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APENAS ALIMENTO

E se você se lembrasse que é parte do UM...

Eu tremia demais, meus ouvidos cada vez doendo mais, enquanto ouvia os urros se aproximando. Então, a partir de um determinado momento, só havia aquele silêncio terrível e pressago.

Olhei apavorado para os lados. O mato continuava calmo, embalado pela brisa. O tempo estava seco e as moscas estavam incômodas.

Tive raiva do vento e das moscas, porque não pareciam dar a mínima para o meu medo, para a minha vida que poderia desaparecer dali a pouco.

Então minha mente perguntou ao vento como seria não se ouvir mais no mundo a minha risada e os meus gritos de guerra; como a terra ficaria ao não sentir mais meus passos pesados me levando sobre ela; como estariam as águas do rio largo quando eu não me banhasse mais nele. E minha família, como ficariam sem que eu estivesse sempre ali, ansioso para ouvi-los contar suas estórias e para caminhar ao lado deles? Em minha agonia me vi perguntando às montanhas e à floresta se eu era apenas isso, um alimento.

Em total silêncio senti a esperança repentina embalando meu coração. Imaginava que algo iria acontecer, e eu conseguiria escapar. Um trovão assustador ao lado poderia espantar a leoa, ou então um guerreiro poderia estar passando por ali, ou...

Mas o céu estava claro, e eu nada conseguia vislumbrar nas distâncias.

Então sorri, sabendo que a minha estória, e que eu mesmo, em pouco tempo estaria esquecido.

Senti um movimento disfarçado pela minha direita. Me virei o mais suavemente que pude, como vira os caçadores fazer. Mas, eu estava tomado de medo, e meus movimentos estavam incertos.

Enchi o peito, recitando para mim mesmo que se eu não acertasse as coisas comigo e deixasse meu medo de lado, a minha morte estaria muito próxima. Com um terrível esforço me obriguei a me concentrar naquele momento, no que estava acontecendo à minha volta.

Subitamente vi um movimento à minha esquerda, uma mancha caramelada subindo do mato seco e deslizando com incrível velocidade para cima de mim.

A brutalidade e a indiferença pelo que eu era me chocaram, e eu fiquei paralisado por momentos preciosos demais.

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Por fim gritei de dor, ao sentir o peso das patas me empurrando contra o chão, enquanto as presas se cravavam nas minhas costas e se puxavam para cima, arrancando um grande pedaço da minha carne.

Em desespero, ignorando a dor, forcei um giro, que consegui pela metade. Mas foi o suficiente para eu poder enfiar minha lança na fera. A lança entrou pelo peito dela, mas vi, desanimado, que nada fora atingido, mas apenas a pele e alguns músculos.

A leoa deu um tapa vigoroso com a pata e minha lança foi arrancada da minha mão.

Com rapidez ela saiu de cima de mim, retirando com os dentes a lança de si. Eu vi seu olhar, e vi que contava de vingança e maldade.

Com os dentes rilhados terminei de deitar de costas, apenas sentindo um incomodo perto da omoplata, de onde ela arrancara um bom pedaço.

Sôfrego, procurei pela lança, maldizendo ter deixado minha faca para trás, tão apavorado eu estivera na partida para o ritual de caça, quando eu deixaria de ser considerado apenas um menino.

Porém, não consegui nem mesmo ensaiar um movimento para pegá-la. De súbito a leoa rasgou meu peito e minha barriga. Senti um liquido quente escorrendo pela minha cintura, enquanto via um pouco dos meus intestinos escapando do meu corpo.

Até pensei em rir um pouco, vendo aqueles tubos brancos estriados de vermelho, mas ela cravou suas garras nas minhas pernas, enquanto sentia seu hálito quente no meu pé direito.

Com o outro pé eu chutava o focinho da leoa, mas ela apenas mantinha os olhos fixos em mim, indiferentes. Ela até mesmo me parecia feliz, enquanto devorava com horrível lentidão o meu pé.

Tomado de euforia senti minha mão tocar uma pedra, que tomei apressado. Com a força que ainda tinha acertei a sua cabeça, e nada.

Foi então que a leoa se levantou raivosa, urrando e chamando os outros de seu bando, porque um bando de hienas se aproximava.

Enquanto duas hienas distraiam a leoa, senti mandíbulas se fechando na minha cara e me puxando para longe da leoa. Então uma outra mandíbula se fechou no meu pulso, quebrando um dedo da minha mão.

Tomadas de pressa sabia que outras duas hienas estavam tentando me tirar do alcance da leoa.

Ouvi então as “risadas” doloridas das duas hienas, e soube que a leoa conseguira atingi-las.

Então me senti solto pelas hienas, e ouvi como se fosse em sonhos suas risadas se afastando lentamente.

A leoa me “salvara” das hienas, pensei confuso e transtornado.

Como se fosse em sonhos eu tinha consciência do calor molhado em meu rosto, e pensava o quanto meus intestinos deviam estar esticados além dos meus pés, ou do meu pé. Também, nesse sonho amortecido, senti o calor do corpo da leoa, quando novamente se deitou entre as minhas pernas.

Senti então uma fraqueza que avançava pelo meu corpo, acompanhada de uma onda estranha, feita de frio e calor. Os dedos do meu pé já não doíam tanto, apesar de saber que ele não estava mais comigo, porque eu já sentia que ela estava devorando a minha canela. Nem mesmo o barulho dos ossos sendo partidos e a carne sendo puxada de mim me incomodavam mais.

Havia uma paz incrível no mundo, uma paz que nem mesmo a aproximação dos outros do bando conseguiam perturbar.

Fiquei feliz, porque logo tudo iria acabar.