Dor que criamos e aceitamos. Se brotamos puros da mente de Deus, deveríamos experimentar isso?

Havia aquela dor no peito. Eu estava em meu leito, e via aquelas pessoas aguardando desesperadamente que eu morresse, inclusive minha mulher e meus filhos.

Olhei para eles com desprezo, acreditando que... Nem sei bem em que acreditava, porque eu sabia em minha alma que, ao morrer, iria para um lugar melhor, mais adequado ao meu merecimento do que aquele lugar acanhado. Eu merecia bem mais do que aquilo, do que eles, eu tinha convicção.

Com prazer vi a escuridão vindo para os meus olhos, na partida inevitável.

Então, subitamente, ouvi gritos e xingamentos, e dedos que me atingiam como garras, tentando me pegar.

Gritei irado e tentei empurrar o vulto que estava ao meu lado. Mas então vieram outros, e mais outros.

Procurei minhas armas, e eu não as tinha. Meio distraído percebi que vestia andrajos, mas não me dei conta disso na hora. Então procurei algo no chão, por entre as pancadas e arranhões, com que pudesse atacar e me defender. E foi então que vi que o chão era como um pântano. Como uma dolorosa explosão vi que o mundo era diferente, era escuro e cheirava muito mal. Assustado com aquele lugar olhei para o céu, me assombrando com sua cor de um vermelho enferrujado.

Meu coração doeu, me lembrando das coisas que ouvira quando era criança sobre o céu, o inferno e o purgatório.

Mas não pude pensar muito, porque os golpes agora eram como saraivadas, e minhas dores estavam muito fortes. Então, só me restou correr. Empurrando e chutando consegui algum alívio, apesar de sentir alguns golpes esporádicos, muito fortes, vindos do alto.

Não sei quantos anos fiquei assim, sendo constantemente perseguido e surrado, naquele mundo feio e malcheiroso. Eu me escondia em buracos nos barrancos ou ficava oculto em poças de lama podre, comendo restos de carne que achava pelo chão, de que nem procurava saber a procedência, ou raízes que pareciam vivas, que sobressaiam do chão lodoso.

O pânico foi crescendo lentamente, nos seres que me perseguiam, gritando meu nome, lançando maldições constantes sobre mim.

Então um dia eu desisti!

Subi um monte escuro que vi contra o céu vermelho, e cai de joelhos. Magoado e triste olhei a cidade imunda e podre de casebres nojentos que muitos chamavam de lar, um pouco a leste do monte em que eu estava. Mas não tive muito tempo para ficar admirando sua condição. Alguns seres vieram atrás de mim, e não me importei, nem mesmo quando me atacavam. Em minha mente, há alguns dias, vinham imagens de dor e desprezo, de maldades terríveis e insanas, de atos horrendos e desumanos e o gosto amargo do prazer que eu sentira quando os perpetrara. E essas imagens foram se avolumando com as horas que corriam, e me perdi nelas. Então voltei a atenção para o mundo feio e tenebroso e, pela primeira vez, eu sorri, aceitando tudo o que estava acontecendo. Baixei a cabeça, sentindo cada golpe, cada arranhão, cada xingamento, cada cusparada, como se fosse um pagamento a que eu tinha direito.

Acho que foi por isso que levei algum tempo para descobrir que os golpes haviam cessado, e que havia alguém de uma energia diferente perto de mim, e que uma luz suave e cálida se espraiava no chão, ao meu lado.

- Agora entendeu?

Era uma voz tranquila, como eu já me esquecera que alguém poderia ter. Levantei os olhos e dei de cara com um jovem que sorria.

Ele usava as roupas dos serviçais da minha velha vida, mas havia tanta majestade nele e na luz que ele irradiava, que baixei os olhos, envergonhado, não pela sujeira em que eu estava, mas pela sujeira que eu sabia em que minha alma estava afogada.

- Merecimento – eu balbuciei, mantendo meus olhos baixos.

- A culpa em nada te favorecerá, o conhecimento sim. Vamos?

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Levantei os olhos, e vi suas mãos estendidas para mim.

Depressa tentei limpar as mãos em minhas roupas, depois no meu corpo, vendo frustrado e triste o quanto aquilo se mostrava impossível.

Então vi a mão daquele rapaz avançar e tomar a minha, e senti mais que vi que tudo mudava.

Eu estava limpo em um local luminoso. Meus olhos arderam, mas logo se acostumaram, e me vi no mesmo monte, agora verde e limpo, e vi a leste a pequena cidade, tão charmosa e bem cuidada que suspirei.

Com uma paz que me fez suspirar ele foi descendo o monte por uma trilha sinuosa, que segui. Pássaros e flores, e nuvens brancas e céu azul, e perfumes e... vozes alegres e risos...

Continuei a descer, sentindo meus olhos molhados e pesados. Minha alma se recolheu em meu coração e apenas segui o rapaz.

Tudo o que vi, tudo o que aconteceu então, daria um livro bem grosso, que talvez um dia eu compartilhe.

O importante, agora, é saber que fui bem acolhido. As pessoas que eu encontrava me sorriam, e muitas vinham conversar amigavelmente comigo, desde o começo que ali apareci na companhia do rapaz.

Assim que entramos na cidade um senhor apareceu na nossa frente.

- Este nosso irmão é, como dizem, o prefeito. Ele vai providenciar suas acomodações e outras coisas mais.

E dito isso ele sorriu e se foi.

Logo eu tinha uma ocupação e pude viver ali. Não fui julgado por ninguém, muito menos punido.

Era noite, e eu estava no quintal da casa que me destinaram. Não era o castelo suntuoso e escuro que eu tivera antes, mas era pequenina e cheia de luz, e tinha um cheiro tão gostoso que me dava prazer só de respirar ali. Ah, e como era bom me esticar em minha cama macia.

Eu trabalhava bastante, que não parecia por eu fazer o que fazia com... amor.

Os dias se passaram, que se somaram em meses.

No começo eu chorava muito, lembrando e sentindo tudo o que fizera. Mas então, lentamente, fui me acalmando, até que comecei a entender o propósito das coisas.

A verdade de ser a vida uma escola encheu minha alma e me trouxe relativa paz.

Como se pode querer aprender sem errar?

Em um final de tarde eu estava no quintal da minha casinha, descansando do longo dia de trabalho, olhando as estrelas que começavam a surgir.

Ele então se aproximou e se sentou ao meu lado, como muitas vezes ele fazia, tal como os amigos que aprendera a cultivar.

Por horas e horas conversamos, sobre muitas coisas. A conversa começou simples, mas foi, sem que eu me desse conta, se tornando cada vez ainda mais simples, apesar de muito complexa.

Soube de outras vidas que eu tivera, onde fora bondoso, assassino, prostituta, mãe de família... Como item comum nessas vidas a condição de vítima ou algoz e, em algumas raras ocasiões, apenas uma vida de paz, como se fosse uma pausa na tempestade.

- Vê, meu amigo? Não houve erros ou acertos, não houve nada além de uma experiência.

- Essa última foi uma experiência muita dura – falei.

- Você já disse isso algumas vezes, de outras vidas – sorriu. – Essa foi o que você queria experimentar.

– Não sei qual é a condição mais perigosa para uma alma, se ter muito poder ou não ter nenhum. Entendo que quanto mais evoluído menos risco há, mas... E é tão simples escapar dessa roda de dor, não é mesmo? Mas, apesar de tão simples, é muito difícil de aprender. É somente amar cada um como um irmão, seja pessoa, árvore, montanha, pedras... Quem ama assim nem de proteção precisa...

- Por isso essa escola, e outras como ela.

- E os que estavam comigo, que sofreram nas minhas mãos?

- Essa era a experiência que eles desejavam. Eles como vítimas, como desejavam, e você como algoz, como você desejava. Quando se entende isso as dores desaparecem – ele sorriu.

- Eles estão bem?

- O tempo não é uma linha, mas uma espiral. Aqui, muitos e muitos séculos, lá, apenas alguns dias, como poderia ser o contrário, lá um tempo infinitamente menor que o que experimenta aqui. Perspectiva e foco fazem a diferença. Acho que você pode imaginar como eles estão...

- Às vezes ouço risadas deles, e maldições que me dirigem... – sorri. – Mas, entendo... Devagar vou me lembrando disso e de muitas outras coisas. Minha alma ficou muito manchada?

- O bom e velho karma... – ele sorriu novamente. – Se você experimenta ser um assassino, e depois a vítima, e se sente satisfeito com isso, com essas experiências, e como elas aprendeu, então está tudo bem; não há dívidas. Mas se não aprende e volta a repetir novamente a experiência do assassino, ou vítima, ou qualquer outra, não como uma forma de melhorar seu aprendizado, mas por ignorância, por não haver entendido ainda a lição, então sim, há karma negativo. No seu caso, foi experiência solicitada e aceita.

De súbito, como se minhas lembranças tivessem sido despertadas, imagens voaram dentro de mim, cheias de risos, choros, maldições, abraços, de cenas violentas e terríveis e de cenas de amor profundo. E, em todas as visões, havia os olhos, que me olhavam com amor ou que pediam clemência... Os olhos...

Tudo então fez sentido, e sorri satisfeito.

- Ainda tenho esse gosto amargo de poder destrutivo e frio na minha boca. Quero voltar – declarei com tranquilidade.

- Eu sei que sim, meu amigo. Podemos pensar sobre isso. O que pretende?

- Eu tive uma experiência de um poder quase absoluto sobre os outros... Acho que preciso de algo inverso, como o de ser quase absolutamente dominado. Um escravo... Não, uma escrava, capturada nas costas da África, sendo levada de navio para a América...

- Tudo bem, meu amigo. Isso precisa ser examinado. Que tal levarmos isso para seus conselheiros, que vão estudar a experiência que deseja e procurar os algozes para que ela possa acontecer? Vamos? – chamou com um largo sorriso enquanto se levantava.