Montanhas cogumeladas, sufocadas pelo tempo, impedidas de vagar livre pelo mundo. Eu via isso, e me revoltei. Por muito tempo me perdi, me esquivei, mergulhei. Tempo... O tempo é um senhor estranho. Te sufoca e te desespera, enquanto bem lentamente malha sua alma.
I
No meio do caminho, dentro da floresta Uivo parou. Seus pensamentos estavam confusos, e precisava se recompor.
Deixar Jádina tinha o sentimento de deixar para trás uma parte do que era, seus pensamentos se esticando do sorriso de Jádina, enquanto se perguntava o que era tão importante para ser convocado para o danush de Adanu. Afinal, não o haviam expulsado?
Devagar inspirou bem devagar, prestando atenção em seu coração e nos montes e montanhas que se estendiam abaixo.
- “Eu sinto um chamado de Allenda”, se lembrou das palavras de Danbara. Tentou controlar o fogo que a esperança fez crescer em seu coração.
Confuso se sentou de frente para o vale. Ali estava. Por mais que negasse, era Allenda que seu coração e sua alma pediam. Então se pegou pensando em Jádina, e balançou a cabeça.
- Se não houver esperança, vou-me embora de vez – decidiu. – Jádina não merece isso, ter uma parcela de uma pessoa, sempre esperando um gesto, um sorriso – disse para as montanhas, levantando-se decidido.
Porém freou o pé que se dispunha a levar seu corpo e sua alma pelos caminhos que lentamente se mostravam. Se virou para as montanhas de onde viera, e ficou pensativo, observando o lugar onde Jádina estava, se dizendo o quanto era estranho que o demônio que tinha em sua alma merecia tanto carinho, respeito e confiança.
- Parentes esquecidos, anjos, pessoas, demônios e... amores - sorriu. – Bem, vamos ver onde isso vai levar. Vai ser um longo caminho – falou, sentindo um certo prazer ao se decidir em ir tão lentamente.
II
- Ele veio, ele veio – Adanu viu Allenda se acendendo de súbito, a pele se avermelhando e as tatus renascendo.
- Filha, se acalme, sim? – pediu observando-a com preocupação. – Sabe, filha, eu tenho receio de termos sido precipitados em trazê-lo aqui.
- A gente precisava, pai – ela tentou se tranquilizar, seguindo a aproximação dele por entre os troncos da floresta. – Tenebe já deve saber que ele está vindo, não sabe?
- Sim, filha. Mas pedi para ele se atrasar um pouco em ter com ele, para dar nos uma chance de consertarmos o estrago. Vamos? – convidou, tomando o caminho do local onde sabia que ele seria parado.
- Ora, e o que veio fazer aqui, demônio? – perguntou Itanauara bloqueando o caminho de Uivo.
Uivo a observou tranquilo, parando a alguns passos da mãe-da-mata.
- Fique tranquila, Itanauara. Não é por vontade minha que vim. Apenas respondo a um chamado de Tenebe. Tentei chamá-lo para conversarmos sem incomodar vocês, mas não consegui me fazer ouvir. Então tive que vir. Ele me disse que teve autorização de Adanu. Ele não lhe disse? – sorriu, agora os olhos se estreitando, vendo que toda a comitiva se aproximava, uma estranha expectativa de sua vinda nos olhos de todos. Procurou por Tenebe, Adanu, e também por Allenda, mas eles não estavam ali.
Tenebe parou a alguma distância, oculto da vista de todos, temeroso ao ver que a paciência de Uivo para com a má vontade de Itanauara parecia estar bem rala.
Sem dar importância à atitude de Uivo, sem se virar Itanauara chamou por Adanu, que logo se mostrou vindo da beirada do acampamento, acompanhado de Allenda.
Uivo sentiu com um soco dentro de seu cérebro quando a viu. Não acreditara mais que iria sentir tudo aquilo, toda aquela onda desesperada por ela quando a visse. Mas, ali estava tudo de volta, e aumentada.
Num ímpeto pensou em se virar e ir embora, bem rápido, fugindo daquela presença que tanto aprisionava seus pensamentos e sua alma.
Respirou profundamente, tentando parecer frio e distante.
Uivo suspirou lentamente e olhou para o céu azul de poucas nuvens que deslizavam sem pressa, se esfiapando lentamente, se desfazendo no anil. Respirou fundo novamente. A paz do céu contrastava terrivelmente com o que se passava na terra, e dentro de seu coração. Aqui não conseguia encontrar a paz como a das nuvens. Seu coração se apertou dolorosamente, temendo afastar Allenda ainda mais, e descobrindo como era intensa a necessidade que tinha de, ao menos, poder tê-la ao seu alcance.
- Que bom que veio, Uivo – cumprimentou Adanu amistosamente se postando ao lado de Itanauara. – Tenebe logo estará aqui, apesar de você ter sido chamado por minha insistência. Como você está?
- Melhorando – falou, o jeito manso e arredio, os olhos disfarçados em Allenda. – Me esforço, a cada dia...
Então Ybynété apareceu e, com passadas largas, logo o pegou nos braços e o levantou do chão.
- Que saudade, meu amigo – falou o gigante com um enorme sorriso no rosto.
Uivo riu, feliz e solto.
> Também senti muitas saudades, grandão. Como você está, meu amigo?
- Melhor agora Uivo. Eu senti muito a sua falta. Ainda continua fraquinho, né? – ele riu, batendo nas costas de Uivo, que teve que se esforçar para não sair do lugar. – Eu vou ficar aqui do lado, Uivo – falou se deixando cair sentado no chão, onde se acomodou feliz. - Aqui todo mundo está preocupado com você. A gente queria te ver, e pedir desculpas, não é?
Adanu riu e abanou a cabeça. Por fim, vendo que Ybynété já fizera o serviço por todos, relaxou. Até mesmo Tenebe, vendo que tudo fora posto abaixo, surgiu na trilha, se aproximando depressa.
- É, isso mesmo – Adanu confessou. – Falhamos com você, Uivo.
Tenebe, vendo que tudo descambava, sem perda de tempo se aproximou, parando na frente de Uivo.
- Que bom que veio, meu filho – falou depois que saiu do longo abraço com o filho. – Como estava com saudades, Uivo. Ouvimos notícias, mas não é a mesma coisa que estar assim com você.
Adanu viu o carinho nos olhos do amigo, e a resposta nos olhos de Uivo. Sorriu, cheio de paz.
- A gente ficou sabendo que você fez amizade com um juguena – falou Ybynéte sentado no chão.
Adanu abanou a cabeça novamente. A inocência de Ybynété era até bonita, mas era embaraçosa demais – se rendeu com um sorriso amarelo no rosto grande.
– É sim... – Tenebe pegou o gancho. - Foi o mesmo que atacou você e a Allenda, algum tempo atrás?
- Sim, foi o mesmo – concordou.
- Então, agora, por sua causa, além do demônio que está nos cercando, ainda tem um juguena por perto? – exasperou-se Itanauara consternada. – Há mais alguma novidade que queira nos contar?
- Acho que não, Itanauara. Mas, acho que a juguena não será um risco.
- A juguena? – interveio Allenda se adiantando um passo e se postando ao lado de Adanu e Itanauara. – Então é uma fêmea?
- Sim, ela é uma dâmia.
- E por que ela não é um risco?
- Acho que estamos nos entendendo...
- Ora, que bacana. Então estão se entendendo... Um clima?
Uivo a observou atentamente, o semblante pesado, avaliando cada tom da pergunta feita. Ciúmes, que poderia colocar tudo a perder, se é que ainda havia alguma coisa a ser salva.
- Não, Allenda, não há qualquer clima – rebateu, a voz saindo com um tom cansado. - Talvez uma amizade, ou ao menos uma compreensão. Uma promessa de paz, espero.
- Que bom, Uivo, que bom – cumprimentou Tenebe, olhando aflito para a comitiva. – A paz sempre é desejável.
- Mesmo que se tenha que partir para a guerra para garanti-la – sibilou Itanauara.
- Se assim se mostrar necessário – Uivo falou se empertigando, os olhos pregados em Itanauara.
Ao ver a reação de enfrentamento de Itanauara, Allenda se adiantou depressa.
- Você não acha que está deixando tudo mais confuso, Uivo? – xingou Allenda com desdém se aproximando um pouco mais dele. – As amizades estranhas que está cultivando...
- Amizades... – sussurrou, o jeito triste e pensativo. – Há já um bom tempo que não sei mais o que é isso, nobre Allenda... Ao menos de alguns...
Allenda inspirou fundo e demorado, os olhos presos nos de Uivo.
- Achei que tivesse encontrado essa amizade nos braços da Jádina – espetou com fel.
Adanu meneou a cabeça desesperado, os olhos em Tenebe, que tinha os olhos arregalados, vendo tudo se perder.
- Foi um erro tremendo ter vindo. A gente se fala em outro momento, pai. Akindará para vocês...
- Esse seu jeito de bom moço passa arrogância – Allenda falou, impedindo-o de se ir, - como se achando o melhor guerreiro, o imortal, o insuperável, o irresistível.
- Aceito sua crítica. Mas, da forma como está me agredindo, a arrogância aqui é sua.
- Então vai, volta para a Jádina, ou para essa juguena que quase nos matou. Vocês se dão muito bem...
- Como pode se achar com direitos? – Uivo ergueu a cabeça, a voz se tornando dura, a mágoa surgindo forte. – Você me empurrou, atacou, desprezou, me empurrando repetidas vezes para longe de você. Sei que ama a liberdade que tem, e que se recusa a ver que pode ser livre com alguém. Mas não, levantou uma defesa e destrói quem se aproxima. Que direito acha que tem?
Adanu baixou a cabeça, desconsolado.
- E você? Você não tem o direito de ficar com raiva de mim, e de me afastar de você.
- Que loucura é essa? Se você procura me fazer mal, eu tenho sim todo o direito.
Tenebe, de seu canto, observava com atenção os dois. Apesar de todo seu medo pela forma que as coisas estavam se desenvolvendo, e pelo receio de que tudo desandasse de vez, não pode evitar um olhar divertido. Os dois, sempre que se encontravam, ficavam assim, discutindo. Mas, o que lhe dava esperanças é que parecia haver uma certa necessidade deles de ficarem sempre próximos. Eles ficavam apagados longe, mas quando se aproximavam era tanta energia que eles simplesmente se perdiam nela.
Porém, ao ver como Allenda estava se inflamando, o que poderia rapidamente causar uma resposta em Uivo, ia se intrometer quando algo lhe chamou a atenção.
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De súbito, ao ver alguns movimentos suspeitos à direita, deixou seus pensamentos de lado. Algo ia acontecer, percebeu nitidamente ao ver como Adanu se aproximava lentamente de Uivo, o que não passou despercebido ao outro.
Com cuidado examinou os outros, e os viu tão confusos quanto ele com a atitude de Adanu.
Allenda olhou detidamente para Uivo, e após para Adanu, que se mostrava impaciente, observando o pumacaya.
De repente seus olhos se abriram em pânico, ao ver o que estava para acontecer. Se preparava para entrar no caminho do pai quando ele simplesmente avançou antes que pudesse interceptá-lo.
Sem qualquer aviso Adanu havia se jogado para frente, a mão em chamas procurando o pescoço do puma.
Uivo apenas se desviou, enquanto Allenda gritava horrorizada.
Adanu estacou o movimento, volvendo os olhos para os lados de Uivo como todos os outros, que agora estavam em prontidão.
Num repente à frente deles estava um enorme demônio, feito de sombras que se revolviam. Numa rapidez absurda a sombra de Uivo havia se adensado e bloqueado, desviando em um segundo momento o punho de Adanu, enquanto pontas afiadas se mostravam prontas para atacar o curupira de muitos lados, caso ele insistisse no ataque.
- Pai, pai, pai... Isso é loucura. É o Uivo, pai – Allenda gritou desesperada com o que estava vendo
- Não se intrometam – falou alto Adanu. – Está tudo bem... Está tudo bem Allenda. Confie em mim – pediu, afastando ArrancaToco com um gesto, que observava os dois tomado de confusão.
Aparentando não entender o que acontecia com seus amigos, o grande ArrancaToco se deitou ao lado de FuraTerra, que olhava tudo com grande despreocupação.
Sem perceber Allenda correu para o lado de Tenebe, aflita, desnorteada.
- Tenebe, você sabe por que isso? – chorou desesperada, os olhos se voltando para o demônio e para o curupira em chamas.
Tenebe a abraçou, os olhos perdidos nos dois que se estudavam.
- Seu pai deve ter algum motivo, Allenda. Se acalme – sussurrou com a voz mais calma que conseguiu. - Ele deve estar fazendo isso para você e Uivo. Vamos confiar nele, está bem? Está bem?
- Está bem, está bem – ela concordou, mantendo os dois sob um olhar de dor.
Adanu, francamente como guerreiro, se voltou definitivamente para Uivo, que pareceu crescer sobre Adanu, ignorando o fogo que crepitava ameaçador.
Nos semblantes de todos havia confusão pela atitude de Adanu, e preocupação com o que se mostrava em Uivo. Todos estavam atentos, prontos a se poderarem e atacar, com exceção de Ybynété, que os observava senado no mesmo lugar; de Tenebe, que observava amargurado e de Allenda, que de nervosa e apavorada torcia as suas mãos.
Tenebe meneou a cabeça, preocupado. De certa forma sabia que, mais cedo ou mais tarde, Adanu iria obrigar Uivo a se decidir. Torcia para que Uivo soubesse se controlar.
De súbito Itanauara se adiantou, a seta pronta no arco.
Uivo se manteve tranquilo, ignorando a ponta da seta que Itanauara encostava em sua têmpora, perigosamente inerte no arco esticado.
O som das chamas no punho de Adanu sussurravam no ar.
- Então é verdade, não é mesmo? Um demônio te tocou e te despertou, e com eles agora se alia – Adanu acusou em reconhecimento, se afastando e observando Uivo com viva atenção.
A neblina se revolvia em torno do puma, que parecia tomado por um esforço supremo para se controlar.
Sem qualquer anúncio Adanu atacou novamente, a faca ígnea cortando a neblina enquanto avançava com violência a perna contra o estômago do demônio.
Num movimento rápido Uivo lançou longe a seta de Itanauara enquanto farpas se alongaram na direção de Adanu, parando à pouca distância deste. Subitamente as farpas se fizeram mais largas e, tomando Adanu, e lançaram para o lado. Depressa, como um suspiro, o ser se afastou, mantendo distância de Adanu que já se levantara e da comitiva, sob os olhos espantados de todos, que não sabiam como reagir àquilo.
Adanu avançou outra vez, e mais e mais, acompanhando a criatura que recuava e se esquivava dele.
Em vários momentos as farpas quase tocavam em Adanu, mas, como que por mágica, recuavam indecisas, a criatura apenas insistindo em se esquivar.
Itanauara, que vinha mantendo duas flechas no arco, aliviou a pressão e deixou-se apenas a observar. Via com clareza o quanto o demônio tentava se controlar para não ferir quem quer que fosse.
Allenda suspirou forte, se pondo à alguma distância de Adanu. Agora entendia o que seu pai estava fazendo, o que ele obrigava Uivo a fazer, que estava insistindo em mostrar, enquanto em silêncio embalava uma reza.
No entanto, ficou aliviada quando Adanu parou os ataques, observando o demônio da distância que ele se dava.
> Você é um demônio, não é mesmo, Uivo? – Adanu acusou.
- Sim, é verdade - respondeu Uivo por fim com grande sacrifício, numa voz estranha como uma tempestade baixa nas montanhas. - Eu estava morrendo, e ele se aproximou. A morte despertou algo...
- E como se sente, puma? – perguntou Allenda vendo a sombra em torno de Uivo ir diminuindo lentamente.
- Eu estou controlando cada vez mais o que foi despertado. Minha mãe tinha essa capacidade de controlar sua face negra. Eu já convivia com isso, mas em dose pequena. Estou me acostumando com esse aumento.
- A verdade é que não me sinto confortável com sua presença.
- E por que não, Allenda?
O coração de Tenebe se encolheu, ao ver uma grande dor naquela voz.
- Além do que você pode se tornar, o seu avô demônio deve estar à sua espreita, e agora há uma juguena. Confesso que o que você é, e esses tipos que o acompanham, me deixam um pouco nervosa.
- Você está enganada – objetou Tenebe. – E você sabe. Ele vai vencer isso.
- E como sabe, humano?
- Por que ele decidiu isso...
- É isso mesmo, demônio? – perguntou Allenda, os olhos em brasa fixos em Uivo.
Uivo inspirou forte, os olhos se perdendo além no azul do céu. Havia um peso em sua alma, uma dor que o fazia quase desistir de tudo.
- Essa é a minha decisão!!! – sussurrou, deixando o ar escapar como se pudesse levar embora a sua dor.
- Que seja forte para mantê-la, demônio – desfiou Itanauara.
Uivo baixou os olhos, o peso se mostrando em seus ombros. Levantou os olhos e passou por todos, uma dor solidão se insinuando em sua alma.
- Que sigam em paz, protegidos, e que suas batalhas sejam... magníficas. Não sei por que insisto em ter com vocês, mas vocês estão certos em me repudiar – falou, uma dor intensa na voz, apesar de todo o controle que tentava imprimir nela.
- Não acredito em você, demônio. Você é fraco e não merece crédito – acusou Itanauara, se poderando, para surpresa de todos.
Subitamente, sem que pudesse se controlar, Uivo sentiu o demônio assomando de vez, numa explosão súbita e feroz.
Havia aquela dor e a revolta. Era repudiado, atacado, desprezado. Longe seria mantido, e nunca mais poderia se aproximar daquela que tanta falta lhe fazia. Então, não mais sentiria falta de quem quer que fosse, se ouviu dizendo a si mesmo na solidão de sua escuridão.
– Que morram todos, que desapareçam – sentiu prazer ao pensar nisso.
Todos os que estavam ali, ao perceberem o poder escuro que subitamente cresceu de Uivo e se revolvia poderoso em volta dele, e que era ele, se poderaram, se preparando para o que estava para acontecer. O ódio subiu de forma abrupta, e tudo estava para ser destruído.
E foi então que o demônio parou seus olhos em Allenda, em seus olhos, em sua alma, no fogo que era ela.
O mundo foi se refazendo, até que o ódio demente se foi, deixando apenas aquela agonia magoada.
Com um sorriso viu que todos se despoderavam desconfiados, mantendo-se alertas, até mesmo Itanauara.
Então o demônio se foi, ficando apenas Uivo, que olhava um a um.
Devagar Uivo olhou para Tenebe, para Allenda e para Adanu, que cumprimentou com um pequeno movimento da cabeça.
> Siga em paz, danush de Adanu – murmurou, a voz fria e indiferente, resignada. – A partir de hoje não mais precisarão se preocupar com minha presença – sorriu um sorriso de despedida. - Akindará! - Vocês estão livres de mim...
Então se virou, os passos lentos e pesados se distanciando.
Tenebe correu e segurou aflito o braço de Uivo.
- Meu filho, mas... Para onde vai?
- Está na hora de reconhecer o que realmente sou, e o que causo. Demônio sou, meu querido pai. Mas, serei demônio longe daqui. Como eu devia ter feito há um bom tempo, vou subir as montanhas...
- O que? – se assustou.
- Fique em paz – tranquilizou com um sorriso distante. - Não vou me aliar a eles... Se causo tanto medo aqui, que eu leve esse medo para as montanhas. Que seus dias sejam grandiosos, meu pai – falou para consternação do humano, as mãos carinhosas pesando trêmulas em seus ombros. Então, com um sorriso se despediu, tomando um caminho que o levaria para dentro de um vale sombreado.
Tenebe se virou para a comitiva, uma revolta contida nos olhos, soterrada por uma dor que não conseguia exprimir.
- Se ele se for, Allenda, ele nunca mais atenderá qualquer chamado, como não poderá ser encontrado – falou Adanu tomado de preocupação, os olhos esperançosos postos na filha.
- Que vá, que suma. É muita dor – respondeu, um amargor escorrendo da voz, denunciando a dor que estava em seu coração. – Assim, eu terei paz.
- Você ainda não entendeu, Allenda? Se ele se for você nunca mais terá paz, e se destruirá. Eu sei, eu passei isso com sua mãe, e felizmente eu percebi a tempo e nos salvei. Eu olhei nos olhos dela, e eu vi que era ali que eu existia.
Allenda levantou os olhos doloridos para o pai. Então os voltou para o caminho onde Uivo sumia, agora se fazendo como demônio, momento em que viu uma bela dâmia jurupari se antecipando para cortar o caminho de Uivo, bem mais à frente. Se ele a escolhesse, poderia viver com isso, se disse, mesmo sabendo que estava se enganando ao pensar assim. Então imaginou a vida como seria, sendo uma verdade definitiva que Uivo não estaria mais nela.
Foi nesse momento que algo a atingiu, e viu que seu futuro, assim, não teria qualquer valor.
Subitamente, como se levasse um soco, Allenda entendeu que todo seu mundo iria ruir se desistisse de Uivo.
- Uivo? – gritou, quase sem pensar no que fazia, correndo atrás dele.
Mas ele já estava longe, evoluindo rápido pelo caminho, em demônio se fazendo rapidamente.
Sem pensar Allenda tomou uma seta em chamas e disparou com a maior força que podia imprimir no arco. E mais uma e mais outra. As setas silvaram alto no ar, e o demônio parou, se voltando para o lado. Havia uma dor imensa ali, pensando que Allenda tentava atingi-lo.
Porém, ao vê-las passando à sua esquerda, voltou os olhos para trás e a viu pequenina, em brasa. Assim que prestou atenção nela sentiu a dor que a agoniava, e seu coração gritou.
Quase que de forma instantânea o demônio surgiu a alguns metros de Allenda, os olhos altivos e distantes se mostrando enquanto se despoderava.
- Não precisa me mandar embora, flor-do-mato, eu já estava indo – falou assim que ela se aproximou, indeciso sobre o motivo que o fazia continuar ali, apesar de, no fundo, saber que o último olhar nela seria como um trunfo contra o mal que tentava viver e crescer dentro dele. - Que a felicidade acompanhe seus passos.
Então, como ela continuasse em silêncio, os olhos presos nos seus, sentiu seu rosto se contrair e seus olhos doerem. Com um sorriso meneou a cabeça em despedida, começando a se virar novamente para seu caminho, as sombras se adensando muito rápido, mostrando seu desejo de sumir depressa dali.
- Não, Uivo, por favor... – Allenda gritou, um lamento mais como um gemido.
Uivo parou, as sombras se enrodilhando nervosas à sua volta, aguardando, impaciente para se ir. A longa tortura o estava destruindo, sabia.
> Não, não é isso... Por favor... Não posso deixar você ir. Se você se for, eu juro que vou sair para te procurar, e não vou descansar até te achar, mesmo que eu tenha que subir as montanhas. A guerra deixará de ser importante, como tudo o mais – sussurrou aflita. – Por favor... – gemeu.
Uivo se deixou ouvindo aquela voz agora suave e gentil, apesar de tomada de urgência e dor, bem perto de si. Devagar se voltou definitivamente para ela e a encarou.
Ela parecia nervosa, aflita, a mente fervilhando, procurando palavras, as mãos se batendo nervosas e suaves nas coxas.
Allenda olhou diretamente em seus olhos, e seu coração se iluminou com o que via ali, e entendeu o que seu pai tanto insistira em lhe mostrar.
> É que... Sei que as coisas entre nós são muito complicadas, e nem sei por que, porque não é assim que eu gostaria que estivéssemos. O que quero dizer é que... Gosto de ter você por perto – declarou, as mãos agora se esfregando nervosas. – Não quero os meus dias sem... – a voz se foi, os olhos grandes presos em Uivo, o desespero ameaçando tomá-la de vez. – Eu não iria suportar...
Os que assistiam deram pequenos pigarros e se viraram, como se nada tivessem com aquilo, cada um se afastando e procurando se ocupar de alguma outra coisa.
Ybynété, que não se mexera desde que se sentara perto de onde Uivo estivera, sorria abertamente, feliz demais com o que via. De vez em quando ele batia as mãos fazendo um som de tambor ecoar no ar, feliz da vida.
Tenebe viu seu coração renascer ao ver o gigante monstruoso e gentil perto de Allenda, ao ver a preocupação nela, e ver o quanto rapidamente Uivo se despoderava.
- Eu, ... – a voz falhou, e Uivo, totalmente despoderado, trocou o apoio das pernas. – Eu... – pigarreou nervoso, impaciente para dizer o que tinha na alma. – Sei que os apavoro, que os deixo inseguros e, para meu desgosto, a você também. Eu... eu vou resolver isso, eu estou verdadeiramente tentando.
Allenda notou a sua voz dolorida, como se implorasse para ouvir uma promessa de que tudo estaria bem, que tudo estava se resolvendo.
- Eu sei, eu sei... E quero ajudar...
- Tenho a minha luta com o que sou, e contra os demônios que me procuram. Luz... Eu...
Então ela viu os olhos dele pesarem, e o futuro a desesperou. Sabia o que ele estava pretendendo. O que mais poderia pretender, quando todos o abandonavam, quando ela própria o abandonava? Era o que ele sentia, e ele abria seu coração sobre isso.
- Eu não o abandonei, Uivo, nunca – sussurrou num fio de voz. – Nem seus amigos aqui. Olhe direito, Uivo... Estamos aqui com você. Talvez Itanauara não, e alguns outros – sorriu com os olhos luminosos. – Mas eu estou aqui, aceito isso agora, porque... porque... – Allenda adiantou um passo, colocando-o ao alcance. - Ah, por favor, não me deixe... – falou nervosa e desesperada numa voz que quase não se podia ouvir. – Eu não vou conseguir ir em frente sem você...
- Ahhhhhh... – Uivo esgarçou um sorriso gentil e imenso, os olhos fixos em Allenda. E havia uma aura luminosa, que fez Tenebe suspirar aliviado, os olhos duros em Adanu, que sorria abandonado. Com uma crítica velada no rosto Tenebe se postou ao lado de Adanu.
Allenda se aproximou um pouco mais de Uivo, os olhos em fogo, uma lágrima de brasa rolando no rosto.
- Não vá para longe, não vá para as montanhas sem nós..., sem mim... – pediu, segurando seus pulsos em um mudo pedido.
- Não sei o que vai ser de mim, Allenda – falou, a voz embargada e tão baixinha que quase não se conseguia ouvir, - mas vou lutar para... para poder ficar perto... perto de você, se...
- Vai ser ótimo... Digo, vai ser muito bom você conseguir e... Eu vou gostar muito disso... – falou, o corpo começando a se tornar um pouco avermelhado, as mãos caindo ao lado do corpo. – Vai ser meio complicado ainda, mas... É que...
Uivo suspirou forte, um sorriso há muito tempo não visto se insinuando em seu rosto, acompanhando o sorriso redescoberto de Allenda.
- Obrigado... Esperança, Allenda, é o começo de um caminho para sair da escuridão...
Allenda, meio sem-jeito, se aproximou e deu um beijo em Uivo. E se afastou, as mãos cruzadas atrás.
O pessoal de trás pigarreou.
Adanu ralhou com eles.
Uivo parecia feliz como uma criança.
Então, meio indeciso, tocou com prazer os próprios lábios, os olhos abandonados em Allenda. Com lentidão abanou a cabeça em despedida, e se foi.
Allenda ainda ficou longo tempo parada ali, depois que ele se foi, e não pode deixar de sorrir ao ver a bela dâmia retornando chateada, o que foi um grande bônus. Quando ArrancaToco se aproximou e tocou sua mão ela pareceu acordar.
Com um largo sorriso se virou e passou perto de Tenebe e Adanu como se não estivessem ali.
Adanu cutucou Tenebe, que sorria abandonado.
- Acho que agora vai dar certo – comemorou.
- Ufa... Foi muito arriscado a forma como atacou Uivo – Tenebe elogiou. – Combinou com Itanauara também?
- É, ela aceitou ajudar. Acho que para ela foi bem mais fácil – sorriu.
- Muito arriscado... – Tenebe suspirou.
- Era o único jeito de mostrar que Uivo podia se controlar, e obrigá-lo a escolher o demônio que quer ser. Todos aqui precisavam saber disso, Allenda precisava saber disso. Temos que ajudar nosso amiguinho nessa luta, não é mesmo?