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A PRIMEIRA QUEDA

Por um sonho destruo o meu mundo, desfiguro minha alma, aprisiono um outro espírito. Por um sonho de querer, desisto de ser.

Foi numa tarde pesada e triste de inverno, sem cores, que eles caíram. Era o ano 4.810 da quarta era, uma era nervosa e criativa.

Colunas e esferas imensas de fogo, centenas precipitando-se pelo triste céu cinzento. Seres tomados pelo fogo de brilho intenso varando as nuvens cinzas e grossas, fogo atrás de fogo, rastilho de pó, fumaça e cinzas despencando em meio à silvos agudos e lúgubres do ar que era raivosamente incinerado, enchendo cada nicho do mundo, envoltos em dor e lamentos. Os pássaros estavam calados e toda a vida tinha a respiração suspensa. Por horas a fio precipitavam-se, tudo parecendo indicar que ainda levaria algum tempo para que cessasse.

Se a grande maioria não era impedida pelo solo, mas continuava como se ele não existisse, alguns dos caídos[1], talvez de uma ordem mais densa, abateram-se dolorosamente contra o chão. Montanhas foram arrasadas, rios ferveram, montes perfurados, florestas inteiras incineradas e postas abaixo.

E havia ainda outros seres candentes se precipitando como tristes luzes que se desfaziam antes mesmo que tocassem o solo, como uma pequena e frágil fagulha de uma distante fogueira. Mas havia alguns daqueles grandes seres que desciam poderosos num impacto seco sobre a terra rejeitada e não desejada, terríveis, os olhos em fogo postos à frente, o manto dobrado, uma espada ensanguentada enterrada no chão, a mão poderosa agarrada com força à terra, as asas de grande beleza rasgadas e manchadas de sangue, olhando a tudo que o rodeava com intenso ódio e rancor.

Lentamente eles se erguiam ou subiam das profundezas da terra, desfraldando as amplas asas multicoloridas, os olhos passeando dominadores pela terra daqueles sobre quem pesava seu amargo destino.

Danthar, o que chamavam de o Justo, estava parado num monte e viu tudo isso acontecer. Se encolheu pensativo e ficou quieto, respeitoso. Fora alertado em sonhos sobre isso pela feiticeira da tribo. Anjos em queda, foi o que ela dissera; anjos em desgraça, fora o que ouvira nos sonhos.

E agora, ali, bem à sua frente, tudo acontecia.

De repente pôs os olhos doloridos no céu ao ouvir como que trombetas agudas soando. Depressa se levantou, voltando-se para a sua aldeia. Cinco anjos vinham do céu, esses como torres de luzes inflamadas, tão ardentes e vivas que queimavam todo o ar à volta. Então os dois primeiros passaram reto e afundaram-se na terra, onde sumiram como se tivessem sido apenas fantasias, parte de um sonho a duvidar que realmente isso, algum dia, acontecera. O homem levantou os olhos, fixos nos outros três que se dirigiam para a aldeia, crente de que também passariam reto.

Calas[2] não era, naqueles dias, um grande povoado, mas contava com mais de 70 famílias. Era uma aldeia agrícola, que trocava suas mercadorias com a Cidade Branca[3] e com Marcata[4], principalmente, tendo como produtos principais milho e uvas. Algumas prensas de uvas, nada mais que buracos nas rochas onde elas eram pisadas, já produziam um vinho de excelente qualidade, muito apreciado na cidade Branca de Dhibar. A cidade ficava praticamente na foz do Rio Arda, na outra margem do rio, que ficava defronte aos montes Canvas. Ela praticamente foi destruída nessa primeira queda, pelas sucessivas precipitações catastróficas de anjos, que disso ela não se recuperaria. Seus habitantes mudaram-se para a outra margem do rio, e lá construíram uma nova cidade, que nomearam como Canvas, que existe até nossos dias.

O coração do homem saltou no peito quando o primeiro deles atingiu com fragor a roça de milho na várzea do rio e parte dos vinhedos, levantando uma imensa camada de terras, plantas e uma grossa e alta coluna de vapor. E, logo após, outro atingiu a encosta de um monte suave, explodindo seu topo. O terceiro, menor que os outros dois, atingiu com violência o lado oeste da aldeia. Apesar da distância pôde ver pedaços de corpos subindo ao ar em meio à confusão de terras e madeiras.

Desesperado, correu desenfreado monte abaixo. Tomado de urgência atravessou o vau do rio e chegou em meio aos lamentos, aos gritos e ao desespero dos seus. O homem justo, junto com alguns guerreiros e moradores, depressa organizou o recolhimento e cuidado para os atingidos. Então, junto com alguns mais destemidos, ou loucos, foi na direção do canto atingido da aldeia.

Uma neblina baixa e cheirosa tomava aquele lugar destruído. Pelo caminho só destroços e ruinas de corpos.

Em silêncio ficaram perfilados em frente à densa nuvem de vapor, e esperaram. Havia um som vindo de lá como o de uma respiração pesada. De repente recuaram assustados quando gritos e lamentos profundos encheram todo o ar. Os guerreiros e aldeãos se entreolharam apavorados.

Danthar olhou os seus, e contou nove, sendo que dois deles eram mulheres. Deu de ombros, se lembrando que estariam perto demais de anjos, e por mais formidáveis que os seus fossem, os outros sempre seriam anjos, ainda que caídos.

- Eles estão chorando de dor – sussurrou um que estava à sua direita.

- O que caiu no monte chora, tal como o do milharal.

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- E este aqui também chora sentido – observou outro.

- Todos choram – reconheceu um guerreiro. – Ouçam! O choro vem da própria terra abaixo de nós. Esses sons mais abafados são dos que passaram direto pelo chão.

- O que vamos fazer? – perguntou um homem assustado.

- A feiticeira os chamou de Vigilantes[5] e disse que não seriam inimigos, esses que tocam a terra – balbuciou uma mulher de olhos arregalados presos na cratera que parecia vibrar.

- Ao menos por enquanto – falou o chefe, parado quase ao seu lado, os olhos assustados e as mãos trêmulas que tentava controlar sem sucesso. – Talvez eles possam viver entre nós e...

- E se não for assim? E se eles, tão desesperados quanto parecem estar, pela desgraça que se lhes abateu, descarregarem sua raiva e dor sobre nós?

Houve um silêncio medonho nas fileiras dos homens, um silêncio repleto de medo e desesperança.

- Então, estaremos perdidos! – Danthar respondeu pesaroso. - Os antigos falavam de guerras entre os anjos e disseram que nenhuma nação de homens poderia sobreviver ao mais fraco deles.

O silêncio se tornou maior, os olhos fixos na nuvem do impacto, bem à frente. Nos olhos era fácil ver uma reza, um pedido de clemência, um desejo de que a esperança fosse suficiente para espantar a destruição.

Então, lentamente, um vulto foi se erguendo na neblina daquele dia cinza.

- Vejam – sussurraram os homens entre si, - este assumiu a forma dos homens...

- E tem mais dois se levantando ali, saindo da terra – apontou uma mulher de modos assustados. – Todos se deram essa forma dos homens, e um deles tem dois pares de asas.

- Olhem lá – murmurou uma mulher maltrapilha e magra, apontando o dedo ossudo para mais além, onde um ser imenso se erguia de uma cratera funda. – Aquela tem a forma de uma mulher. É uma demiana – falou com surpresa, vendo-a erguer-se em toda sua altura, os olhos fixos no céu tenebroso riscado de fogo.

Rapidamente voltaram sua atenção para os lados, quando um som cavo e duro percorreu a terra.

Depressa recuaram alguns passos, o medo em seus olhos, quando o primeiro anjo, que tinha o tamanho de um homem, mas diferente deste por possuir às costas um grande par de asas, se insinuou na neblina cinza. Devagar o viram abrir as asas em toda a sua extensão, o vulto cinza se denunciando mais claramente no meio da nuvem. Preocupados, viram que ele trazia, na bainha junto à perna, uma grande espada. Para alívio dos aldeões ele pareceu ignorá-los completamente. Com os gestos pesados e tristes o viram se ajoelhar, tocar a terra e encher a mão dela, que levou ao nariz. Pensativo a cheirou, os olhos perdidos no céu. Devagar deixou a terra voltar ao solo, onde fez um montinho que o vento logo levou embora. Num impulso violento fendeu a neblina e despareceu, seguido pelos outros, num redemoinho de vapor denso.

Por dias se estendeu ainda a guerra no céu mais baixo, perto da terra. Seres voadores se bateram nos céus do planeta, impedindo que os que haviam caído para lá retornassem, ou até mesmo tentassem subir.

Se ao morrer o corpo do homem volta à terra de onde foi tirado, tal não acontecia com os corpos dos anjos. Os que eram empurrados do céu tinham os corpos batidos com fragor no solo, onde ficavam estirados e abandonados por algumas horas como adormecidos, ou continuavam para dentro da terra, desaparecendo num sussurro de fagulhas em seu interior, até novamente despertarem em algum dia. Mas, há os que morrem ou desistem, e esses simplesmente se queimam no ar ou sobre a terra como fagulhas, retornando inexoravelmente para o Trovão, segundo dizem os necromantes.

- Alguns passam pela terra e desaparecem em seu interior – observou uma aldeota de olhos arregalados, junto com os outros na entrada da caverna do mago, na elevada face de um dos montes Canvas, a leste da pequena e judiada aldeia.

- Esses são os mais pesados, ou os mais revoltados. Eles foram exilados no ventre da terra – explicou o feiticeiro. – Muitos deles lá ficarão presos, e alguns possivelmente pela eternidade.

- E esses que estão como adormecidos em nossos campos? – perguntou um aldeão apoiado no cabo da forquilha, os olhos preocupados postos nos campos arrasados.

- Esses logo acordarão, e vocês não devem perturbá-los com suas presenças – avisou enfático, os olhos perdidos abaixo.  - Eles ficarão transtornados ao perceberem que estão presos aqui sob este céu, ainda mais quando souberem que a todos eles não será dada passagem, e que quanto mais insistirem, mais doloroso será, e mais pesados ficarão.

- Sabem se o rei Branco enviará ajuda? Nossas terras foram muito atingidas – gemeu uma velha mulher.

- Todas as terras, por toda a Mércia, estão passando pela mesma situação. Todos estão precisando de ajuda. Somos nós que temos que nos ajudar – falou, a voz apontando uma esquiva, como de algo que não quisesse pensar. Por que deveriam pensar nas dificuldades que teriam pela frente? – Um passo, logo depois do outro – recitou o mago devagar. – Talvez não seja tão ruim quanto pensamos. Há esperança, como eles também saberão que está reservada uma esperança para eles.

- Que esperança? – perguntou uma mulher visivelmente aterrorizada.

- A de ficarem aqui na terra, livres nela, enquanto pagam por seus erros.

- E quanto a nós? – perguntou uma outra, tão aterrorizada quando a amiga ao seu lado. – Dizem que esses que estão caindo, caem porque se revoltaram por termos sido criados – sofreu ela. – Que maldade é essa do Trovão ao prende-los aqui conosco?

- Sobre eles pesa a vontade do Trovão, e eles sabem disso, como sabem que serão lembrados pelos anjos que estão no céu e que eles temem, porque por eles foram vencidos. São eles que nos protegem da ira dos caídos.

- Mas, e se eles se angustiarem demais e se tornarem raivosos e acabarem por se esquecerem disso, e os anjos não chegaram e tempo? – sofreu um aldeão. - O que nós poderemos fazer?

- Então, só nos restará contar com a piedade desses que caíram...

[1] Anjos lançados contra a vontade para a terra. Para maiores esclarecimentos e informações, vide o ANEXO ao final deste livro.

[2] Cidade, hoje em ruínas, sobre a qual se precipitou o início da primeira queda dos anjos (*).

[3] Antiga cidade do Rei Branco. (*)

[4] Marcata hoje é apenas ruínas, mas já foi um dos mais importantes centros comerciais, passeio bem localizado com acesso tanto pelo passo Curvo quanto pela Passagem Romin (*).

[5] (*)

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