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A ESTÓRIA DE UIVO

O que vejo me dói. Campinas ardentes, fogo que não queima, mas que faz agonizar a alma. Gostaria da explosão do sol e da destruição das vidas, me contentando com a destruição da minha. Essa lavareda suave e destrutiva me agonia, me obrigando a ansiar por um fim, que não antevejo. Sofrimento, sofrimento...

I

Uivo se ergueu, maravilhado com a presença. Ela era mais pressentida do que observada. À sua frente o Avhu pulsou e Uivo o reconheceu. Tenebe estava ali, e seu brilho não era um brilho puro. Preocupação emanava do Avhu, era fácil perceber.

- Você sabia do demônio, não sabia? Tantos e tantos anos me ocultando, me conduzindo.

O Avhu pulsou forte.

Por longo tempo Uivo ficou conversando com a forma pensamento enviada por Tenebe, que lhe explicou certas coisas. Mas, o mais importante, foi a confiança e o carinho que ele lhe transmitia, e que lhe dava esperanças de que tudo ainda iria passar.

- Tudo parece feio, negro e tumultuado, meu filho – falou Tenebe pelo avhu. - Mas isso não muda o que você é. Você continua Uivo. Você é mais forte que isso, que também é sua natureza. Tudo vai dar certo, filho. Confie, eu sei! – ouviu ressoando dentro de sua alma.

O Avhu pulsou mais forte e se desfez.

Uivo suspirou, conformado.

II

Tenebe reagiu ao toque da mão em seu ombro, a face triste focando o chão.

Devagar subiu os olhos para Adanu, e sorriu.

- O que há, velho amigo? – ouviu a pergunta preocupada de Adanu. – Vi que ficou meio alheio, e que agora está tomado de tristeza. Preocupado com Uivo? – perguntou se arrumando num lugar ao seu lado.

Tenebe acompanhou absorto os olhos de Adanu que desciam. Então virou a cabeça, examinando a comitiva, confirmando que estavam sozinhos.

- Sim, Uivo. Você sabe das notícias que têm chegado pelos pássaros.

- Recebi um relatório estranho, preocupante e extenso do conselho – informou.

- Isso é bom... Há muitos boatos chegando... – sussurrou com amargor.

- Senti que enviou um Avhu. Foi para Uivo, não foi?

Tenebe ficou um tempo em silêncio, avaliando a pergunta.

- Sim, finalmente eu consegui fazer chegar nele um Avhu – confessou. – Sabe, uma boa parte do que ouvimos é verdade sim – declarou. – Destruir montanhas e acossar o sol, não – sorriu triste.

- Ele explicou por que atacou seu comandante? – perguntou, a voz quase num sussurro.

- Sim... Esse comandante estava dominado por um demônio. Esse comandante matou uma mãe-da-mata, amiga de Uivo.

- O mesmo relato que veio pelo conselho – falou.

Tenebe se virou, o rosto sério e preocupado.

- Adanu, além de comandante dessa comitiva, você é também um amigo, e merece saber, porque o destino parece que não poderá mais ser ignorado. A história do Uivo... Adanu, eu encontrei Uivo quando era um bebê, e o criei como um filho, você sabe. Eu o encontrei num buraco de cobra e o resgatei porque me pediram. Recebi um chamado desesperado da mãe dele, que me viu e confiou em mim. Ela sabia que não ia poder sobreviver. Ela era um demônio como nunca vi, mas era..., como posso dizer, nobre. Um puma, um pumayacaya, desceu as montanhas frias, um sujeito nobre e valoroso, e eles se apaixonaram, e tiveram uma criança. Mas eles estavam sendo caçados.

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- Caçados... – incentivou Adanu, ante o silêncio pensativo que tomara Tenebe.

- Sim... – retomou. – E sabe quem os caçava?

- Nem imagino...

- Um dos velhos, um dos grandes demônios...

Adanu se enrijeceu.

- Um dos grandes? – assustou-se.

- Isso...

- Mas, por quê?

- Ao que parece ele estava atrás do puma, o que veio das montanhas frias. Ele os encontrou e matou os dois. O bebê escapou por muito pouco.

O velho curupira não se mexeu, a atenção em Tenebe, a mente fazendo ligações e conflitos.

> E a dêmona, a mãe dele, ela era uma descendente direta desse velho demônio...

Adanu permaneceu em silêncio, a mente se enrodilhando acelerada. Por fim, com um suspiro se acalmou.

- E esse velho demônio... Seria Trevas, Escuridão ou Mercator?

- Não me disseram se seria de um deles. Apenas disseram que existem muitos demônios antigos nesse universo.

- Então Uivo é descendente de um velho demônio... – suspirou.

- Sim... Ele é um filho de uma dâmia e de um pumayacaya. Uivo é um pumacaya.

- Por Trovão... – suspirou. – Contou isso para o Uivo?

- Não, não contei. Não reuni coragem – revelou, parecendo meio envergonhado.

- Por que não?

- Por que aumentar seu desespero? Além disso, não tenho certeza absoluta disso.

- Como soube disso? Foi a mãe dele, ou o pai?

- Não, não foram eles. Foram anjos... Eu me reuni com eles há algum tempo, e eles me contaram a verdade sobre Uivo. Vi que eles têm grandes expectativas nele, e temores também.

- Pelo Trovão – suspirou abobalhado com a estória. - O que está acontecendo com Uivo, Tenebe? – perguntou, a voz baixa e tensa. - Ele descobriu o que é? Ele matou o comandante como demônio? O que é a verdade? Ele está mesmo virando, ou virou um demônio? O que, o que podemos esperar dele...

- Tenha calma, meu amigo – pediu. - Não, ele não matou o comandante como demônio. O que descobri é que ele soube que era parte demônio bem depois. Ao descobrir que tinha algo estranho nele, ele se afastou de todos. Ele está confuso, sofrendo, lutando duramente contra sua parte demônio.

- Ele está apartado?

- Sim. Ele está se esquivando de todos. Você sabe da batalha dele contra os que atacaram o danush de Danbara, e que quase os atacou também. Ele está tentando se entender... De vez em quando se aproxima, e depois fica longo tempo afastado...

- O que você acha, Tenebe? – perguntou, o rosto sério.

- Sobre?

- Ele é um perigo?

Tenebe ficou em silêncio, os pensamentos perdidos.

- Perigo, Uivo? Sim, ele pode se mostrar extremamente perigoso, enquanto não se decidir. Eu o estou acompanhando. Por enquanto, ele está vencendo sua índole. Mas, ele sempre teve essa parte demônio, mesmo que não acordada. Ele nunca foi perigoso para nós. Sempre foi honrado...

- Temos que temê-lo? – Adanu desconsiderou o discurso de defesa de Tenebe.

- Não, tenho certeza de que não precisamos. Apenas temos que ter cuidado com ele, porque ele virá até nós. Ele está confuso...

- Virá por você?

- Sim, eu o chamei...

- Chamou, para cá? – se assustou. - Mas, isso é loucura. Por quê?

- Porque não tenho como transmitir tudo para ele através de um Avhu. E ele precisa saber.

Adanu ficou em silêncio, avaliando toda a situação, e viu que Tenebe estava certo. Uivo não merecia zanzar naquela escuridão quando informações cruciais existiam.

- E ele virá???

- Sim, e não só por mim. Ele virá mais por ela – falou, os olhos discretamente postos em Allenda. – Mesmo que não saiba ou não aceite isso.

Adanu baixou o semblante, os olhos fixos numa flor de dente-de-leão.

- Isso é certo! Eles já se enxergaram, e não há mais como eles se ignorarem. Mas, temos que ficar de olho. Há muitas dores entre ambos.

- Já sabemos que isso aconteceu antes, não é mesmo Adanu?

Tenebe viu o rosto de Adanu se suavizar, um sorriso se pendurando no canto de sua boca, olhando discretamente para Allenda.

> Como acha que ela reagirá, quando o encontrar? – perguntou preocupado.

Adanu tirou os olhos da filha, que estava triste, pensativa. Sempre quando ela parava era assim que ficava, pensativa e triste, saudosa, experimentando uma falta que nunca pensou sentir. Reação dela?, cismou.

- Possivelmente revoltada, confusa, nervosa. Novidade incômoda, novidade que machuca e atormenta - soprou.

Lembrou de poucos dias atrás, quando puxara assunto com ela sobre antigos namorados, e sobre Uivo. Ainda podia ver os olhos confusos e estranhos com que o fixara, denunciando frustração e dor. E mais dor ainda com as notícias que chegavam, dizendo sobre o ser feroz e terrível que Uivo se tornara, mesmo sem saber, naquele dia, a extensão total do que acontecia. Ele a viu tocar com força o peito, como se quisesse arrancar uma flecha do coração.

> Possivelmente raiva, frustração - repetiu. - Tentei conversar com ela, mas não fui bem-sucedido – revelou.

- Eu a sinto triste, mais silenciosa – falou Tenebe.

- Sim, ela está mudada. Uivo...

- Senti o mesmo em Uivo. Ela não sai da mente dele – informou. – Não vai demorar para o vermos ao nosso lado.

- Bem, apenas temos que ficar atentos e ajudá-los a passar por isso, não é mesmo? A vida sabe encontrar seu caminho.

- Sim, claro! Tudo vai se ajeitar... E Allenda, já ouviu que ele pode estar se transformando em demônio, não ouviu? Motei um peso maior nela...

- Sim, ela já sabe, tal como a comitiva.

- E, como Allenda reagiu???

- Assustada. Desejosa de ajudar, eu acho.

- Se soubéssemos como ajudá-lo nisso...

- Mas, e se não acontecer como... desejamos que aconteça, Tenebe? – perguntou Adanu se levantando e pondo a mão sobre os ombros do mago. - E se o demônio dominar e se ele se mostrar... perigoso? Como vai ser?

- Ahhhh...

Adanu viu a intensa dor que tomou o amigo, e ficou com pena.

> Então não será o Uivo – Tenebe arrematou com tristeza.