Eu ouço a respiração que procura conter; eu sinto a pulsação do coração em meus ouvidos, que tento ignorar. Qual de nós é o caçador?
O demônio ficou estático no caminho, observando-o por algum tempo, olhando-o pelo canto dos olhos. Havia contrariedade e animosidade em seu ar, mas também um pouco de curiosidade, o que o impedia de atacar.
Ele deixou que a penumbra de que se fazia se estendesse um pouco no caminho. Sabia que era ele que aquele nefelin imundo procurava, e queria deixar bem claro que não queria qualquer proximidade.
Uivo parou. Em silêncio ficou observando a penumbra triste que bloqueava o caminho. Não sentia nada, nem mesmo expectativa. Havia apenas um silêncio indiferente, que apenas aguardava.
Quando a penumbra pareceu se adensar mais e o frio aumentar Uivo se mexeu, encarando abertamente o lugar de onde, sabia, o demônio cismava.
- Sei que está aí... – falou.
O demônio se ergueu na penumbra, a força da fúria se elevando. Tomado de um ódio frio e duro encarou a criatura. A arrogância daquele ser o incomodava, e ficou se perguntando por que permitia que ele continuasse a respirar.
- Curiosidade! – sussurrou para si mesmo enquanto se posicionava de frente para o intruso, mesmo sabendo que essa não era a verdade toda.
> Eu sei, porque eu permiti que soubesse... Por que veio? Procura perdão?
- E por que eu deveria esperar perdão? – Uivo estranhou a pergunta.
- O presente que lhe dei... Você o destruiu, botou for a.
- Agradeço o presente. Mas aquela presença era como uma mancha, à qual não vi qualquer utilidade. Era desnecessária e me incomodava.
- Você realmente é um nada, totalmente desprezível... Por que veio? - insistiu. - Há muitos motivos em você, há muitas perguntas.... Medo, também eu sinto – ameaçou um sorriso debochado.
- Medo?
— Sim! Muitos medos... Medo do demônio que carrega se tornar mais forte que você e não ir mais embora, medo de se perder na escuridão. Mas, o maior deles, eu acho: medo de que eu possa fazer algo contra seus amigos. Se apenas um desses medo pode te enfraquecer, imagine todos juntos – riu debochado. – Você é muito fraco...
O silêncio momentâneo o divertiu. Com um movimento simples, ocultando a penumbra que era, se aproximou pelo flanco e rodeou Uivo.
> Como seria fácil destruir esse ser – saboreou.
- Eles não precisam da minha ajuda...
Com curiosidade o velho demônio viu uma frágil barreira se erguer, e sorriu. Sabia que ela poderia se adensar contra sua vontade à sua aproximação. Toda criatura tinha essa defesa arcana. As criaturas têm essa defesa quando qualquer outra força se aproxima pelos outros níveis. E tinha certeza de que a defesa desse deveria ser interessante de testar. Mas decidiu que não queria isso, por enquanto. Havia outras coisas para pensar, e não queria perder seu tempo com alguém tão pequeno e fraco.
- Engano e mentira. Veja, todos vocês precisaram. Os "fantasmas" fizeram um bom papel?
Uivo observou a mancha indistinta, confirmando o lugar de onde viera a voz.
- Desconfiava que o ataque tinha sido por obra sua.
- Eu achei muito boa a atuação deles... Sei que desconfia de que eram anjos, caídos, mas ainda anjos. Ah, mas vou lhe contar um segredo: os dos anjos caídos foram muito fáceis de manipular... Pena que nem como fantasmas eram críveis...
- O que buscou com esse ataque? Por acaso pensava que com o ataque poderia despertar em mim o que havia depositado? Que pena, não funcionou...
- Se era isso que pensa que eu buscava, então você estará certo. Não deu certo.... Mas o que vejo é que você se julga muito grande, que essas coisas estão surgindo e girando por você. Menino, as coisas nem sempre são sobre nós... Essa arrogância é uma grave fraqueza para um guerreiro.
- Tal como você?
- Errado. Não estou acomodado, ou apavorado para ir além – sorriu maldoso. - Ah, mas saiba que você não me interessa. O que lhe dei, não lhe dei por força de parentesco, muito menos por solidão, como sei que já pensou. Você tinha algo naturalmente dentro de você, adormecido, e eu apenas lancei uma fagulha para que começasse a queimar. O seu sofrimento a partir disso é simplesmente maravilhoso. Mas, estou cansando disso. Que morra ou sobreviva, que se torne um pequeno demônio ou um nada, não me importa.
- Então, por que se preocupou em me achar, por que depositou parte de você em mim? O que esperava?
- Ah, que bonito... Procura uma finalidade... Digamos que curiosidade e propósito. Você tem lá suas utilidades.
Uivo ficou observando com cuidado o demônio. Então, de repente, tudo pareceu fazer sentido...
> Entendi... Os anjos... Anjos contra anjos. A sua essência em mim os obrigaria a se mostrarem. Mas não é só isso, não é mesmo? É ainda mais que isso, não é? Jogos dentro de jogos, elaborados, pensados, maturados por longo tempo...
- Talvez... Anjos e demônios... Apenas uma vontade os separa, uma aceitação de um ser de ser...
- Os anjos, os fantasmas de um lado, e o demônio que eu levava, do outro. A curiosidade dos anjos... Não o preocupa eles terem resgatado os caídos?
- Não funciona assim com os anjos. Eles não agem assim. Eles são como insetos, com consciência aglutinada, coletiva. Eles não são individuais, dualistas. Os caídos, ... Não há esperanças para eles, e toda a criação sabe disso. O que são está corrompido na essência dos anjos e levará quase uma eternidade para ser arrumado, se puder ser. Eles se perderam e não poderão ser recuperados, a não ser que eles mesmos se resgatem. E isso não irá acontecer... Eles serão adormecidos, alguns, enquanto outros serão obrigados a descerem como pessoas ou humanos. que são, que se mantém – riu maldoso.
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- Pode ser que sim, pode ser que não... Isso não me interessa.
- Então, por que não segue seu caminho e se vai? – alfinetou com sarcasmo, se virando para ir embora.
- Porque há ainda uma coisa que vim buscar.
- Será que isso vai ser interessante? – zombou o demônio, voltando-se e fixando a atenção novamente em Uivo.
- O que foi buscar, quando sondou através das sombras da floresta, quando a comitiva estava sendo formada?
O demônio examinou Uivo com cuidado.
- Você tem que convir que aquele foi um momento bem interessante, não foi? – sorri maldoso, como se escondesse algo. - Havia aquela inocência, todos achando que iam lutar contra o mal, quando na verdade levavam junto o mal que eram. Isso é, se eu fosse eu que estava onde você disse que eu estava... Por que acha que era eu? Há outros demônios nessas terras, e alguns outros que nem são destas terras.
- Sei que era você. Eu o reconheci quando o vi sobre a montanha.
O demônio ficou um tempo parado, pensando. Então, como se decidisse que não havia nada de interessante que o fizesse mentir, sorriu.
- O que acha que eu fazia?
- Eu acho que estava espionando, eu acho que você estava pensando em trair sua terra.
- Terra... Demônios não possuem terras - debochou.
- Sei que não... A sua maldade é uma maldade inteligente. Você quer dor, quer desespero, quer mágoa e ódio, quer o sentimento amargo de vingança. É disso que se alimenta, é isso que busca. Você quer aprisionar almas, quer destruir apenas pelo prazer infrutífero de destruir. Você se sente muito bem com a destruição e a dor que a guerra traz.
- Infrutífero? Ah, como você é inocente! Veja que a destruição é a construtora do mundo idealizado pelo Trovão. A paz e o desprezível amor e respeito nada constroem. Ele estava cansado de se ver amor, tanto que estava inerte nesse mar complacente e inútil. O caos é o que o Trovão desejava, e foi para isso que ele nos tirou de sua vontade.
- Um demônio altruísta – riu-se Uivo. – É esse o papel que julga estar reservado a você na guerra que está para vir?
- A guerra, criança, já começou há muito tempo, não se deixe enganar quanto a isso.
- Sei que possui alguma ligação com os demônios das montanhas, e sei que acha que pode manipulá-los. O que o liga a eles?
- Digamos que uma simpatia, um acordo antigo – riu zombeteiro. – O que mais poderia ser? Como está confuso em ser demônio, talvez você também esteja ligado a eles, não?
- Não, não estou ligado. Sou livre! E quanto a você, que acha isso importante, lhe digo que qualquer acordo que tenha firmado com eles e ao qual dá tanta importância o torna apenas mais dispensável – zombou.
- Ah, finalmente, agora vai me dizer o real motivo pelo qual você veio até mim... – riu sarcástico o demônio.
- Pois observe, e assim irá descobrir que são eles que o estão manipulando. Sei que foi você que denunciou a localização dos meus pais ao demônio, e que com ele fez uma aliança, e que foi você que lhes abriu boa parte dessa terra.
- Se for isso, o que pretende fazer para me parar?
- Eu? Eu apenas irei combatê-lo se se aproximar demais – falou com tranquilidade. – Não sei o papel que irá representar nos tempos que estão se anunciando, mas sei apenas que não irá prevalecer.
- Se é assim, então por que se preocupou em vir até mim? A verdade, menino...
- Apenas para confirmar minhas suposições. Agora as comprovei. É sempre bom saber o que move os inimigos.
- Inimigo – agigantou-se o demônio. - Se acha esperto e poderoso em vir me desafiar? Não é sensato desejar como inimigo aquele que o vê como um nada.
- Um nada... Você usou meus pais para atrair o demônio das montanhas, e você me usou para chamar a atenção dos anjos e testar suas vontades. Quem está criando inimigos?
- Se acha assim tão esperto?
- Tenho pena de você! Você é que se acha incrível, e agora, sabe que despertou a atenção dos anjos sobre você. Se eu vi seus planos tortuosos, o que acha que os anjos sabem, agora que o viram?
Sem mais qualquer palavra Uivo se virou para tomar o caminho de volta. Sabia que não precisava ter procurado o demônio. Tudo o que havia dito, e tudo o que havia sentido, já sabia. Mas era bom deixar para trás aquele peso escuro, aquela solidão triste, como era melhor ainda deixá-lo inseguro quanto aos dias que estavam por vir.
- Você disse que irá me combater se eu me aproximar demais... – ouviu a voz do demônio, tão perto como se falasse junto ao seu ouvido.
Uivo parou no caminho e se voltou, os olhos examinando o demônio, que havia se corporificado.
> Pois não seria hoje, e agora, um bom momento para isso? Por que esperar por algo que podemos ter agora, verme? Eu falei para aquele inútil do caído que você era presa fácil, porque não se aceitando como demônio estaria muito enfraquecido. Mas é fácil ver que ele não fez o que mandei. Então...
Uivo não teve tempo para se esquivar. De repente o demônio estava sobre ele, socando-o, ferindo-o com esporões feitos de sombras e dores.
Uivo girou e empurrou o demônio com violência, escapando dos golpes. Um pouco zonzo se afastou, totalmente poderado em pumacaya, procurando se recuperar rapidamente.
> Vamos, criança, mostre-me de uma vez por todas tudo de que é capaz. Você não continuará a partir de hoje, a partir de agora – ameaçou, o fel escorrendo alegremente da voz.
- Confesso que vou adorar isso – Uivo falou se poderando em demônio de que era feito. Sabia que ainda estava um pouco fraco pelos enfrentamentos que tivera com os fantasmas. Agora via que devia ter esperado mais um pouco para procurar o avô. Ainda, sabia que o demônio de que era feito não era tão poderoso ou tão tomado pelo ódio e desprezo quanto o velho, mas ele tinha um poder que o outro nunca poderia ter: o de lutar por algo consciente, por algo de valor. Esse poder, essa natureza, era mais consistente, mais sólido e controlável. Esse poder não lhe era estranho; ele era parte do que o fazia ser o que era.
Como uma explosão atacou, colhendo de surpresa o velho demônio. O golpe atingiu o demônio de lado, fazendo-o recuar surpreso.
- Interessante... Aprende rápido...
- Mais do que pode imaginar...
Sem dar tempo atacou novamente. O demônio, sem dificuldade, se defendia dos golpes que Uivo desferia numa velocidade estonteante.
A floresta ao lado foi se afastando, morrendo em círculos que cresciam.
Subitamente os dois se separaram, cansados.
O demônio, após rapidamente avaliar Uivo, sorriu cinicamente.
- Seus dias contados terminam aqui, terminam hoje. Olhe bem para esse céu e essa luz, para essas árvores, para tudo o que ama e que te faz, porque hoje isso deixará de te pertencer. A sua vida será minha... E, depois, as comitivas e os conselhos. E, só então, depois que eu tiver destruído tudo o que você ama, aí sim a menina... Talvez a tome como mulher por um tempo, só por diversão – riu cínico. – Quem sabe? Juro que vou perder um bom tempo pensando sobre ela. Ou, sei lá... Talvez a mate logo... Ainda não sei...
Uivo inspirou fundo e se poderou com tudo o que tinha, com tudo o que era. Sempre soube, desde o começo, que não poderia fazer frente àquele demônio, tão experimentado e com tantos anos de enfrentamentos, mas tinha que tirar sua atenção, tinha que aumentar sua confiança.
- Se acha que pode me vencer, que tente. Você não irá mais maquinar contra essas terras e seus povos.
- Seu tolo, que parte à procura de glórias; ainda não percebeu a sua inutilidade e o quanto isso é inglório? Pois saiba que eu já lutei por essas terras... - vociferou, - e fui traído infamemente, e fui esquecido.
O demônio avançou, a determinação fria nos olhos vermelhos quase negros.
> Espero que de onde estiver, quando eu o tiver destruído, possa ouvir os gritos daquela menina chorando o seu nome – vociferou. Vai se sentir mal quando ela ficar ansiando por mais carinhos meus? – Debochou.
Aproveitando o momento de descuido de Uivo ao dar atenção à ameaça que fizera, com um golpe poderoso girou Uivo no ar e o socou contra o solo, no ato drenando sua energia com uma voracidade terrível.
Uivo sentiu que não havia mais tempo, que tudo estava se desfazendo. Suas forças falharam, e resistir àquele poder estava se mostrando cada vez mais difícil. Se sentiu frustrado e raivoso; nunca imaginara que seria vencido com tanta facilidade. Tentou resistir, mas sentia um peso nos músculos, um peso imenso em sua vontade, sua atenção perigosamente se fragmentando e se perdendo. Não teria mais tempo, entendeu, enquanto sentia que sua consciência começava a fraquejar.
No último instante, quando teve a certeza de que seus dias haviam acabado, viu uma lâmina de luz avançar entre ele e o demônio. Suas forças falharam quando o demônio o soltou e se virou. O grito de ódio supremo se afundou com ele na escuridão nauseante e encheu seus sonhos. Havia aquele grito que envolvia visões de um demônio que lutava contra algo em seu cérebro e contra um anjo e um ellos, e de como o demônio se afastava.
Porém, havia algo que sentira mais que ouvira do demônio, e dizia algo sobre uma comitiva. E viu que o demônio extraíra um rosto de suas memórias. Sua mente latejou, se perguntando se teria como impedir que ele concretizasse suas intenções.
Mas então tudo se afundou numa pesada paz.