Ao ter conhecimento disso, recuei a dor que sentia junto com o desejo insano de me impor. Que direito tem uma vida de se impor a outra? Qual o sentido disso?
Lázarus ficou parado, se perguntando se deveria continuar com sua intenção, enquanto olhava o topo do gigantesco cumulonimbus, bem à frente. Um raio grosso e ramificado explodiu dentro da nuvem, iluminando-a por alguns segundos. Lázarus inspirou com prazer o ar tomado de poder.
Devagar se aquietou ainda mais, a atenção no coração, que fez pulsar cada vez com mais suavidade.
- Essa é uma decisão que não posso tomar de impulso - recitava para si mesmo.
> E se estiverem em agonia, e essa for a vontade deles? Deverei ir contra seus desejos, deverei desconsiderar o livre-arbítrio? Como eu gostaria que fizessem, se fosse eu do outro lado? – se perguntou, a dor espremendo com suavidade e determinação o seu coração. – E se eles tiverem sido dominados, e não tenham conseguido usar corretamente o livre-arbítrio? - sofreu ainda mais, sabendo que essas questões sempre surgiam quando se tinha que confrontar algo assim.
> Mas, não é o que vou fazer, não é o que estou pensando em fazer – tentou se tranquilizar pela decisão que, sabia, iria acabar tomando. – Não irei contra o livre-arbítrio, mas apenas vou encontrá-los para ver como estão. Por mais que me doa não irei intervir, se acaso não houver um chamado para que o faça – se disse, tentando realmente acreditar nisso.
Acalmou novamente o coração que escapara de sua atenção. Talvez a dor renovada de todo o passado, e a força persistente com que as trevas envolveram e distorceram tudo o que haviam feito, não o deixasse entrar em foco.
Suspirou profundamente, vendo o cumulonimbus envolve-lo em sua massa espessa. Estava muito úmido ali dentro, e o frio era enregelante.
> Chuva de pedras, e não vai demorar – viu com clareza.
Havia um vento ali, que crescia e se revolvia cada vez mais fortemente. Logo o ar frio iria explodir para baixo, eletrificando ainda mais toda a massa da nuvem. Não demoraria até a tempestade varrer o mundo.
> Talvez, se eu me abrir a tempestade varra tudo o que sinto e leve embora essa dor – sofreu em silêncio, sabendo que era apenas um pensamento de conforto. Era ele, em seu íntimo, que tinha que se resolver.
Um raio tonitruante o atingiu e seu foi, como se em nada tivesse tocado.
Ainda indeciso sobre sua ação Lázarus se elevou acima das nuvens, no exato momento de ver um gigantesco jato ascendente de descarga atingindo a borda inferior da atmosfera. O raio media mais de 54 km de altura. Lázarus o observou, fazendo o tempo desacelerar para poder examiná-lo, apenas como uma distração. Mas, percebeu com estranheza que havia algo mais naquele raio, o que o obrigou a prestar atenção nele.
Um sussurro, um apoio, foi o que sentiu.
Depressa se virou para o lado, no momento exato de ver o grande anjo desaparecer contra o fundo monstruoso da tempestade.
Sorriu, confortado pelo apoio de Miguel.
Mais confiante volitou para um lugar sobre a grande Muralha Espinha do Dragão, onde se postou suave e tranquilo.
Devagar se deixou livre e se expandiu, deixando sua energia percorrer suavemente todo o mundo, tocando Gaia como uma carícia, trocando com ela energia, num reconhecimento que sempre o revigorava e lhe dizia de belos futuros.
Com cuidado tirou de si os bloqueios que usara para não procurar seus irmãos. Precisava ter certeza de que estavam bem.
Então, metodicamente começou a varrer a terra, e os foi encontrando, um a um. Lá estavam seus irmãos e irmãs. Deixou seu coração se encher de alegria por os ver novamente, apesar de sentir uma tristeza imensa ao observar as vidas que haviam escolhido.
Dois eram viajantes, que viajavam com suas famílias e algumas outras, numa caravana. A vida era dura, mas eram felizes. Outro se tornara um bandido numa grande aldeia de homens, e era uma pessoa amargurada e triste, sua energia repelindo qualquer coisa que fosse luz, apesar de fortemente rejeitar a escuridão. Uma das irmãs que mais adorava era uma prostituta amargura e de coração vazio, zanzando numa escura cidade de homens. Ela se tornara mãe de um AsaLonga com quem se relacionara por tempos longos demais, e ele estava como um menino infeliz e abandonado. O sexto que encontrou era artesão, vizinho de um que vivia como cigano, e os dois sempre ficavam próximos um do outro, sempre se ajudando. Esses dois levavam vidas simples e pacatas. Encontrou uma outra, agora como uma manira-ellos de grande poder e ferocidade, que dominava seu povo com mão-de-ferro. E a nona se tornara uma mãe-d’água, sempre se ocultando tristemente no fundo dos rios e lagos.
> Nove – cismou. – Faltam três, faltam três – ficou repetindo, se estendendo um pouco mais pelo mundo, procurando até mesmo na quarta dimensão, para o caso deles terem morrido e estivessem aguardando uma nova autorização para reencarnarem. Mas, nada havia, nenhum sinal dos três.
A tempestade quase o alcançou, mas morreu em agonia na face da muralha; a noite veio e se foi também, e a busca não avançava. Os três insistiam em não serem encontrados. Pensou em desistir, até que algo surgiu em sua mente, um pensamento ao qual não queria prestar atenção. Mas o observou, o que fez um frio escorrer por sua alma.
Sem querer levar muito a fundo seu pensamento esticou seus pensamentos e sondou, como que de muito longe, para não levantar suspeitas, os próprios demônios. Viu com satisfação e alívio que eles não haviam caído tanto.
Ia se retirar quando finalmente os sentiu. Eram pulsos muito fracos, quase inidentificáveis. Mas estavam lá, e eram eles, sabia com toda a certeza. Dois estavam na planície congelada do sul, enquanto o outro estava logo ali, no ventre de alguma daquelas montanhas.
Com os pensamentos em polvorosa guardou a localização e a frequência em que estavam e se retirou para as ruínas do porto pequeno, na Ilha dos Dranians. Por longas horas ficou cismando, pensando, avaliando o que vira e sentira.
Aqueles três eram os mais aguerridos dentre eles, tendo sido os pilares em que se baseavam enquanto sobreviviam como os UmDosIrmãos. Não sabia o nome que se davam como pessoas, nem que pessoas eram, e nem mesmo se haviam escolhido se esquecer do que haviam sido.
Mas os conhecera como Calixco, Jarna e Dórmiel, como sabia do motivo porque fora muito difícil encontra-los: havia uma densa escuridão que os escondia.
Sentira, quando percebera suas energias, que deviam estar aprisionados por demônios.
Ainda cismando lentamente sobre sua descoberta viajou para o sul, para o deserto Frígio, onde dois deles estavam aprisionados pelos demônios.
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Quando de lá se acercou manteve-se oculto.
Controlando a energia e o coração desceu para dentro de uma grossa geleira, em direção para onde as energias dos dois pulsavam.
- Não interferirei, se essa for a vontade deles – recitou como um mantra centenas de vezes enquanto descia cada vez mais para as profundezas da geleira.
Então os encontrou, e a visão foi como um soco.
Os corpos dos dois estavam envolvidos numa energia escura, que devia preservá-los do frio extremo que ali vivia. Eles estavam acorrentados nas paredes acinzentadas, que um dia haviam sido brancas. Eram um tatun e uma mãe-da-mata, e sentiu que seus nomes eram Trínculo e Miranda. Mas, o que viu ao lado é que fez seu coração se apequenar: suas mônadas, ligadas aos corpos por finos cordões-de-prata, estavam aprisionadas, e estavam sendo sugadas por demônios gordos e macilentos, que riam a cada pulso frágil das mônadas.
Com o coração apertado Lázarus ficou observando a tortura terrível de que eles eram vítimas, se perguntando porque eles aceitavam tamanha punição.
Eram sete os demônios, conferiu, ao verificar todo o ambiente à volta, após fortalecer ainda mais seu ocultamento.
Apesar do seu impulso em trucidar os demônios e libertar seus irmãos, se refreou. Já tentara isso há muito tempo, só para ver que os que havia libertado novamente procuravam seus captores, a fim de continuar com as provações escolhidas. Talvez esse fosse o caso ali, se amargurou.
- Se for isso, só me restará aceitar as escolhas feitas – sofreu.
Mas, tinha que se certificar disso.
Aguardou por horas, até que os demônios permitiram que as mônadas voltassem para os seus corpos. A dor que sentiu quando viu a mãe-da-mata acordar num gemido fraco e pungente quase o desesperou. Então, o que se tornara tatun, também gemeu e abriu os olhos. Os demônios se divertiram demais quando os ouviram sofrer.
Pelas paredes Lázarus se moveu, até se postar num ângulo do paredão de gelo onde eles poderiam vê-lo.
Deixou ecoar um pequeno estalido na parede fria para chamar a atenção dos dois. Eles então se viraram lentamente para olhar em sua direção, e o viram.
Os olhos deles ficaram presos, abrindo-se com dificuldade numa fresta cheia de dor quando ele se mostrou como um espectro, que adensou um pouco mais quando viu sinais de reconhecimento.
- Nos ajude, senhor... - ouviu o sussurro quase inaudível, de um e do outro logo após.
Depressa se ocultou novamente, mantendo os dois sob atenção. Ficou apreensivo quando os demônios ficaram mais atentos a eles, cheirando e sentindo o ar, procurando o que fizera surgir esperança nos dois prisioneiros.
Por fim, não encontrando nada que os alertasse, riram abertamente, inspirando a dor que neles aumentara.
Lázarus sabia que teria pouco tempo para se decidir, porque era quase certo que logo os demônios iriam procurar por sinais de ocultamento, porque alguns deles olhavam desconfiados para aqueles lados, de quando em quando.
Pensou em se ir e procurar ajuda, mas sabia que os corpos dos dois seriam destruídos e suas mônadas enviadas para algum lugar fora do alcance de qualquer vigilante, e de difícil acesso até mesmo para os anjos, porque os demônios encontrariam os sinais de que estivera ali, por mais cuidado que tenha tomado. Não poderia se dar ao luxo de perde-los. Porém, sabia que não seria páreo para aquela quantidade de demônios. Provavelmente também seria aprisionado e ficaria como os dois ali.
Mas havia o pedido, havia o reconhecimento.
Os demônios guincharam de prazer e lascívia quando Lázarus se mostrou, saindo da espessa parede de gelo, a espada pulsando violentamente.
Sem lhes dar tempo para qualquer reação que não a surpresa, avançou com determinação contra eles. Mas, num reflexo muito rápido, antes que os atingisse eles já tinham em mãos suas espadas marrons e vermelhas, que emitiam fagulhas escuras. Num único movimento Lázarus cortou profundamente dois deles, rachando a cabeça de um terceiro com o grosso pomo da espada.
Talvez pelo lugar hediondo onde estava, nunca sentira tanta dor quando a espada marrom entrou pelo seu peito, saindo às costas, um pouco acima da asa. Recuou depressa, saindo da espada, só para encontrar uma outra, que entrou pelo seu lado esquerdo. Sem qualquer outra possibilidade de escapar deu um giro seco, cortando sua armadura e seu lado, atingindo o demônio que o atacara por trás. Enquanto ele caia um outro avançou, a caretona satisfeita e esgarçada, tal como dos outros dois que corriam para cima dele. Sentindo que a sua espada estava bem mais pesada que o usual se forçou a permanecer ereto, os olhos passando pelos olhos tristes e desesperançados dos seus irmãos acorrentados, que seguiam os movimentos com imensa tristeza.
Resignado ficou aguardando, se perguntando por quanto tempo ele e os outros dois seriam torturados, até serem, em algum momento, libertados.
Girou a espada várias vezes na mão, como um desafio, vendo com tristeza que ela já não pulsava com muita energia.
Então, sem que prestasse atenção, viu como seria bom se tivesse alguma ajuda. Novamente viu Miguel se afastando perto das nuvens de tempestade, e lamentou que ele não estivesse ali.
Foi então que ele surgiu ao seu lado, dominante, em paz, tranquilo. Sorriu ao olhá-lo. Mantendo os demônios sob atenção Miguel esticou o braço esquerdo, com a mão esquerda curando a grande ferida do lado de Lázarus. Ainda sorrindo avançou a mão e curou a perfuração no peito.
Refeito, Lázarus se aprumou ao lado de Miguel, o sorriso e a esperança renovados.
- Acho que devem ir – falou Miguel, a voz tranquila e até carinhosa.
Os demônios, confusos, olharam os anjos. Então se voltaram de vez para encarar Miguel, para a paz em seus modos e em sua voz, que parecia com o marulhar poderoso de um rio veloz.
A própria figura de Miguel se impunha. Ele se mostrava um pouco maior que um humano, mas o corpo era poderoso e irradiava uma aura de poder poucas vezes vista. Era um anjo guerreiro, e os demônios sabiam que, até mesmo se ele estivesse sozinho, não poderiam se impor àquele anjo.
Com um grunhido, que mais parecia um ganido, eles se afastaram e desapareceram.
- Você se portou com muita honra e respeito, e por isso, não poderia lutar sozinho – declarou Miguel com um grande sorriso. - Me sinto honrado em ter chamado por minha ajuda, Lázarus.
Lázarus não conseguiu falar qualquer coisa. Em silêncio o abraçou, totalmente emocionado.
- Achei que seria o meu fim – disse por fim, se afastando, as mãos ainda segurando os ombros do amigo. – Muito obrigado, por mim e por meus irmãos.
- Foi um prazer, meu amigo. Vamos? Temos seus irmãos para ajudar.
Com cuidado libertaram os dois, que deixaram na Casa Azul do bravo rei Cálibor, rei dos ellos, que os acolheu com grande cuidado, cercando-os de grande atenção.
Assim tranquilizados quanto a sorte dos dois, depressa partiram para o noroeste.
Quando Lázarus se deixou perceber pelo seu último irmão aprisionado, encarnado como um ellos, que se reconhecia como Cáliban, na face noroeste das Montanhas Sombrias, foi com grande alegria que Lázarus ouviu seu pedido de ajuda.
Não houve batalha nesse lugar, pois só a presença de Miguel e de Lázarus, que se mostraram tranquilos e determinados, fez os demônios, nove no total, abandonarem o local.
Assim que também o deixaram aos cuidados da Casa Azul, com um sorriso franco e luminoso, após um longo abraço nos quatro, Miguel se foi.
Lázarus suspirou, vendo os três irmãos deitados nos leitos. Passou os olhos pelo amplo ambiente branco de móveis maravilhosamente trabalhados, tão belos como tudo o que os ellos faziam. Com o coração enorme e feliz se sentou num banco de mármore e acabou se deixando distrair pela paisagem verde e ampla além da grande varanda e da porta em arco. Se deixou relaxar nos sons dos rios e cachoeiras que envolviam todo o palácio.
Voltou a si quando sentiu um movimento à esquerda. Virou-se e viu sua irmã mãe-da-mata se erguendo sobre os cotovelos, o olhar posto no seu rosto. Havia tanto amor e gratidão que ele não aguentou, e sorriu enternecido. Se levantou e sentou-se na sua cama ao seu lado. Então se dobrou e a abraçou com cuidado. Ela se abandonou no choro largado, as mãos ainda se forçando, apenas apoiadas com dificuldade em seus ombros.
Então viu os outros dois também despertos, os olhos agradecidos sobre si.
- Meu nome é Lázarus – se apresentou finalmente, e eu conheço vocês. Vocês não se lembram, mas nós somos irmãos.
- Lázarus, Lázarus – gemeu o tatun, o corpo sendo agitado por soluços. – Obrigado – gemeu bem baixinho.
- Obrigado, irmão, meu querido irmão – ouviu do ellos, que mostrava intensa e enormes olheiras, a voz enfraquecida mas feliz. – Não sabia o seu nome, mas o seu rosto sempre rondava os meus pensamentos. Ah, como chamei por você, Lázarus.
- Me desculpem. Eu não os ouvia.
- Eu te via em sonhos... – balbuciou a mãe-da-mata com tanta fragilidade que Lázarus temeu que desmaiasse novamente. – Demoramos muito para aceitar que precisávamos de ajuda. Então, quando nos separaram, achamos que tudo estava perdido.
- Está tudo bem agora, meus irmãos. Descansem e se restabeleçam logo. Não imaginam o quanto meu coração está feliz com vocês aqui. Estão em lugar protegido agora, e nada poderá ataca-los. Descansem.
- Agora eu sei que tudo estará bem – suspirou a mãe-da-mata se deixando cair no leito. – Você está aqui, e agora tudo está bem. Finalmente, estamos com você.
- Obrigado, minha irmãzinha. Sabe, nós éramos muitos, e eu encontrei os outros, e a gente se chamava de UmDosIrmãos. Se guardam alguma apreensão pequena em suas almas, mesmo que não a reconheçam, fiquem tranquilos. Eles estão nas experiências que escolheram, e nenhuma delas envolve demônios – sorriu se levantando para deixá-los descansar.