Eu forcei um pouco a vista e examinei o meu coração. Aquele ainda não era o lugar, se lugar específico existir. Era muito bom apenas estar...

- O que aconteceu aqui? – Adanu perguntou para RoupaSuja, totalmente confuso.

- O anjo... O anjo atacou Uivo para obrigar o demônio a se mostrar em toda sua força, aproveitando que ele estava quase desfalecido, zonzo – revelou RoupaSuja. – E o anjo contava com uma pequena ajuda – sorriu, os olhos passando sobre Allenda, que não tirava os olhos de Uivo. – Ele também sabia que a maior fraqueza de Uivo era não se aceitar como demônio, era o de se temer tanto como demônio. Uivo precisava vencer isso, que era um dos dois imensos riscos de ser perder.

Adanu suspirou, observando Allenda de lado, sofrendo pela filha que sabia ser o outro risco para o demônio.

- A face mais escura, profunda e alucinada do demônio se foi... – falou Uivo se erguendo lentamente. – A face viu pelos meus olhos, e se desfez – falou, um sorriso sugerido no rosto, os olhos em Allenda. – Ele se lembrou de onde vem a verdadeira força.

- Você nunca vai deixar de ser um demônio – resmungou Itanauara.

- Não, não é assim! Eu nunca vou deixar de ser o filho de uma dêmona. Mas eu sou Uivo, um pumacaya, como também sou um demônio, porque só isso eu não sou.

RoupaSuja se aproximou de Uivo e o examinou com cuidado.

Sorriu satisfeito.

- Você lutou bem, puma.

- Não é verdade!! Nenhum de nós estaríamos vivos, se não fossem os anjos.

- Isso não é desonra! Somente anjos e demônios puros conseguem combater anjos e demônios puros. Mas, eu não falava da luta contra os anjos caídos; eu falava da sua luta com você mesmo.

- Eu sinto muito por tê-lo atacado, meu amigo – suspirou.

- Ara, uma pequena ajudinha – sorriu. – Que bom que agora pode ser o que nasceu para ser.

- Obrigado, a todos... – agradeceu, vendo a juguena se erguer confusa, os olhos intrigados em Ybynété, que lhe sorria satisfeito.

Sob o olhar preocupado de todos a juguena se fortaleceu e crepitou em sua neblina, ondas de neblina se revolvendo à sua volta.

Então parou, examinando tudo ao redor, a fúria da neblina se aquietando. Parou os olhos em Adanu.

- Ah, agora sei por que Uivo sempre retorna para vocês, ... porque ele sempre retorna para você, Allenda. Sinto-me honrada por ter batalhado ao lado de vocês... Uivo já tinha me mostrado... esperança, e agora sei das possibilidades que podemos criar. Não é estranho como passamos milênios sem demonstrar qualquer crescimento e, então, de súbito, o avanço se mostra tão incrível?

- Ah, mas nunca se está parado, minha amiga – sorriu RoupaSuja. – Você estava apenas pegando impulso.

- Que bom... Obrigada a vocês... – suspirou, se fazendo névoa espessa que lentamente entrou pela floresta. Então viram, acima das copas, bem à frente, na entrada de um vale arborizado, como uma névoa se esgarçar em direção ao céu, onde sumiu.

- Nossa, não foi bonito isso? – Ybynété olhava para o céu, todo maravilhado.

- Realmente, meu amigo gigante. Foi maravilhoso demais... – falou Adanu. - Agora podemos ficar tranquilos, como até nossos mortos também podem – reconheceu.

Um silêncio respeitoso caiu sobre todos. No silêncio havia saudade e lembrança dos amigos que tinham morrido ali.

- Perdemos amigos aqui... – gemeu Ybytu.

- Eles morreram orgulhosos. Morreram bem... – sussurrou Itanauara.

- Mas, para nós, é uma grande perda... – lastimou Ybynété. - Além de companheiros eram guerreiros valorosos.

Uivo respirou fundo, a tristeza se mesclando com a dor dos ferimentos.

- Obrigado, BraçoDePedra – agradeceu Uivo, observando com discrição o ferimento do ellos.

- Pelo que? Por te ajudar com seu demôninho? Tranquilo! Ara, está tudo bem – sorriu BraçoDePedra ainda muito fraco. Vendo a atenção sobre seu ferimento deu umas batidinhas sobre ele.

Uivo balançou a cabeça, em cumprimento.

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- Esses são BraçoDePedra e RoupaSuja. Foram eles que sentimos ao norte, Allenda - revelou. - RoupaSuja é um anjo, e BraçoDePedra é um ellos potaraobi.

RoupaSuja não pode deixar de sorrir ao notar as emoções conflitantes que surgiram no grupo. Mas, tão rápido quanto viera, o mal-estar se foi.

- Sei da sua estória, Allenda, de como nos caçava sem descanso. Mas, juro que sou bonzinho – BraçoDePedra sorriu.

Allenda respirou fundo, vendo os olhos brincalhões do ellos.

- É fácil ver que é, ellos. Seja bem-vindo. Eu estou muito grata a vocês – sorriu Allenda para o ellos, que sorriu de volta.

- Foi um prazer... – falou se forçando a ficar em pé, após os cuidados de DenteDeAlho. – Obrigado, meu amigo de fogo – agradeceu, esticando os braços para cima, como se estivesse se espreguiçando após uma soneca. O sorriso que deu tinha um bom tanto de dor, mas se sentia feliz.

- Sejam bem-vindos todos vocês - cumprimentou Adanu. - Nosso eterno agradecimento a vocês.

Uivo suspirou forte.

Em passos lentos se ajoelhou ao lado de Tenebe que continuava desmaiado, a face pensativa e triste.

- Meu velho, que recupere logo sua força – Uivo desejou para o amigo, que respirava com dificuldade, deitado sobre uma larga folha de bananeira. - Sinto não ter chegado a tempo, sinto não o ter protegido, como me protegeu por um tempo que nem em minhas lembranças consigo enxergar. Mas, agora, você está entre amigos, e eles cuidarão de você. Que o Trovão veja a glória de suas lutas e lhe permita ainda muitos sóis pela frente.

Com cuidado pôs a mão sobre o peito do outro. Ele não tinha o poder de curar alguém que não fosse ele próprio. Mas, mesmo que tivesse, guardava o receio de transferir a energia sombria que era, por mínimo que fosse. O semblante pesou no rosto doído, vendo os olhos fechados do amigo e sua respiração difícil.

> Agora devo ir... – Uivo levantou-se, quebrando o pesado silêncio que se instalara, vendo sair da floresta cinco queixadas, que sabia que tinham sido invocados para ajudar a curar os feridos.

Então se aproximou de Allenda e a abraçou apertado. Allenda, com um longo suspiro, se deixou abraçada nele, sentindo o seu coração, se maravilhando com a felicidade de saber que ele estava vivo.

Então Uivo afastou o rosto, um sorriso nele.

Os dois se beijaram por longo tempo.

Uivo afastou o rosto, observando-a com enorme carinho. Suavemente colou sua testa na dela, a respiração compassada, seu corpo quase recuperado.

- Para onde vai, Uivo? – perguntou Allenda tomando-se de aflição. – Você ainda está muito ferido... Ainda não está recuperado para alguma aventura nova.

- Preciso achar alguém... – falou se separando dela.

- Você está pretendendo ir atrás do seu avô, não está?

- Preciso, Allenda.

- Tome cuidado. Não se arrisque, está bem? – Allenda se preocupou, encarando-o séria, tomando sua mão entre as suas. – Não pode deixar de lado, não pode deixar para quando estiver mais forte?

- Não posso... Eu tenho que resolver esse peso, e não posso demorar para isso.

- Alguma ameaça por parte dele?

- Alguma coisa assim – sorriu confiante.

- Promete que não vai entrar em enfrentamento com ele?

- Prometo que vou tentar evitar a todo o custo, está bem?

- Promete?

- Prometo, Allenda.

- Se não conseguir, promete que pedirá ajuda. Eu estou aqui, nós todos estamos. E tem o RoupaSuja e o BraçoDePedra e LuaEscura e...

- Prometo, prometo. Se algo der errado, vou pedir ajuda. Está bem, meu amorzinho?

- Então está bem.

- Que os caminhos lhes sejam leves – falou se desligando de Allenda e se virando para a comitiva. - Desejo a vocês um bom caminho – falou para a comitiva, se preparando para partir. – Tendavar, meus amigos. Akindará, Allenda...

- Tome cuidado – ela pediu novamente, tentando controlar sua aflição.

Uivo afagou seu rosto com suavidade. Com muito carinho a tomou e a abraçou novamente. Allenda se envolveu nele, a respiração suave e abandonada.

- Obrigado – ele sussurrou em seu ouvido. – Eu ouvi sua voz.

Sem a soltar, sem qualquer pressa se poderou em puma, os pensamentos sondando ao longe. Então se poderou em demônio, mantendo a altura normal, um sorriso gentil no rosto de penumbras, os olhos vermelhos suavizados.

No princípio todos se assustaram. Mas, vendo o controle tranquilo de Uivo, se acalmaram.

Allenda se apertou mais contra ele.

> Dor ainda sinto, é verdade... – ele sussurrou na voz não natural, se despoderando do demônio. - Ela é pequena comparada com a liberdade que sinto. Eu me sinto livre, como poucas vezes me senti, Allenda. Mas, ainda não é o suficiente. Tenho que encontrá-lo.

- E posso saber quem seria esse que vai procurar? – perguntou RoupaSuja.

- Apenas um parente - falou, segurando Allenda com carinho pelos ombros, os olhos se despedindo dela, que sorriu compreensiva. - Além disso, há boatos de muitos invasores tentando se acercar das duas comitivas. Será bom diminuir um pouco a pressão... – sorriu, observando o Leste.

- Isso então, tem tudo para ser interessante. Para o nascente? – BraçoDePedra perguntou, vendo a direção da intenção de Uivo.

- Acho que sim... – Uivo sorriu.

- Ora, ora... Também vamos para o nascente – BraçoDePedra revelou, confirmando que aquela era mesmo a direção que Uivo parecia interessado. - Que tal caminharmos juntos por algum tempo?

- Nós só vamos dar uma desviada – RoupaSuja falou, - mas a gente te acha bem depressa.

- Será uma honra para mim, ter vocês ao meu lado.

- Por que não seguem conosco? – Adanu perguntou para o potaraobi e para o anjo.

- Porque há coisas ainda pendentes - O anjo parou, flutuando, a vista posta ao longe... - Tudo tem uma necessidade de evoluir. Um momento crucial, a cobrança de um esforço supremo. Deixar o conforto tão penosamente conquistado por algo incerto... Evoluir... O tempo chegou, e eu preciso ir...

- Mas sei que nossos caminhos ainda irão se cruzar – falou BraçoDePedra para a comitiva.

- Coisas a resolver também, BraçoDePedra? – quis saber Ybytu.

-UE? Não, eu não! – respondeu, fazendo uma pequena pressão em um ferimento que o incomodava, e se dando por satisfeito por ele doer bem menos. – É que esse anjinho aqui não sabe se virar muito bem não – riu fazendo um cumprimento, o sorriso um pouco sem-jeito por causa da dor que ainda experimentava. – E agora ainda tem esse pequeno demônio, que vai precisar de assistência também – sorriu satisfeito.

- Um ellos e um potaraobi – Adanu falou, maravilhado. - Serão sempre bem-vindos, BraçoDePedra e RoupaSuja - cumprimentou. - Como também a nossa amiga, LuaEscura. Obrigado a todos vocês.

- Boa sorte a todos – Uivo desejou se dirigindo à comitiva.

- Todos Lantun. Que a luz do trovão esteja com vocês – desejou RoupaSuja por sua vez.

- All Dezana – sussurraram em resposta.

Sem mais qualquer palavra Uivo girou nos calcanhares e, acompanhado por RoupaSuja e BraçoDePedra, se perdeu lentamente por uma trilha que entrava na floresta pelo Noroeste.