Por seus olhos, ao longe ficam dias vazios e tristes, incapazes do ato de se iluminar e criar.
Allenda olhou preocupada para o grupo. Havia aquela tensão que tentavam disfarçar, e ela bem sabia a sua causa.
Sorriu para a garota Trília. Estavam tão bem adaptados ao danush que parecia que ela e sua família sempre fizeram parte do grupo, que era um alívio, visto os perigos que sempre ficavam rondando-os.
A viu dar um sorriso tranquilo, logo voltando às suas práticas mágicas.
Num arranque se levantou e ficou um pouco distante.
Em silêncio sentou-se numa pedra de pequena altura e depositou as varetas que colhera logo cedo ao seu lado. Concentrada se pôs a confeccionar várias setas. Nem levantou os olhos ao ouvir os sons de passos vindo em sua direção.
Sabia que era Uivo.
- Sei que não pediu para se unir a nós, e que foi Adanu que abriu de vez a comitiva[1] para você – foi logo dizendo, porque sabia que ele temia alguma reação negativa por parte dela.
- E se eu tivesse pedido? – perguntou se sentando ao seu lado.
- Eu teria sido contra.
- Eu sei que sim, e não estaria errada. Mas, confesso que me sinto mal com sua rejeição.
- Está muito enganado, Uivo. Temos nossas desavenças, nossos desencontros, e eu sei o que carrego em meu coração. Não gosto de ter medo.
- E eu sei do meu. Não queira me manter longe, temendo que se algo acontecer com você eu me descontrole e me perca. Seria a sua ausência o que me colocaria em risco, e não a ver em perigo.
- Estamos no meio de uma guerra terrível, Uivo – ela gemeu, rabiscando o chão com um pedaço de vareta. – A ausência é algo que tem que ser colocado na equação.
- Allenda, sei que te deixo com receio, que não confia em mim. E, você tem razão. Como posso querer isso de você, de vocês, se eu mesmo não confio em mim? – falou, a voz baixa, quase sussurrada. - Sabe, Allenda, às vezes eu acho que deveria tentar me afastar de vez, até conseguir a paz com o meu demônio. Vejo o mal que lhe faço. Talvez algum dia eu consiga, e assim você terá a paz que procura.
- Por que pensa Assim, Uivo? – perguntou, parando o que vinha fazendo.
- Eu sinto a dor que toma o seu coração, quando pensa em mim, quando está comigo. Onde está a sua leveza de antes, os sorrisos? Eu os tirei de você e não dei outra coisa em troca além de dor.
Allenda sentiu uma pontada no peito. Havia dor nele, espalhada nos olhos dele, arraigada em seu rosto, nos ombros caídos.
Com um grande suspiro deixou as varetas de lado e se voltou para Uivo.
- Você mesmo disse, Uivo: seria a sua ausência que me colocaria em risco – sorriu. - Você tem que se acertar com seu demônio, Uivo. Queremos confiar em você, precisamos de você – falou, a voz suave como a brisa da manhã. – Preciso de você - sussurrou. – Você diz que só me traz dor, mas sei que isso é momentâneo. Você é a minha força, é o que minha alma saiu para buscar pelo mundo, que só descobri há alguns dias.
Uivo a olhou, e o carinho era tão intenso que Allenda sorriu, a felicidade boiando em seu rosto e em suas tatus.
- Ah, Allenda, não é fácil, mas eu vou conseguir, por você. As sombras não são só medo, ela é esquecimento. Eu tenho que me forçar a lembrar de lembrar da minha luta, e de rever as coisas que já descobri. Por isso, o que disse para a comitiva confirmo só para você: não vou me juntar a vocês, não agora, não enquanto eu não estiver pronto. Vou estar ao lado, mas vou me manter afastado. Mais próximo ou mais afastado, dependendo do meu estado. Não vou arriscar vocês... Não posso e não aceito arriscar você...
The story has been taken without consent; if you see it on Amazon, report the incident.
Allenda levantou os olhos e o encarou. Havia sinceridade em seus olhos, ela viu.
- Você, Uivo, já me salvou em inúmeras ocasiões...
- E te ataquei em inúmeras outras – riu baixinho. – Você também me salvou vezes sem conta.
- Também, nos dois casos – riu por sua vez. – Só que essa situação de demônio é... muito perigosa. Você se torna outra pessoa quando se podera em demônio. Ele não pode assumir, ele é só uma forma de você ser, Uivo. Sei que é fácil falar, que não estou em sua batalha, mas não me deixe for a dela, por favor...
- Ah, mas você não está for a, Allenda. Eu estou aprendendo, e você é o trunfo que tenho para avançar.
- Tente mais, Uivo. Encontre um ponto de apoio, algo de que possa se lembrar quando estiver como demônio, algo que seja como um sol – falou ela, a energia na voz, tomada de brilho.
- É assim que age em seus momentos extremos?
- Sim... Minha mãe me ensinou isso, há muitos e muitos anos.
- Era uma manira sábia – sussurrou pensativo.
- Sim, era... – falou saudosa. – Encontre algo assim.
- Isso é fácil – falou pensativo, como se estivesse se lembrando de algo. – Da última vez, quando fui atacado pelo demônio, pensei em risos e dias alegres e luminosos.
- E funcionou? – perguntou, as sobrancelhas se estreitando, atenta às feições do outro.
- Um pouco, sim. Mas foi num rosto que me concentrei, no meio do caos, que não me deixou afundar...
Allenda baixou o rosto, o coração pesado.
- Ela deve ser muito bonita... Elliara, Jádina ou a juguena LuaNegra, ou até mesmo a bruxinha? – perguntou num sussurro dolorido.
- LuaEscura, é o nome da juguena. Mas, não é ela. Somos amigos, só isso. Nem tampouco as outras que mencionou. É uma outra pessoa. E sim, ela é o ser mais belo que já vi. E que alma... – suspirou.
- Que bom... Fixe nela então. Ela pode te salvar – falou, a voz tornando-se, contra sua vontade, um pouco mais dura.
Uivo sentiu o coração aos pulos. Num impulso simples se levantou.
Ele sorriu quando ela levantou os olhos para ele, olhos duros e magoados.
- Obrigado, Allenda.
- E pelo que, nefelin? Não te disse nada de mais...
- Agradeço pelas suas palavras sim, mas mais ainda pelo seu rosto, apesar de sempre estar tão séria. A sua imagem me dá força e mantém minha sanidade na loucura contra a qual venho lutando, e me diz que vale a pena tentar cada vez com mais força. É seu o rosto que uso para voltar da escuridão. Eu amo você, Allenda – sussurrou mais baixinho.
Sem qualquer palavra ele sorriu, os olhos examinando cada linha de seu rosto.
Allenda ficou extática com as palavras dele. Não conseguiu dizer nada. Apenas sentia seu coração parar, as palavras dele se repetindo sem cessar. Ela queria impedi-lo de ir embora, mas não tinha como reagir. Sua mente estava em curto, remoendo aquelas palavras, aquele rosto, aquele sorriso.
Quando conseguiu reagir estava sozinha, olhando para o céu azul. Baixou depressa os olhos, procurando, vasculhando as árvores e os matos, mas estava sozinha.
Feliz se levantou, esquecendo até mesmo o que fazia ali.
Ao se virar deu de cara com Tenebe, Canvas e Adanu, mais à frente, sentados sob um abricó de macaco, satisfeitos.
Sem se dar por vencida caminhou na direção dos três, que sorriram felizes.
- Então agora são três, é isso? – sorriu feliz.
- Quanto mais, melhor, não é, Allenda? – Canvas sorriu gentil.
- Salvando almas perdidas, menina? – brincou Tenebe.
- Essa alma ali sei que ela salvou – riu Adanu.
- Nem vem, vocês. Nós só estávamos conversando... – falou se sentando entre eles, o coração leve e luminoso.
- Éééé... – Tenebe sorriu. – Já terminou de fabricar as setas?
Allenda balançou a cabeça, voltando sua atenção para as pedras onde estivera sentada.
- Vou voltar lá depois, para terminar – sorriu, os olhos passeando pelas montanhas além.
- Tudo vai se ajeitar, Allenda. O destino é exigente, mas é fiel com as almas de valor – falou Canvas com um belo sorriso para ela, enquanto apertava carinhosamente seu braço.
- Vê isso como bruxa? – perguntou toda atenção, ignorando o sorriso bobo dos outros dois.
- Não, minha menina. Vejo isso como alguém que viveu muito, muito tempo. Vejo o coração de vocês. Vai dar tudo certo.
- Mas o demônio dele...
- O demônio dele ... – ela repetiu, parecendo se perder em pensamentos. – Quando o conhecemos ele poderia ter nos matado, como poderia ter matado a muitos outros mais. Mas o demônio dele é ele, possui o coração dele. Um ser com um coração como aquele acho que deveria ser chamado de algum outro nome, e não de demônio.
----------------------------------------
[1] Por essa ocasião, sobre as montanhas, o danush de Itanauara era composto pela flor-do-mato Allenda, pelo saci Ybytu, pelo bestiário Dhorn, pelo anaquera PisaManso, pelo mapinguari Ybynété, pelo puma escuro Uivo, pelos magos flor-de-fogo Trília, anaquera Túnis e flor-de-fogo Canvas, pelo tatun Legião, atandé Axouara, cainamé PedraVelha, ello-escuro Archabarr (chicote do trovão), caipora AchaDeLenha e a sedenerá Atanua.