Minha alma se contorce, e vejo que quando se quer tanto bem, mal faz. Por que amar diz sobre solidão e medo de perda?
- E então minha filha, como se sente?
Adanu a observou com carinho, sentando-se ao seu lado no grosso galho, vários metros acima do solo, de onde podiam ver o nascer do sol ao longe, do outro lado do vale. O aperto em seu coração lhe dizia que algo muito importante tramava o destino da filha.
- Por que pergunta isso, meu pai? – Ela se virou, encarando-o com tranquilidade.
- Conheço sua vontade, sua alma. Vejo suas mudanças, e gostaria de saber como está com elas...
- Como? Mudei como?
- Ah, preciso mesmo enumerar? Já faz tempo que isso vem acontecendo. Perdeu muito do seu jeito de moleca, de luz. Está mais...
- Adulta? – ela sorriu abatida.
- Mais pensativa, minha filha – corrigiu ele com carinho. – Antes eu estava apavorado – confessou. – Você estava apagada. Mas agora, está apenas pensativa, aguardando. Você está em paz, eu diria.
- Como assim, pai?
- Havia uma tensão em você, não desejando nem mesmo encarar o que o seu coração gritava.
Allenda o observou por alguns segundos, e sorriu.
- Ah, isso... Eu lutei muito tempo contra isso, porque achava que era uma prisão perigosa, que poderia me ferir demais, e que não era nada importante para a minha vida. Mas, eu estava enganada. Só rezo para que ele consiga – respondeu fazendo um jeito casual.
- Ele vai sim, filha. O que ele sente por você é algo muito grande. Ele é forte, mas com você ele fica... mais... mais forte – sorriu, sem encontrar a palavra certa. - Fico feliz por, finalmente, seu coração ter aceitado de vez o que sente – falou com suavidade.
- O caminho ainda é muito longo, e as sombras são corruptoras. Ele sabe, e teme isso. Porém, confesso que tenho medo, pai – falou com o semblante distraído.
- Claro que sim, filha. E estão certos os dois ao verem o caminho assim. Vocês têm que estar em vigília constante – falou. –Allenda, não estou me intrometendo. Sei muito bem que é capaz de determinar seu destino. Sabe, sempre respeitei suas decisões, por mais difíceis que fossem. Mas o destino sempre abre caminhos, que mesmo que não queiramos, não temos como não seguir.
- Ah, pai, mas está tudo bem. Sério!! Então, não se preocupe. Eu estou bem, pai.
Allenda parou o olhar nas montanhas brilhantes sob o sol forte de verão. A vida estava elegante, viva, vibrante. Sua alma se agigantou ao pensar naqueles olhos que tanto a dominavam. Sua garganta se apertou e seus olhos ficaram pesados. Como precisava dos carinhos daqueles braços, como precisava sentir aquela respiração, como precisava sentir que tinha alguém, que o tinha...
E então ele surgiu abaixo, ignorante da presença dos dois. Contra sua vontade, suas tatus se iluminaram e seu rosto ameaçava se inflamar.
De esguelha viu que Adanu, após observá-la por alguns instantes, seguia os movimentos de Uivo.
- Ele sabe? Digo, ele sabe realmente, de verdade, sem rodeios, o que você sente? Ele sabe, de todo o coração, o amor imenso que a domina, filha?
Allenda o observou, os olhos em fresta, o desconforto emergindo, os músculos tensos.
- Há coisas que não precisam ser ditas, Adanu – sorriu.
- Se engana, filha. As coisas boas e importantes precisam sempre serem ditas, muitas vezes repetidas. Faz muito bem para quem diz, e mais ainda para quem ouve. Elas são como faróis na escuridão, como lamparinas na trilha escura, como afagos que guardamos no coração. Eu não cansava de dizer para sua mãe, e não me cansava de me sentir intensamente feliz quando ela me dizia o quanto sua luz via a minha.
- Sei que é assim, pai. Mas, tudo tem seu tempo. É bom ele sofrer um pouquinho ainda – sorriu satisfeita e com cara de moleca.
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Adanu abanou a cabeça, sorridente.
- Vocês e suas brincadeiras. Quando se atacam, agora, porque sei que isso ainda acontece, espero que seja de uma forma mais... Amém. Héim?
- Foi assim com você e mamãe?
Adanu sorriu por alguns segundos, sua mente revendo sua pequena estória.
- Claro que foi... Você estava para nascer quando ela me deu uma última flechada – riu feliz. – Brincadeira, a gente já tinha parado com isso há muito tempo – riu gostoso. – Uivo é um bom guerreiro... – Adanu sorriu condescendente. – Independente, indisciplinado e arrogante, muitas vezes. Mas é poderoso, e sua alma é forte e nobre. Confie nele, minha filha. Ele não pode ser o que você quer que ele seja, mas você pode ajudá-lo a se tornar mais forte no que ele é. Se tentar mudá-lo, vai perdê-lo, como sei que, se ele forçar você a ser o que não é, tudo acaba, não é mesmo? Ele é demônio, e precisa ser em sua completude. Você é a única que pode ajudá-lo nisso. Vamos dar apoio a vocês, mas a peça importante sempre será você.
Allenda ficou em silêncio, observando os olhos amorosos do pai.
Relaxou.
- Você está certo, meu pai. Obrigada! Acha mesmo que ele pode se controlar, ser completo em paz? – perguntou com uma pontada de amargura, desesperada por qualquer palavra de esperança.
Adanu riu, um riso baixo e demorado, satisfeito.
- Minha filha, ... Ainda não viu que ele não é como os outros? Sua alma o viu, sua alma o escolheu. No fundo você o conhece.
- E em que isso pode ajudá-lo?
Adanu parou um momento, examinando a pergunta da filha.
- Acesso, filha – respondeu por fim. – Ele está usando você, somando-se a você, com sua luz achando o caminho para ficar em paz consigo mesmo.
- Não vejo assim. Ele apenas está perdido, por enquanto. Além disso, quanto mais se conhece alguém, mais fácil fica de mantê-lo à distância. Nunca quis ficar presa a ninguém, como nunca quis alguém preso a mim. Sei que tenho que lutar contra isso e...
- Sim, realmente era assim, não é mesmo? – Adanu sorriu. – Mas tudo some quando ele está perto, não é mesmo? Filha, é difícil mudar, pensamos. Ah, mas é fácil demais quando olhamos nos olhos do outro, não é mesmo?
- Um pouco.... Mas, então tudo muda, sabe? Ele é petulante demais, pai. Às vezes penso que nunca poderia construir algo com alguém como ele. E, para falar a verdade, talvez ainda se passem centenas de anos até que eu sinta necessidade de um companheiro. Ele luta contra o demônio dele, eu luto contra o meu demônio, ... que é ele.
- Que é ele – Adanu repetiu com um sorriso. Então, vendo a repreensão nos olhos da filha, se esforçou em ficar sério. – Sabe, nunca imaginei que minha filha iria ficar flutuando em sua opinião sobre alguém. Se solte minha filha. Será melhor para vocês dois. Confiança se recebe quando também ela é ofertada sem compromisso.
- Será mesmo? – refutou a ideia, saltando para o chão e afastando-se pensativa, sob os olhos sorridentes de Adanu.
Allenda, confusa com tudo o que vinha sentindo e com as palavras do pai, desceu os montes em direção ao rio. Ainda estava um pouco distante do rio quando sentiu um braço puxando-a para as sombras.
Ela encarou Uivo, que mantinha os olhos fixos nos seus. Allenda não recuou. A temperatura aumentou levemente, sem que ela se desse conta. Uivo se aproximou um pouco mais. Allenda engoliu em seco, os olhos presos nos de Uivo.
- Cuidado com o que pretende, puma – avisou, a voz meio embargada. – Você pode se queimar.
Uivo não falou nada. Apenas tomou sua nuca e a puxou contra si, as bocas se tocando suavemente. Allenda insinuou uma resistência, que Uivo quebrou facilmente. Então Allenda se colou nele, as bocas se dando. Allenda foi se incandescendo. Uivo se afastou e ficou observando-a com carinho.
Allenda ficou envergonhada, diminuindo rapidamente a temperatura. Uivo, então, se tomou de uma suave sombra e a tomou mais uma vez nos braços. A temperatura explodiu, fogo e sombras se tocando, luz e penumbra, e risos maravilhados.
Por muito tempo ficaram deitados ali, apenas abraçados. O fogo se abrandou e a sombra se desfez.
Em paz Allenda mergulhou num sono profundo.
Em suas visões uma grande onda vinha por sobre as montanhas, feita de neblinas e sombras densas.
Allenda ia virar-se, fugir, afastar-se, quando sentiu algo diferente, como um toque em sua alma. As imagens foram se sucedendo, enchendo os espaços de seus sonhos. Vapores flutuavam, enquanto as nuvens mostravam que tinham vontades próprias.
Havia um som enchendo aquele mundo, e ela conhecia aquela voz. Um corpo sobre uma árvore, acocorado, observando-a, cuidando dela, ela pressentia. Feliz, ria desses cuidados, porque eram acalento para sua alma. Era bom ser cuidada.
Depois um rio, ela nua mergulhando. Ele surgia na margem e logo estavam sobre a grama, se amando. Sua energia crescia, e crescia.
Então algo estranho aconteceu. Sua energia, tamanha era a descarga que sentira, parecia que ia destrui-la. Sua mente confusa tentou uma resistência carinhosa, mas se tornou pânico ao perceber que estava presa, e que suas energias estavam diminuindo rapidamente.
Gritou que devia parar, que a deixasse ir, mas nada aconteceu. Tentou sacar sua adaga, só para descobrir que seus braços pesavam com o peso de uma montanha.
Uma lágrima rolou, ao ver que sempre estivera certa, que amar era doloroso e cruel.
Sua resistência foi diminuindo, até que se foi...
A morte era mais agradável do que supunha, se disse enquanto prestava atenção nos suspiros que dava, cada vez com mais dificuldade, procurando identificar qual seria o último. Amar realmente era doloroso demais.
Suas visões se perderam, sua mente vasculhando possibilidades, e o não amar lhe pareceu a mais terrível delas.
Então o viu nos seus sonhos. A forma como vagava no mundo, a correção do que defendia, o demônio que vergava com sua própria vontade, como a mãe fizera por amor. Seu coração cresceu, ao ver as sombras em luz se mesclarem. Os olhos vermelhos se aproximaram, e havia um carinho tão profundo, e um amor tão imponente naqueles olhos, que sua alma simplesmente se expandiu.
Não tinha mais como negar sua necessidade de Uivo.
- Amo você, Uivo, com tudo o que sou – sussurrou dentro daquela nuvem onde se perdera.