Eu vi o corisco se afundar na terra e dentro dela caminhar, como vi as promessas que encheram o jardim, enchendo-o de flores e esperança. É isso o que toquei, e que toco quando sinto a terra se esvair.
1
- O que pensa em fazer, Uivo? – perguntou BraçoDePedra, satisfeito pela recuperação do amigo. Ele não estava na totalidade de sua força e poderes, mas já saíra de sob o batente da morte, o que era um feito notável.
- Eu sei aonde ele vai...
- E para onde ele vai, Uivo? – perguntou RoupaSuja.
- Ele vai ficar observando a comitiva de Danbara. Ele vai atacar aquela comitiva primeiro. Somente depois ele vai contra a comitiva de Adanu, e então contra Allenda.
- Então? – atiçou BraçoDePedra.
Uivo ficou observando os dois, de certa forma até estranhando o grau de confiança que haviam desenvolvido em tão pouco tempo. E, agora, lá estava RoupaSuja em sua forma humanizada, sofrendo as brincadeiras carinhosas de BraçoDePedra que ele, Uivo via com nitidez, RoupaSuja apreciava.
- BraçoDePedra, RoupaSuja – chamou Uivo se esforçando em se levantar, - eu preciso ver Allenda e a comitiva. Preciso avisar a eles das ameaças do demônio. Se vocês puderem ir na frente, vasculhar a região em torno da comitiva de Danbara e Jádina, será de grande ajuda. Ele saber que a comitiva está sob observação pode fazê-lo ter mais cuidado em pôr seus planos em ação. Assim que as coisas estiverem mais organizadas com Adanu irei me juntar a vocês. Mas, caso ele mostre a intenção de atacar a comitiva, irei ter com vocês – prometeu. - Pode ser? – pediu, se levantando e se poderando um pouco como demônio.
- Claro que sim, Uivo. Faremos isso – concordaram os dois, se erguendo também.
– Mas, você sabe, não sabe? Sua condição para qualquer enfrentamento é quase mínima. Acho que ainda vai precisar de algumas horas até estar pronto novamente – RoupaSuja o observou com o rosto sério e preocupado. – Você quase se foi ao não se dar um tempo para se recuperar depois do enfrentamento com os anjos...
- Eu sei, meu amigo, eu sei. E agradeço a preocupação de vocês. Vou me cuidar. Logo me encontro com vocês. E obrigado por salvarem a minha vida. Obrigado – repetiu se despedindo e se erguendo no ar, virando-se para onde estava a comitiva de Adanu. – Não vou demorar – falou tomando a direção de Allenda.
II
- Uivo, Uivo – Allenda se aproximou depressa, se abraçando nele.
Os dois ficaram algum tempo assim, abraçados.
Então se separaram.
If you spot this tale on Amazon, know that it has been stolen. Report the violation.
- Sorriso bobo... – Allenda riu feliz ao ver o sorriso no rosto de Uivo que não queria ir embora. – Vamos. Precisamos conversar. Aconteceu muita coisa, desde que você se foi para ter com seu avô.
Não demorou, e logo todos estavam reunidos. Uivo foi apresentado ao mais novo integrante, um bestiário chamado Dhorn, que o observava com curiosidade. Uivo sorriu, ao ver o interesse com que o outro o avaliava.
- Você é uma mistura interessante – Dhorn falou por fim, a voz pensativa e avaliativa. – Um puma estranho que nunca vi e um demônio...
- Cuidado para ele não te colocar na coleção dele... – riu DenteDeAlho.
- Não precisa ter receios de mim, Uivo. A sua escuridão deve dar muito trabalho para controlar, isso é, se for possível – explicou.
- Que bom que não sou interessante – sorriu Uivo.
Então, em silêncio, Uivo ouviu sobre tudo o que havia acontecido, desde que for a procurar pelo avô. Seu coração pesou pelas perdas que haviam tido e pelo estranho desaparecimento de Tenebe, que terminou mostrando que ele sempre estivera com uma muta em seu poder, sem ter se apercebido disso[1].
- VidaSempre... Ela estava escondida à vista de todos? – Falou, os Cenhos Franzidos.
- É o que parece. Preocupado com Tenebe? – perguntou Adanu, a voz pesada e parecendo distante.
- Confesso que sim... – Uivo murmurou.
- Pois não deveria, Uivo – intrometeu-se Dhorn, os olhos examinando os do puma. - Segundo contam, VidaSempre é da luz, e aquele humano estava muito fraco e logo iria morrer. Ele, agora, tem chances. Essa é uma batalha honrosa para qualquer um, ainda mais para um humano.
Uivo o observou com cuidado, e terminou por sorrir.
- Você é sábio, meu amigo. E tem razão.
- E quanto a você, Uivo? Como foi seu encontro com seu avô? – perguntou Túnis.
- Dhorn já foi colocado a par de você e dos seus demônios. Não precisa tentar explicar para ele – sorriu Ybynété.
Então Uivo contou sobre seu encontro com seu avô, conscientemente omitindo que quase morrera no ataque, dizendo que ele se for a quando RoupaSuja e BraçoDePedra surgiram, isso para não deixar Allenda mais preocupada, após tantas perdas.
Inspirou bem fundo, os olhos se perdendo nos olhos de Allenda.
- O que há, que faz sua alma ficar tão pequena? – Canvas perguntou, os olhos perfurando Uivo, que no momento soube que ela sabia que se não fossem os seus amigos, teria morrido sob a vontade do demônio.
- Ele ameaçou vir atrás da comitiva, ele ameaçou vir atrás de você, Allenda – ele sussurrou, uma tristeza imensa nos olhos enquanto observava seu rosto. – Vocês precisam ficar atentos, você precisa ficar atenta – murmurou.
Allenda segurou seu rosto entre as mãos e encostou a testa dela na dele.
- Deixe-o vir. Somos mais do que ele pensa... Sabe onde ele está?
- Sim. Antes de atacar vocês ele vai atacar a comitiva de Danbara.
- Ele viu Jádina em suas memórias? – ela perguntou.
Uivo examinou seus olhos, e viu que ali o que ela dissera era apenas uma sentença. Ela, ao que parecia, havia superado a ligação que ele tivera com a manira.
- Sim. Ele quer me mostrar o que prepara para vocês, para você – falou, uma dor fina dentro da voz.
- E o que pretende fazer, Uivo? – perguntou Adanu.
- BraçoDePedra e RoupaSuja foram na frente, se encontrar com a comitiva de Danbara, para mostrar que ela está sob proteção. Vou para lá, e nós três vamos caçá-lo.
- Sente-se já bem restabelecido para isso? – Trília o encarou desconfiada. – A batalha contra os fantasmas e contra seu avo devem ter te exigido demais.
- Já estou melhor, obrigado pela preocupação. Além disso, não estou sozinho. Um potaraobi e um anjo não são pouca coisa – sorriu mostrando confiança.
- Que bom, que bom – Allenda suspirou aliviada. – Agora sim... Fico bem mais aliviada ao saber que não fará tudo sozinho – sorriu satisfeita.
- Viu como aprendo rápido? – sorriu carinhoso, se levantando. - All lantun, meus amigos – Uivo cumprimentou a comitiva.
- All dezana, Uivo – responderam todos, desejando-lhe sorte em seu caminho.
Então Uivo puxou Allenda e lhe deu um beijo bem demorado.
- Akindará, Allenda.
- Akindará, puminha. Não demore... – pediu, vendo-o se poderar um pouco como demônio e tomar rapidamente a direção Nordeste.
----------------------------------------
[1] Esses eventos estão descritos no livro 3 de "Os danatuás", do mesmo autor.