Tomei o cristal em minha mão e vi o fogo crescendo. Como posso ver o futuro, se ele ainda é feito de muitos?

Sol parou ao lado do pai, sondando o rapaz que entrava no acampamento.

O modo como ele caminhava a desgostou um pouco, e não entendia bem do porquê.

Mas, o mais perturbador é que via que ele, de alguma forma, se insinuava em seu futuro.

FlorDoAr, que já a observava há alguns dias, notou que algo a incomodava, como também percebeu que ela se perturbava quando o rapaz passava pela aldeia.

Falar com Ánacle não parecia ser uma boa solução, então aguardou, sempre se mostrando à disposição para que ela se abrisse. Mas, não dava resultado.

- Então, filha, o que a incomoda tanto quando esse rapaz aparece por aqui? Ele te fez alguma coisa? – perguntou um dia em que ela se mostrou ainda mais perturbada.

- Ele? Ah, não. A gente nem mesmo nunca se falou – disse, evitando olhar para ele, que conversava tranquilamente com Ariel.

- Então, mocinha, por que fica assim perturbada quando ele aparece por aqui? Não é a primeira vez que noto isso. Você sabe que ele e os dois anjos são amigos, não sabe?

- Sei, mãe, claro que eu sei. É que... – a menina olhou rapidamente para os lados em que eles estavam, e depois para a mãe, parecendo tomar coragem.

- Por acaso é ciúmes por Ariel dar atenção a ele?

- Não, claro que não. É coisa boba, sem importância. Deixe para lá...

- De jeito algum, mocinha. Pode ir falando – falou, o rosto sério examinando o rosto da menina.

- Ah, é que ele me incomoda – falou se decidindo. – Eu vi algumas coisas do futuro, e ele está lá.

- Ao seu lado? – se interessou a flor-do-fogo, bem sabendo que sua filha tinha um raro dom de seguir um pouco à frente na linha do tempo.

- Arghhh... – fez com nojo. – Claro que não. Ele está em nosso meio, e há muita confusão por aqui, principalmente à frente, muitos dias à frente.

- E ele nos ataca? – estranhou a mãe.

- Nossa, não, claro que não. Ele sofre muito para nos defender. Ele se preocupa muito co... É que sinto uma maldade nele – falou apressada.

- Você, se bem me lembro, disse a mesma coisa do Mulo, quando Lázarus o trouxe para cá – sorriu, confirmando a noção do que estava acontecendo. – E hoje é fã dele.

- Sim, eu disse. Mas, o mulo é diferente. Ele é muito forte – falou abrindo os braços para demonstrar o tamanho do poder dele. - Mas ele...

- Sei, já sei. Você é apaixonada por Valentina, e confia nela. E por isso, se deu bem com o Mulo também, não é? – cutucou com um largo sorriso.

- É, acho que sim. Mas, o Mulo é bom...

- É o Avenon não é? – FlorDoAr sorriu, fingindo confusão. - Ouvi dizer que a escuridão do Mulo é muito maior. Um juguena, se lembra? Nós até ajudamos eles quando eles foram confrontados por suas...

- Não, não é isso – Valentina falou apressada, tomada de confusão. – Bem, é só que eu não gosto disso.

- Não gosta disso o que? – perguntou tentando não sorrir, se perguntando se não estava sendo muito má ao espremê-la daquele jeito.

- Do jeito dele, sabe? Ele parece que fica sempre rindo, não é sério... Sei lá...

- Quer que eu converse com Ariel ou Lázarus sobre ele? Sabe, pedir para que o mantenham longe de você – sugeriu com um sorriso malicioso no rosto.

- Não, pode deixar, mãe – falou apressada. - Pode ser apenas um mal-estar. Está tudo bem – tentou tranquilizar, se afastando para se juntar às suas amigas.

A partir desse dia, FlorDoAr passou a prestar mais atenção no rapaz, e viu o quanto ele era atencioso e amável com todos. Mas, como todos, sabia que era um dahrar anaquera. Porém, tudo bem, isto estava certo. Ela via honra nele. E, como se não bastasse, tal como fizera com Mulo, Lázarus providenciara para que ele encontrasse equilíbrio com sua escuridão.

- E nós com nossas escuridões, será que somos tão equilibrados? – pensou, a mente se perdendo por alguns segundos. – Mas, ... Ele e Sol??? – cismou, os olhos seguindo o rapaz.

Alguns dias depois a flor-do-fogo viu quando Ariel pousou suave ao lado da aldeia, acompanhada do filhote Arrivandro, que passara a ser visto muito em sua companhia. Assim que eles surgiram dentre as árvores foi até eles e os recebeu com enorme sorriso. Gostava demais daquela vigilante, e não só ela. Todos na aldeia consideravam demais os dois. Mas, hoje, havia algo mais para conversarem.

FlorDoAr não pode deixar de rir quando Arrivandro, ao dar com Sol um pouco distante, rugiu suave tomado de alegria. Com um impulso o viu descer ao lado dela, que já o aguardava com um grande abraço preparado.

- Oi, tia Ariel. Que bom que chegou – cumprimentou num grito festivo, ainda abraçada com força ao filhote.

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As duas ficaram de longe, olhando esquecidas os dois, que pareciam entretidos numa conversa animada.

- Eles estão armando alguma coisa – sentiu Ariel.

- E você já sabe o que vão fazer, não sabe? – FlorDoAr riu satisfeita.

Nem bem terminara de falar viram quando ela saltou para as costas do dragão, se aferrando com as pernas no lado interno de suas patas dianteiras enquanto se segurava com força com uma das mãos em um dos seus espinhos do pescoço.

> Tomem cuidado vocês dois – FlorDoAr gritou, vendo os dois se avermelharem como suaves brasas tocadas pela brisa. Então, num movimento lento e incrível seguiram as patas dianteiras do dragão se descolarem do chão, logo seguido por todo o seu corpo, urros e gritos de alegria se lançando para o céu azul.

Como se fosse uma festa viram muitos saindo de suas cabanas para os terreiros, esperando. Então, em cada passada que eles davam sobre eles, toda a aldeia gritava e abanava as mãos, sorrisos imensos nos rostos.

Em silêncio ficaram acompanhando os dois, que desciam, apanhavam alguma outra criança e a levava para um passeio no ar, e mais uma e outra.

- Nossa... Como é bonito isso, esse ar todo cheio desses gritinhos e risos – falou FlorDoAr com o coração inchado de alegria.

- Acho que logo vou perder meu companheiro – Ariel riu, fazendo menção à Arrivandro.

- Também, acho. Mas, parece que tudo o que amamos tem seu tempo para se afastar de nós, não é mesmo? – falou tomada de alegria, arrastando a vigilante até a cabana central, onde estavam preparando o almoço.

- E onde está o Lázarus? Ele não vem?

- Vem sim, mais tarde. Ele está com o Avenon e o Mulo mais para o norte.

- E a Valentina? Por que não a trouxe com você?

- Ela aproveitou para ficar com sua família. Eles foram deixá-la na aldeia dela, antes de subirem para o norte.

- Entendi... Avenon... – refletiu por alguns segundos. - Nunca perguntei, mas quem é ele? Realmente? Eu sempre o vejo sozinho procurando por vocês, e justamente quando vocês aparecem aqui.

Ariel sorriu, compreensiva. De forma muito sutil sentira o que ia na alma da amiga, assim que pousou. Se recriminou por não ter falado com eles sobre o rapaz que sempre os procurava ali. Agora, pensando nisso, sempre julgara natural a presença dele, talvez pela proximidade e comprometimento que havia entre Lázarus e ele.

- Ele é um velho amigo do Lázarus.

- Velho amigo? Sei que se arriscou muito por ele, apesar de não ter entendido direito. Quer dizer, não entendi nem mesmo com o Mulo e... Ah, deixa para lá. Mas como é isso? Ele é tão jovem e... Ah, entendi. Ele é como você e Sol?

- Acho que é mais. Lázarus é muito, muito velho, você sabe.

- Sim, sabemos disso. O nome Sênior não nos é estranho.

- Pois esse Avenon é da mesma família dele.

FlorDoAr ficou observando Ariel por algum tempo, a surpresa estampada no rosto, denunciada pela boca aberta, abandonada. Então, se recuperou.

- Nossaaaa!!! Tão velho assim?

- Pois é.

- E ele desceu como um dahrar anaquera? A escuridão é tão forte, quer dizer, um pouco menos forte que a do Mulo. Estou certa?

- Sim, e não! Mulo é quase um dahrar puro. Avenon veio de uma manira-ellos e um anaquera. O que a preocupa? Há algo que eu precise saber?

- Não, não é nada – suspirou pensativa. - Sabe, conheci muitos anaqueras, e confesso que, apesar do que dizem, todos eles eram honrados – sorriu.

- Preocupada com a Sol?

- E por que eu estaria preocupada com ela?

- Eu acho que sabe – quase riu.

- Fale – sorriu por sua vez.

- Parece que a Sol e ele têm grande possibilidade de uma estória juntos.

FlorDoAr baixou a face, um sorriso pequeno no rosto, logo se voltando como que por acaso para encarar a vigilante.

- Viu alguma coisa?

- Ah, minha amiga, o futuro é um novelo difícil de se olhar, e eu já não tenho a capacidade que eu tinha quando... quando eu era uma demiana de verdade – sorriu um pouco triste.

- Que coisa mais boba – a flor-do-fogo deu uma cotovelada gentil nela, enquanto ateava fogo na madeira com um toque distraído dos dedos. – Você é a minha vigilante favorita, e aposto que de quase todos aqui – riu satisfeita, vendo a vigilante se iluminar novamente.

> Mas, sim, a Sol me falou alguma coisa dele, e aposto que você está certa no que disse. O incômodo dela é bem sugestivo. Ela pode olhar para frente, acho que não tão bem quanto você, mas pode. Em todo o caso, o que ela me falou é que viu algo ruim nele, e sei que isso não é verdade, sendo mais uma tentativa de tentar entender e aceitar o que pode estar sentindo. Mas, o que me preocupou de verdade é que ela disse que havia algo ruim no futuro.

Ariel levantou o rosto, vendo nesgas do céu pelo teto de sapé.

- Ela provavelmente está certa. Vocês já sabem dos dahrars. Muitos deles são realmente muito ruins, porque eles enlouquecem quando os poderes escuros se tornam insuportáveis, quando são confrontados pelos poderes da luz que eles também carregam. Praticamente isso ocorre com grande número deles.

- E eles não têm um Lázarus por perto – suspirou FlorDoAr.

- O que Lázarus fez foi loucura – parou um momento, cismando. - Apesar de ter sido uma loucura controlada – disse após pensar por um momento. – Avenon e Mulo não corriam o risco de enlouquecerem, mas poderiam fazer um tremendo mal a outros e a si mesmos se o Lázarus...

- Me diz, o que acha que teria acontecido se os dois, ou um deles, mostrasse que acabaria enlouquecendo? Qual você acha que teria sido a reação de Lázarus?

Ariel ficou em silêncio, os olhos perdidos no fogo.

- Algo não muito bom – sussurrou. - Mas, o bom é que não precisamos pensar nisso, porque nosso aqui/agora não tem isso, tal como o risco que ele correu.

- Foi uma loucura, de qualquer jeito – falou FlorDoAr, passando a mão no ombro da amiga. – Ele se arriscou pelos amigos que ama. Isso é muito honrado. E quanto ao futuro que vocês viram?

- É uma possibilidade muito forte. Todos nós sabemos que muitos anjos e muitas pessoas e caídos caçam os dahrars. O ódio alimentando o ódio. Onde isso descamba parece até natural, não é mesmo? Apesar de que às vezes sou forçada a ver que os dahrars não tem o ódio aumentado por serem caçados.

- Sabe que também já andei pensando nisso, eu e o Ánacle e muitos aqui da aldeia? Há muitas estórias terríveis desses dahrars. O mundo não aguentará todo o sofrimento que eles estão dispostos a fazer vingar aqui.

- Também entendo assim, FlorDoAr, mas também há muitos deles que são bons e nobres.

- Como o Avenon, o Mulo, ...

- Sim, como eles. É isso que Lázarus, Mulo e o Avenon estão fazendo, e eu junto com eles, de quando em quando. Nós os procuramos, avaliamos, e protegemos os que podem ser protegidos.

- Encontraram muitos?

- Um bom número. Ah, FlorDoAr, e como são incríveis. São tão belos seres quando sentem que podem confiar e se sentem protegidos. Mas, o maior número está em desequilíbrio. Acho que logo teremos problemas.

- Então a guerra já está sobre nós...

- Sim, e tudo já começou, com essa perseguição desenfreada aos dahrars... – revelou preocupada. – E, apesar de todas as vozes que se levantam mostrando que há outras formas de pôr freio neles, como aprisionamentos e controles, e não apenas a destruição descontrolada que estão empreendendo, os caçadores não querem ouvir – sofreu.

- Mas, essas outras formas não seriam uma forma de dominação?

- Posso estar muito errada, minha amiga, mas acho isso mais suportável que a morte.

- Pois eu, se estivesse no lugar deles, preferiria a morte. Sabe, outra oportunidade renovada ao invés de uma deformação imposta e forçada no que sou.

Ariel parou o que fazia e olhou para a amiga, uma pergunta rondando na mente.

- A quem foi dado o direito de submeter um outro? Eu posso me dar esse direito?

> Realmente, minha amiga, esse é um assunto que não se pode tratar com arrogância. Sabe, uma vez reencontrei uma sábia que me disse que a vida, essa vida, pode ser uma fantástica aventura. Que bom que ela encontrou uma sábia como mãe – Ariel falou, ouvindo mais gritos de euforia do terreiro, que logo foram subindo no céu.