisa que viu foi a sombra da voz entrando em seus olhos e o levando para o vazio.