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MORRE VALENTINA - 7.922 e7

O poder que damos à morte é aquele que nos perguntamos incessantemente enquanto ficamos com os olhos vazios sondando o eco.

1

Mulo estava pensativo, os olhos perdidos ao longe. Então se voltou, observando seus amigos em silêncio ao lado do corpo dela, que estava deitado sobre um caramanchão de palhas e madeiras.

Com o rosto abatido se aproximou e colocou suas mãos sobre as dela, cruzadas sobre o peito.

- Ela vai voltar – murmurou Avenon, abraçado com Sol.

- Eu sei... Mas, será que vai se lembrar de mim? – Mulo gemeu.

- Tenho certeza de que vai... O que há entre vocês é muito forte, tal como...

- Como Lázarus e Ariel – completou Mulo, uma dor fina escorrendo pelo seu rosto.

- Só que sem a confusão que há entre eles – Avenon deu um sorriso fino e um pouco distante, no que foi imitado pelos outros dois, ao se lembrar das vezes que vira os dois encarnados, que sempre davam um jeito de um matar o outro assim que se encontravam.

- Gostaria de encontrá-la, antes que desça para esta dimensão – cismou, a voz ao longe.

- E para que, meu amigo?

- Para lhe pedir para descer em um corpo mais longevo – sorriu abatido, deixando o silêncio tomar todo o seu semblante.

- Posso? – perguntou Sol se afastando de Avenon e iluminando a mão direita.

- Só mais um pouquinho – pediu Mulo. – Só mais um pouquinho...

- Claro...

Então sol tomou uma acha de lenha e ateou-lhe fogo, entregando-a a Mulo, que sorriu agradecido.

Mulo examinou sua Valentina com cuidado, como se após tantos anos ainda precisasse guardar pequenos e disfarçados detalhes. Apesar da idade avançada, das rugas e bolsas sob os olhos, ainda era o ser mais belo que conhecia. Deu um gemido de dor quando avançou o fogo.

Então se afastou um pouco, vendo as chamas crescerem e se elevarem, envolvendo as palhas e lenhas e ... Valentina.

Com um demorado suspiro se afastou na companhia dos amigos quando o fogo e tudo o que lhe dera vida se foram.

- Bem, meus amigos, acho que Valentina estava certa. Ela queria muito encontrá-lo.

- Héim??? Fala sobre Lázaro, Mulo?

- Sim, sobre ele. Ele não é como nós, não está sujeito ao véu do esquecimento. Ele não esquece, podendo apenas fingir isso, porque ele se esforça em não lembrar, em honra a ela. Então...

- Acha que devemos mesmo buscá-lo?

- Ainda não sei, Sol, mas podemos apenas encontrá-lo e, depois, dependendo do que sentirmos, então aí decidiremos. O que acham?

- Será que ele se forçou a se esquecer de nós? – perguntou Avenon, uma tristeza sondando sua voz.

- Certeza que não. Mas, Ariel foi tirada dele de uma forma tão ... Não tem explicação... – Sol gemeu baixinho, se apegando com mais força no braço de Avenon. – Tentaram tirar a honra deles até quando os matavam ...

- Mas não conseguiram, tenho certeza... É, está certo... Você pode achá-lo, Sol?

A flor-de-fogo deu um suspiro e fechou os olhos, se estendendo pelas montanhas e pelo céu.

De súbito, como parte de uma magia, toda a floresta pareceu brilhar, cada árvore se mostrando, todas interligadas; todos os animais se mostrando, todos interligados. Então viu as sugestões das luzes das pessoas e dos homens e não pode deixar de sorrir, como sempre fazia, quando contemplava o mundo assim.

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Suavizou ainda mais a sua respiração e se aprofundou nas energias, nas luzes que vagavam no mundo. De quando em quando via novamente aqueles mesmos borrões de luzes quase escapando ao espectro de luzes, que sabia serem os anjos, e respeitou que não desejassem ser postos à vista, como viu borrões mais escuros das sombras, que tentavam atingi-la com descargas de energias ruins assim que se viam percebidos.

Por um bom tempo ficou ali, indo de lado a lado, procurando. No momento em que pensava desistir algo se insinuou em sua mente e lhe incentivou a ficar só mais um pouco. Ela suspirou e regularizou novamente a respiração e abriu a mente.

Foi então que o viu, e soube que ele resolvera se mostrar, propavelmente ao sentir que era procurado pelas pessoas que o amavam, a ele e a Ariel.

Depressa abriu os olhos marejados, agora luminosos, postos em Avenon e Mulo.

- Eu o encontrei, e ele nos espera – falou se poderando apressadamente enquanto chamava um queixada, que logo irrompeu da floresta.

II

O grande lobisomem parou sua caminhada na trilha fechada e foi se virando bem devagar, as garras de marfim se denunciando.

Os três viram seu enorme e curvado corpo se retesar e o ódio assomar violentamente, enquanto as presas se mostravam ameaçadoras.

Então, tal como viera, a raiva e o instinto se foram, e seus modos se suavizaram.

Devagar o grande bicho se aproximou deles. Com um impulso forte e leve, galgou e se sentou sobre um tronco de um grosso jequitibá tombado na floresta.

- É você, Lázarus? – Avenon perguntou, todo surpreso.

- Não estou bonito? – o lobisomem sorriu.

- Pelo Trovão, você está medonhamente aterrador. A encontrou? – perguntou Sol.

Com um pequeno tremor a forma angélica de Lázarus se mostrou. Lá a mesma armadura judiada, a grande espada ao lado do corpo, como duas novas que viram apontando às costas, que na hora viram se tratar das espadas de Ariel. E havia aqueles olhos bondosos e tristes. Então a forma tremeu novamente, e o grande lobisomem de aspecto terrível os observava atentamente.

- Da última vez nos matamos assim que nos vimos – o lobisomem riu baixinho. - Eu pareci muito fraco, como um humano – esagarçou um sorriso que fez Avenon arrepiar. – Errei feio...

- E ela estava como?

- Ela era um mapinguari...

- Então você escolheu mal mesmo – Avenon não aguentou e sorriu, e Lázarus notou sua tristeza.

- Eu senti Valentina deixando esse plano – contou, os olhos pesados voltados para Mulo.

- Nós queimamos o corpo que ela usava agora há pouco – sussurrou.

Lázarus inspirou demoradamente, os olhos postos no céu.

- Não deve sofrer, meu amigo. Não devem sofrer, meus amigos. Vocês logo vão encontrá-la novamente. E ela vai te reconhecer de cara, Mulo – falou ao ver a insegurança no amigo, sorrindo ao ver como ele se iluminara com o que dissera. – Quando ela partiu ela estava simplesmente... radiante. Ela estava feliz,

- Você viu isso? – Mulo quis saber.

- Vi... Vai ficar tudo bem. Ela não vai abrir mão do que são juntos.

- Ela é incrível – suspirou Mulo.

- A verdade, meus amigos, é que Valentina nunca foi o que aparentava, tal como vocês não são. Vocês são algo mais.

- O que quer dizer com isso? – Sol estranhou.

- O que eu disse, apenas isso. Fiquem tranquilos; tudo vai se mostrar e se acertar.

Então todos se entreolharam e sorriram mais aliviados.

- Nossa, é bom demais ter você de volta, Lázarus – falou Avenon em todo sua franqueza. – É bom demais...

- Também me sinto bem com vocês, meus amigos, porque os considero minha família. Mas, talvez demore um pouco mais para a gente poder se reunir novamente. Eu tenho que fazer o que tenho que fazer.

- Despertar Ariel...

- Sim... E como todos dentro dessa experiência, ela não pode ser obrigada, não pode ver e saber o que não está pronto. Além disso, devo isso a ela. Assim, minha família, vou adormecer um pouco, e vocês serão lembranças novamente. Só nos aguardem, porque vamos voltar – falou se erguendo em toda sua enorme altura.

- Mas por que, se não foi você que a ...

- Nessa realidade que ela quis criar, ou que a fizeram desejar criar, eu sou esse que a traiu e torturou. Ela tem que ver a luz e sair da caverna, por si...

- É, está certo. E quanto a nós? – perguntou Sol, a confusão em seus olhos. – Vocês também são nossa família.

- Aconselho encontrarem e protegerem a Valentina, e se apresentarem a ela quando ela estiver preparada. Quando a mim e à Ariel, podem ter certeza de que, quando resolvermos o que nos atrapalha, vamos encontra-los.

- Ah, entendi... – riu Avenon. – Um chega prá lá em nós...

Mulo sorriu ante a espontaneidade de Avenon, que havia ganhado uma cotovelada divertida de Sol.

- E ele está certo – Mulo suspirou. - Isso é maior que nós e não devemos interferir. O tempo certo vai se apresentar. Mas, foi muito bom te encontrar, Lázarus. Bom mesmo.

- Também acho. Akindará, meus amigos...

- Akindará – disseram em despedida.

Então, devagar foram se afastando entre risadas, brincando com Avenon.

O grande lobisomem resmungou de confusão ao se ver sobre o tronco caído do jequitibá, que jurava já ter ultrapassado. E mais confuso ainda ficou ao ver três pessoas se afastando, parecendo muito animadas.

Por alguns segundos pensou se não deveria dar cabo deles. Com cuidado os sondou, e não viu ameaça neles. Ao conrário, estranhamente se sentiu bem com suas vozes e risadas, ainda mais quando a mulher se virou para ele e sorriu.

Por fim, resolveu desconsiderar.

Com um salto majestoso tocou o solo já caminhando com suas longas pernas. Avançou o braço e no ar matou o pequeno cervo que se assustara com sua presença. Distraído deu uma grande mordida e arrancou um naco de carne, seus olhos se voltando para um local muito ao longe, onde sentia uma presença estranha e incômoda que parecia atraí-lo.