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QUE AMBOS SEJAMOS LIVRES

Você sabe que sacrifícios está pronto para fazer? Sabe do que terá que abrir mão?

Eu olhei fundo nos olhos da minha filha. Ela era, dentre todos eles, a que parecia mais me compreender, e a que parecia ter a coragem suficiente para me contestar, e até mesmo me repreender. Não, não é verdade... Cada um deles, ao seu modo, se esforçava em me ensinar, eu via isso. Nos olhares de alguns dor, em outros mágoa, em outros compaixão, e em outros uma repreensão que trazia em si esperança, não pelos outros, mas por mim.

Suspirei fundo, vendo suas mãozinhas nervosas, se perguntando do por que eu a havia chamado.

É verdade que ela já estava bem adulta, tendo até mesmo uma filha, mas... Para mim seria sempre a minha filhinha, com seus olhinhos, suas mãozinhas, seu sorriso amável, seu olhar de: “Que tal tentar mais uma vez?”.

No dia anterior, sentindo que minha hora chegava, eu ditara uma carta para cada um dos filhos, onde eu dizia o quanto os amava, o quanto eu me sentia orgulhoso deles. Eu não sabia se poderia vê-los novamente. Nesta vida eu sabia que não, mas em outras... Eu tinha minhas dúvidas porque eu sabia, no fundo da minha alma, o quanto eles eram bem mais avançados que eu. Mas... Gostava de pensar neles como as minhas crianças.

- Verônica, – sussurrei, porque minhas forças estavam bem pequenas, - eu tive um sonho, que sei bem não ser um sonho. Sonhei com muitas vidas, e sempre nelas estávamos eu e sua mãe. E eu sempre a perseguia. Ela encarnava, e eu logo surgia; ou então sabia onde ela iria renascer, e eu já estava lá, aguardando. Foram muitas e muitas ocasiões, vezes sem fim numa grande linha, eu vi. Na França um duelo, onde matei um pretendente, logo a obrigando a se casar comigo. Como sempre, infernizei a sua vida. Outra, como padre, quando a obriguei a ser minha amante, sob pena de processá-la como feiticeira e levar, a ela e sua família, para a fogueira. Outra, como um conquistar espanhol na américa, onde a encontrei como índia, que aprisionei e tornei minha escrava. Em outra vida estávamos na Roma antiga, e... Foram muitas e muitas vezes, minha filha. Quando estamos desencarnados sinto-a fugindo de mim, e não a repreendo por isso. Estou muito envergonhado. Sei o quanto fui duro e ignorante com ela nesta vida, e o quanto vocês sofreram ao ver minhas atitudes para com ela. No entanto, quero prometer que isso acabou. Sei que ela é um vício, sempre foi. Mas... Acho que estou pronto para deixar ir. Quero que ela seja livre, para que eu também seja, e assim poder, finalmente, evoluir. Não quero mais a dor de tentar tê-la sob força ou ameaças, sabendo que ela nunca realmente estará comigo. Aqui, perante você, abro mão dela, do que ela representa para mim. Só peço a Deus força para cumprir essa promessa, na qual empenharei toda minha energia. Eu...

Então parei, notando que algo estava diferente. Eu já não estava mais com minha filha, e não estava mais no leito do hospital, não estava mais na Terra. Eu estava em um lugar claro, limpo, com várias pessoas ao meu lado, todas deitadas em leitos brancos, sob os cuidados de seres vestidos de branco, todos parecendo muito atenciosos.

Baixei os olhos e chorei baixinho. Eu havia morrido enquanto conversava com minha filha.

Após um bom tempo levantei os meus olhos, e examinei os que estavam ali, naquele imenso quarto comigo. Estávamos todos enfermos, logo percebi. Em alguns eu conseguia ver faixas em torno do tronco ou pernas, todos ensanguentados; outros apresentavam terríveis hematomas na face ou tronco, enquanto outros... Preocupado examinei meu corpo, e vi que meu peito e pescoço estavam enfaixados. Toquei de leve, e senti que havia como que uma pomada grossa na qual as faixas estavam embebidas.

Sorri conformado.

Logo uma senhora de modos leves e majestosos se aproximou do meu leito, sentando-se numa cadeira do meu lado direito.

- Como se sente hoje, José?

- Me sinto bem. Não sinto dores, como acho que merecia...

- Acho que você já teve a quantidade adequada de dor – sorriu.

- Não me lembro de...

- Sei que não se lembra de seus tormentos, quando desencarnou. Mas, acredite, foi muito sofrimento que se impôs.

- Quanto tempo?

Stolen story; please report.

- Pelo tempo da Terra foram quase três anos, apesar de sua morte ter acontecido apenas ontem – contou com um sorriso carinhoso.

- Entendo... Meus filhos já tinham me falado que algo assim poderia acontecer. Para mim, despertei aqui enquanto conversava com minha filha. Obrigado por me dar esse esquecimento.

- Ele é momentâneo. Logo, tudo o que você passou, até que foi recolhido daquelas terríveis plagas, voltará.

Fiquei em silêncio. Eu queria saber dela, mas não queria ao mesmo tempo. Queria que tudo se fosse, queria esquecer dela.

- Você terá que encarar isso, sobre vocês dois, você sabe, nãos abe? Não querer pensar é não querer resolver. Você acha que aceitou em sua mente, mas o problema do desejo não está em sua mente, mas sim em sua alma, em seu coração. Enquanto não resolver ali, nada estará resolvido.

- Eu sei, seu sei. Mas, quero apenas um tempo para me recuperar.

- Você já está se dando esse tempo há um bom tempo – ela sorriu.

Então já não estávamos mais no hospital, mas na beira de um lago, sentados em confortáveis bancos de concreto.

Suspirei profundamente, conferindo que meu corpo estava restabelecido, melhor do que eu me lembrava estar aos 26 anos.

- Por que? Por que a persigo, por que tenho tanta necessidade dela? É uma tortura para ela, e para mim também... – gemi.

- É um jogo, que se joga a dois, meu amigo. Você é o carrasco, e ela é a vítima... Você percebeu isso, enquanto conversava com sua filha. A maior parte das vezes, nesse jogo a dois, você se esmerou muito em ser o carrasco, mas em muitas outras vezes vocês tiveram o papel invertido. Não é sobre você, nunca foi. É sobre vocês dois. Vocês precisam parar esse jogo.

- Acho que me lembro de algo... Foi eu quem começou, não foi?

A mulher me olhou, pensativa. Por fim sorriu, condescendente.

- Sim, foi você. Você queria um desafio maior, queria mergulhar mais. Então, por muito tempo, procurou por alguém que se dispusesse a ser o seu algoz. Mas ninguém desejava essa experiência. Até que ela aceitou. Na época ele era seu melhor amigo, e juntos planejaram toda a experiência que você perseguia. Você queria algo que o derrubasse muito fundo, para então ter a experiência de se levantar do caos, o que o lançaria muito à frente na sua evolução. Mas...

- Não deu muito certo, não é mesmo? – gemi pesaroso.

- Não muito. O seu algoz se esmerou muito em lhe dar a melhor experiência de vítima. Dentro do véu você se magoou demais. Você só conseguia ver a maldade, o prazer com que fora quase destruído. Então, quando os papeis se inverteram, você foi terrível. E, vez após vez, vocês se esmeraram em se machucar, cada vez mais profundamente.

- Não quero mais isso... – sussurrei, vendo a verdade do que ouvia.

- Está em você parar esse jogo...

- Se eu procurá-la?

- A mágoa dela está muito profunda...

- É preciso começar em algum momento, não é mesmo? Meus filhos me disseram isso muitas e muitas vezes... Quero vê-la, por favor.

No dia seguinte, bem cedo, a vi ao longe, sentada em silêncio num banco de pedra, que dava vista para um vale profundo e sombreado.

Me aproximei com cuidado. No entanto, mesmo assim senti o momento em que ela percebeu que alguém se aproximava, e que esse alguém era eu. A energia dela ficou tensa, dura.

Parei. Inspirei profundamente, me enchendo de toda a paz que eu podia alcançar. Lentamente fui me aproximando, até me colocar ao seu lado, de tal forma que a pudesse olhar, e que ela pudesse fazer o mesmo, caso essa fosse a sua vontade.

- Eu peço desculpas, peço perdão. Eu sinto muito – falei, pondo todo o meu coração nesses pedidos. – Já fomos amigos, há muito e muito tempo atrás. Acho que fomos muito eficientes em nossas primeiras experiências, e nos magoamos demais. Acho que foi o véu... Não era para ter sido assim.

- O que quer? – a voz estava dura e magoada, tensa, quase decaindo para raiva, demonstrando um ódio que me surpreendeu. Talvez fosse assim, por ela ter acabado de sair do papel de vítima, e eu da “confortável” situação do agressor.

- Fui seu agressor, como você foi o meu vezes antes. Sinto muito. Apenas vim para lhe dizer que não quero mais essa experiência.

- E eu não conto? – ela rilhou. – Meu mentor me falou, o que o seu deve ter te falado sobre nós e nossa experiência. Perguntou, por acaso, se eu estou pronta? Com medo do que preparei para você?

- Não, não tenho medo. Sei que se eu procurar nos registros verei o quanto mal você já me fez, como verei todo o terror que te fiz passar. Então, não quero mais isso. Nossos filhos... Era uma promessa para eles que eu te deixaria livre, mas agora vejo que era uma promessa mais para mim. É isso que eu quero. Se você quiser uma vítima, ou um agressor, terá que procurar alguém que queira essa experiência. Eu, não mais. Seja feliz, seja muito feliz...

Minha alma gritou de dor enquanto me afastava. Queria voltar, e dizer que faria o que me pedia, para que ela buscasse a sua libertação. Mas..., sabia que isso não iria resolver, e que iria esticar isso entre nós dois por mais vidas ainda.

- José...

Parei de súbito, ao ouvir aquela voz que tão bem conhecia. Senti seu tom, e meu coração deu um suspiro de alívio. Me virei bem devagar, e ela estava em pé, à minha frente. O rosto estava triste, e me esforcei para não abraça-la e tentar tirar aquela dor. O vício ainda estava muito recente, e a reincidência era algo real, eu sabia.

> O que me disse, era o que eu planeja te dizer, quando o encontrasse. Desculpe pela minha reação... Autodefesa, com certeza. Seja feliz, muito feliz também.

- Que bom... Talvez em algum tempo entendamos o que realmente ganhamos com isso, e toda essa dor seja apenas o que é: nada.

Então dei um sorriso satisfeito, apesar de pequeno, e me afastei.

Como sempre não sei como me encontrei naquele salão, mas a senhora que me ajudava estava ao meu lado, sorridente e satisfeita.

- Vai dar tudo certo, você vai ver. Agora, os caminhos de vocês se abrem...