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RESGATE

Eu vi as mãos se estendendo em minha direção. Sempre pensei que seria salvo por anjos. Talvez eu estivesse certo sobre isso...

Eu observava, e o desconforto, que lutava para que diminuísse ou ao menos se tornasse suportável, só aumentava.

Ali estava a mulher grávida, o pai, a família. Eu os observava, e conseguia sentir algo deles. Na verdade eu conhecia a estória de alguns comigo, em vidas anteriores. Na maior parte delas eu fora muito cruel com eles.

Voltei meus olhos para o mentor que me acompanhava. Seu nome era Gastão, e era sério e determinado. Seus modos e voz, apesar de parecerem gentis, eram sólidos, como se visse além do tempo em que acreditava estar, como se tudo aquilo fosse uma simples encenação.

- Você tem realmente certeza de que vai dar certo? Eles me detestam. Se souberem que sou eu eles me matam antes que eu de meu primeiro chute, antes que o coração de a primeira batida.

Meu mentor me olhou, o rosto sério.

- Já conversamos muito sobre isso. No fundo eles sabem quem você é. Vocês contrataram isso. Eles querem vencer isso que está em vocês.

- Podemos ter conversado, mas ainda não estou confortável com isso. Eu acho que...

- Desistir? Você pode, mas sabe o que isso irá acarretar, não sabe?

Bufei baixinho, como um animal acuado.

Sim, havíamos conversado longamente sobre isso.

Nas últimas três encarnações eu fora muito cruel com três deles, meu pai, minha mãe e minha irmã mais velha.

A que estava para ser minha mãe era uma escrava que eu comprara. Era muito bonita. Eu abusava dela várias vezes, e ainda me comprazia demais quando os meus amigos faziam isso, como muitos de nós reunidos. Quanto mais sofrimento ela sentia, mais feliz eu ficava. Isso foi até que um dos meus amigos inventou um jogo um pouco mais forte para fazermos com ela. Ela aguentou alguns dias enquanto íamos retalhando-a enquanto nos divertíamos.

Quanto ao que estava para ser meu pai, ele era um escravo também, naquela mesma vida, mas ele era um trabalhador numa mina de carvão que eu explorava. Para que ele pudesse entrar nos tuneis, quebramos seus joelhos assim que o adquiri, o que o obrigava a se arrastar pelos tuneis. Então, um dia, houve um desabamento, e ele ficou preso. Quando o capataz me contou do desabamento fui até lá, para estudar o caso. O capataz disse que conseguiriam em poucas horas tirá-lo de lá. Eu ouvia os gritos, porque ele tinha medo do escuro, e seu pânico aumentava quanto mais o lampião se enfraquecia. Ele está muito fraco, e vou ter que gastar muito para deixar ele mais forte. Quanto ele morrer abra novamente o túnel e jogue-o no brejo. Vai ser melhor. Então foi que houve xingamentos e ameaças. Possesso de raiva mandei que o tirassem de lá e que o amarrassem na estaca. Como um louco o vergastei, deixando seu corpo todo rasgado. Então ordenei que o deixassem lá, e que lhe dessem água e que o alimentassem de quando em quando. Ninguém entendeu, até que a carne começou a apodrecer e bernes começaram a devorá-lo, tal como os urubus que desciam sobre o seu corpo. Amordaçado só conseguia ouvir seus gemidos, que foram se tornando cada vez mais fracos, até que por fim silenciou.

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E havia aquela que seria minha irmã. Ela havia sido minha esposa, duas vidas antes da que estava para começar. Eu era um escravo, e era um lambe-botas do patrão, motivo pelo qual tentava fazer vistas grossas quando ela era chamada para a casa grande, para o quarto dele. Mas aquilo foi me ferindo, e como não podia reagir ao meu dono, comecei a ver culpa nela, somente nela. Eu e o meu dono éramos as vítimas dela, eu via assim. Então, cada vez mais, como se fosse uma vingança inconfessa, eu a enviava ao meu dono cada vez mais machucada. No começo era levemente, mas vendo que ele não se importava, comecei a ser mais agressivo. Até que ele pediu para ver. Ele ficava sentado, observando as sessões de tortura, que cada vez se tornavam piores. Então, quando estava satisfeito, se levantava e se servia dela, do jeito que estivesse, até que ele também começou a tortura-la. Ela não sobreviveu muito tempo. Foi quando ela morreu que vi a grande covardia que eu tinha cometido, e quanto falta ela me fazia.

Quando morri, como o senhor de escravo anterior, eu os vi, e por eles fui perseguido por muito tempo, até que fomos nos recordando de muitas vidas anteriores, em que trocávamos os papeis de vítimas e algozes. Então nos reconciliamos parcialmente, ao ver o tanto que nós quatro nos torturávamos, e mais ainda ao ver como tudo começara.

Fora há muito tempo, muito tempo atrás, e todos nós éramos amigos. Queríamos evoluir mais rapidamente, e nos damos chance para encarnações drásticas. Mas, foram drásticas demais, e esquecemos a pretensão inicial e passamos a nos odiar, nos procurando nas vidas após para nos vingarmos.

E tudo desembocou nesta vida, porque nós quatro estávamos cansados disso.

Cansado disso...

Olhei para o meu mentor e sorri, vencido.

O nascimento não é um estalar de dedos, e não é um processo simples e fluído, na maior parte das vezes.

Eu estava na luz e era amplo em meu entendimento, e tinha pessoas ao meu lado que se preocupavam comigo, e com eles passava a entender a vida como experiências que buscávamos avidamente para evoluir, apesar de saber que, quando fomos destacados de Deus, perfeitos já éramos. Mas, era como um teatro, em que nos esquecemos de quem éramos para podermos participar do capítulo.

Quando aceitei me senti oprimido, cada vez com mais força, enquanto sons absurdos pareciam que iam sufocar a minha alma. E sons e cheiros estranhos, nauseabundos, sensações terríveis. Era uma reação, eu sabia, a tudo o que eu deixava para trás. Era como você pegar uma pessoa vivendo no ar livre e obriga-la a caber em uma caixa de sapatos colocada num canto escuro e terrível de um lugar abandonado.

O medo e o pânico de que já me havia desacostumado voltaram violentos demais, porque todos os que não estavam encarnados tinham verdadeiro receio da selvageria desta dimensão deste mundo. Esse é um dos mundos mais duros para nascer. Meu mentor me disse que já foi pior, muito pior, e quanto mais as almas aqui evoluem, mais consciência o mundo vai tomando, e vai melhorando. Mas, ainda é um lugar tenebroso para se pensar em nascer.

E eu estava para nascer, e com pessoas que eu judiara terrivelmente.

Então tudo teve um baque seco e terrível, e eu fui apagando, enquanto descia para o corpo. Normalmente não é assim, mas visto o pânico e o terror que eu tinha, pela família em que iria nascer e pelo mundo que eu passara a temer, me deram esse balsamo: me esquecer enquanto descia para assumir o pequeno frágil corpo.

Abri os olhos quando levei um susto.

Vi um sorriso imenso e uns olhos grandes e luminosos, e tive amor por aquela pessoa. Então senti mãos grande e fortes me acariciando, e virei com dificuldade o meu rosto, e vi outra pessoa, de olhos felizes e gentis. Meu coração bateu feliz, ainda mais quando uma pequena pessoa pulou na cama, e pôs seu rosto bem perto do meu, feliz por eu ter chegado.

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