O horizonte não é o limite; o céu não é o limite; a morte não é o fim da aventura.
1
A flor-de-fogo segurou o queixada, impedindo que destroçasse o tutu que acuara contra a face de pedra da montanha. Algo estranho nele chamou sua atenção. Com todo o cuidado diminuiu as chamas que era, até mostrar o corpo totalmente em brasa, pronta a se incendiar terrivelmente se isso se mostrasse necessário. Então, sob o olhar vigilante do queixada se aproximou do ser, que havia baixado todas as suas armas e se mostrava tranquilo, mesmo quando ela e o queixada se aproximavam ameaçadores dele.
Pensativa bateu a ponta da lança em brasa no chão.
- O que você quer de mim, para ter entrado no meu caminho? – sibilou ameaçadora.
- Ah, flor-de-fogo, eu sei quem sou.
- Nossa, que frase inteligente – ela zombou. – Se não soubesse te julgaria um tutu, apesar de que ainda posso descobrir que é. Mas, corrigindo, também sei quem você é: realmene você é um de um tutumarambá com esses pelos coloridos que não sabe seu lugar. Não deveria entrar no meu caminho com esses seus modos arrogantes – acusou ameaçadoramente levantando a lança e encostando em seu coração.
Um cheiro de pelo queimado se elevou junto com um som de algo crepitando.
O tutu recuou um mínimo possível e guardou as armas dentro dos pelos com movimentos muito suaves, movimento que foi acompanhado por um resfolegar ameaçador do queixada, mas que logo se acalmou ao ver que ele estava tranquilo e sem armas à mostra.
A flor-de-fogo esfriou a ponta da lança, que apoiou no peito dele, pressionando um pouco. Um filete escuro de sangue correu sobre os pelos e caiu no chão.
Subitamente o tutu pareceu despertar, os olhos se tornando mais luminosos, enquanto a observava intrigado, como um reconhecimento há muito aguardado.
- Nunca a deixei, Ariel. Nessa ou noutra vida eu vou te encontrar... – falou bem devagar, mostrando-se bastante confuso com o que dizia.
A flor-de-fogo o observou intrigada, o corpo parecendo ter sido percorrido por uma corrente elétrica. Indecisa afastou um pouco a ponta da lança, o que fez aumentar por alguns segundos o filete de sangue. Confusa ela resmungou baixinho, os movimentos meio nervosos. Tomada de espanto olhou para o queixada, que resfolegava tranquilo.
Totalmente assombrada se voltou para o tutu.
- Quem é você? – perguntou num sussurro, que mostrava a confusão que a tomava.
- Apenas alguém que a procura pelas eras... – falou, agora numa voz mais confiante e um tanto diferente.
A flor-de-fogo recuou um pouco e montou no queixada, a brasa em muito diminuída, os olhos perturbados postos no ser que apenas a observava.
- Siga seu caminho, tutumarambá – murmurou, a voz denunciando uma velha e incompreendida dor. – Não sei quem você é, mas talvez a gente se encontre em algum momento à frente.
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- Eu vou esperar, como tenho esperado...
- All lantun, senhor dos sonhos – ela falou, agora totalmente despoderada.
- All dezana, flor-de-fogo – ele suspirou, vendo-a se afastar lentamente para dentro do mato.
II
- Você ainda está aqui?
- Nunca mais deixei esses lugares, depois que nos encontramos, centenas de verões atrás – ele disse.
Ela o observou, conferindo o quanto ele havia envelhecido. Sorriu, imaginando o choque que ele devia sentir ao tê-la visto surgir da floresta. Devia estar em ruínas também, suspirou, mas sem qualquer traço de tristeza.
- De vez em quando eu passava por aqui, por todos esses anos, e algumas vezes eu te via – ela confessou com tranquilidade.
- E por que não se aproximou, para conversarmos?
- Eu vim. Não estou aqui agora?
- Está certo. Não quer se sentar? – convidou, apontando para uma rocha que entalhara a modos de banco, ao lado de um outro entalhado da mesma forma.
A flor-de-fogo estranhou quando o queixada passou ao lado dele, e resfolegou como um reconhecimento gentil. Ela não pode deixar de sorrir, pois esse queixada estava ao seu lado apenas há alguns poucos verões.
- Meu nome é Partira, e sou uma flor-de-fogo feita na guerra. Sou filha das matas e das florestas fechadas, que delas cuido, enquanto de mim elas cuidam.
- E eu sou apenas... Lázaro... – sussurrou.
- Lázaro... Nome estranho para um tutu.
- Sim, não é mesmo?
- E esse é PresaForte – apresentou o queixada, que resfolegou. Lázarus o observou, e sorriu feliz.
- Ele é maravilhoso – falou, vendo-o se virar de barriga para cima, examinando o céu azul além das copas das árvores.
- Ele é sim...
Então parou, os olhos presos nos olhos do tutu.
> A idade faz coisas conosco – falou, a voz mansa e suave, - nos deixa sem orgulho e nos faz ver as coisas importantes como são. Nunca deixei de pensar em suas palavras, daquela vez em que nos encontramos. E agora, esse seu nome... Há coisas demais em tudo isso que te envolve, e sinto que são coisas que me fazem muita falta e que, de uma forma estranha e confusa para mim, sinto muita saudade.
- Digamos que somos muito amigos, de uma era muito velha. Somos chamas gêmeas, perdidas e esquecidas de nós mesmos...
Lázarus não pode deixar de sentir seu coração crescer ao ver aquele sorriso imenso e luminoso aflorar no rosto da flor-de-fogo. Não via a energia dela flutuar com descrença ou descrédito. Ela apenas aceitara, e se iluminara com isso.
- Eu sentia algo assim. Sabe, Lázarus, estou velha, muito velha, e minhas guerras e pelejas foram muito pesadas. Então, meu tempo está se acabando, e por isso eu vim. Não posso morrer sem entender o que há comigo, desde aquela vez.
- Pelejas, você diz...
- Há muitos demônios nas florestas negras, e outros tantos nas charnecas e pântanos que tem prazer apenas em judiar das pessoas, homens e animais e plantas. Não pude deixar passar e ... Mas, seu rosto vinha sempre a mim. Pode me explicar, antes que eu morra?
Lázarus se levantou e sentou-se ao lado da flor-de-fogo, que se manteve tranquila, seguindo seus olhos. Quando ele se sentou ela se virou para ele, os olhos imensos e luminosos, um fogo vivo correndo dentro deles, como se aguardasse uma revelação que daria alguma explicação e um sentido profundo à sua vida.
- Há muitos e muitos verões atrás você foi enganada e foi levada a crer que...
- Que você havia me traído... – ela interrompeu, uma dor imensa tomando sua voz, que pareceu falhar levemente. – Isso me veio à mente muitas vezes. É verdade então, o que toma o meu coração? – perguntou, os olhos parecendo ser tomados por um fogo líquido.
- Sim, é verdade, Ariel.
- Ariel... – ela suspirou, olhando com carinho para o queixada, que continuava feliz observando o céu. – Cuida dele para mim, Lázarus?
- Fique tranquila, ele vai ficar muito bem. Vou cuidar dele, até seu último dia – prometeu puxando-a para um abraço terno e carinhoso. A flor-de-fogo se aconchegou com um imenso suspiro.
- Obrigada por acreditar em mim. Estou me lembrando de coisas agora. Ah, o tempo para este corpo se esvai, mas agora sei que eu vou te encontrar, Lázarus. Não quero mais uma vida sem você...
Lázarus sentiu uma lágrima fria correr e penetrar em seus pelos e tocar sua pele. Com uma paz que há tempos não lembrava de ser merecedor sorriu para o queixada, que o olhava como se estivesse feliz, dele se aproximando, enquanto a flor-de-fogo se desfazia em fagulhas.
O queixada observou o tutu se modificando, e deu pouca importância ao anjo de armadura arruinada que se apresentou.
Com um imenso suspiro o grande anjo permaneceu sentado na pedra, acariciando a enorme cabeça ossuda do queixada.
- Agora tudo enfim se aproxima do seu fim – sussurrou para o céu, onde dois anjos permaneciam a observá-lo.
Não pode deixar de sorrir ao ver que eles desciam em sua direção.