Depois que passa, fácil se parece. Dores e desesperança se tornam lembranças na alma que sabe se curar.
1
Ladar bufou, assustando os três demônios que se mantinham pacientemente ao seu lado, que apressados e apavorados se foram para além da montanha.
Desde que matara Lázarus, milênios atrás no tempo, tudo parecia ter se esfacelado, e o ódio e a amargura que tinha pareciam um pouco... for a de contexto. A importância que sempre dera ao seu papel de vítima parecia, agora, quando se fixava nele, meio descabido.
Toda sua memória estava ali, intacta, mesmo que sempre se mostrasse borrada, confusa, quando tentava se fixar nela.
A partir de seu último encontro com Lázarus preferia ficar quieto, cada vez mais em si mesmo, pensando, mascando, talvez seguindo o exemplo de Mercator, desejoso de entender seu real papel na experiência do UM. Se olhasse para trás, na linha do tempo, via que estava mudando, que suas memórias estavam se organizando.
Deu de ombros, aceitando o que viesse.
Seus antigos dominados e liderados, lentamente, e de forma quase imperceptível, foi deixando de lado, expulsando, sobrando nesses dias apenas esses três, que insistiam em permanecer. Talvez lhes desse a chance de ficarem mais próximos, decidiu avaliar mais tarde.
Mas, sem perceber ficou examinando-os. Atentou com cuidado em seus rostos, em seus modos, em seus olhos. O medo que viu neles lhe doeu.
- Vão, desapareçam da minha frente, e não se aproximem mais – avisou, um súbito ódio subindo e substituindo a pouca empatia que sintonizara antes.
Eles devem ter percebido. Após se entreolharem, aos gritos rapidamente se foram, sumindo dentro de rincões sombrios na mata.
Lada bufou e, lentamente, conseguiu voltar a ter o simulacro de paz que conseguira agora há pouco, se perguntando o que estava acontecendo.
Tudo se intensificou há coisa de noventa dias atrás quando percebera o pulso de energia, que reconheceu de imediato e sem qualquer dúvida, apesar do longo tempo decorrido. Seu ego doeu, percebendo o quanto for a enganado, mas acabou sorrindo, satisfeito, até mesmo feliz. Lázarus não estava morto, como não descera definitivamente na experiência, onde teria se perdido, como for a levado a acreditar por todo esse longo tempo, tal como ele se ocultara, deixando Lázarus acreditar que ele havia morrido irremediavelmente, lembrou com um certo prazer. Agora entendia que for a pago com a mesma moeda, percebeu com um sorriso.
Então, lá estava Lázarus, se fingindo de esquecido, criando corpos para si, corpos de pessoas e de homens, sempre se acercando de uma mulher, que também sabia com certeza quem era. Desde então passou a segui-los com discrição, e viu as linhas de tempo dos dois, e riu quando viu o trabalhão que se davam, sempre se matando no caminho, para novamente se reencontrarem no futuro. Então a esperança do anjo ferido foi lentamente entrando em sua alma, emocionando-o suavemente.
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E foi num dia desses que se viu sob atenção de Emanoel e de seus anjos, que apenas o observavam, sem interferirem com ele, o que agradeceu e lhe deu a medida de sua recuperação.
Após pensar por um breve tempo, resolveu que chegara a hora de dar um passo definitivo.
Na larga campina onde o vento fazia o alto capim ondular como se fossem ondas no mar, sentou-se sobre um cupinzeiro deixando o sol aquecer seu corpo. Prestou atenção apenas no sol e no vento, e nas canções que passavam à sua volta. Relaxou e deixou sua mente crescer, sua atenção se expandir, sua mente se esquecer de avaliar e de ter prazer em se ver como vítima ou torturador.
Devagar respirou fundo e curto, trazendo energia com sua inspiração para dentro de seu corpo, tocando cada fibra, cada célula. Em paz e esquecido deixou que ela se espalhasse por todo seu corpo e sua alma, que foi iluminando. Sentiu uma dor e uma aversão se agigantarem, e um grito horrível de sua alma, horrorizada com a escuridão e com o que era nela. Mas ignorou tudo isso e toda a resistência que se espalhava por todo seu ser – não era fácil se desintoxicar da escuridão, da mágoa e da dor..., do medo.
Forçou ainda mais a luz.
Com convicção se lembrou de ser Haamiah e de como se sentia quando era inocente no paraíso. Então, quando a luz explodiu ante seu ser, apenas se deixou adormecer, se permitindo se curar, e se lembrar de que o que vivera por tanto tempo na escuridão for a apenas uma ... experiência ...
II
- Se observar, foi até fácil sair da escuridão – sorriu baixinho.
- Não se engane, Haamiah. Foram milênios de tormento pelo qual passou, sua alma buscando entender o que lhe acontecerá, buscando vencer os desafios que se impusera. Sua queda foi brutal, e em alguns momentos receávamos que não iria conseguir. Agora, parece que foi fácil, mas nós o vimos acompanhando, e posso dizer que sua luta foi para poucos – sorriu. – Grão sobre grão você construiu a montanha de onde se pode ver. Temos muito orgulho de você...
- Vejo os atos inocentes de Haamiah, como vejo os atos inocentes de Negrumo e de Ladar – falou. – Mas, o que sou agora, Emanoel? Sinto um silêncio dentro de mim, um silêncio frio e impessoal. Toda a tempestade que vejo, não sinto; toda a dor que resvala em mim, não me toca. O que me tornei, Emanoel?
- Sabe, conheço um demônio a quem poderá chegar a fazer essas perguntas. Você, meu amigo anjo, se tornou assim antes dele. E, ainda, tem Lázarus, que possui essa calmaria na alma, que só não o entorpece porque tem Ariel...
- E eu? Quem eu tenho, Emanoel?
- Ah, você... Há certas coisas que ainda vai fazer, pelo valor que é. Um convite já te foi enviado, e cabe a você aceitar ou não. Independente de qual for a sua escolha, é certo que você agora vai cuidar de velhos amigos, confortar suas almas e rir com eles. Depois, lá na frente, você vai descer na experiência, e lá vai encontrar sua âncora. Tenha paciência! Não tenha pressa, aprecie o caminho. Alguém muito especial está à sua frente, porque sempre esteve ao seu lado.
- Uma pessoa especial? – Cismou.
- Talvez uma demiana, ou dêmona, ou ambas – Emanoel sorriu.
- Enigmas... Tudo bem, vou aceitar, porque parece ser boa coisa. E quanto a ser dêmona ou demiana, já vi maldade demais em ambos, como já vi bondade demais em ambos também. Obrigado. Vou esperar. E quanto a Lázaro?
- Ah, esse... Você viu... Ele e Ariel continuam brincando de se matarem... Logo eles vão se cansar disso – riu, batendo as mãos nas coxas. – Pronto para ser um AnjoAoLado, ao menos por algum tempo? Estávamos esperando por você.
- Sem dúvida que sim, meu irmão.
- Então, como AnjoAoLado, você tem dois irmãos para cuidar. Apesar de me divertir em vigiar os dois, deixo para você a incumbência. Mas vou avisando que, quando eu quiser me divertir, eu vou voltar – riu.
- Ariel e Lázaro?
- Quem mais?
- Acha apropriado? Se me perceberem os ânimos podem ficar exaltados – sorriu preocupado.
- Sementes, meu amigo, sementes. Não acham que eles precisam ir se acostumando com sua energia?
Por um momento Haamiah ficou em silêncio pensando, e viu que estava tudo certo ali.
- Tudo bem, tudo bem... Tenho essa dívida – sorriu.
- Isso, meu amigo. Dívida, não carma...
- Ainda bem... – sorriu. - E será bem-vindo, quando quiser aparecer. Aduene, Emanoel.
- Adanene, Haamiah. E seja bem-vindo de volta – cumprimentou, após um apertado abraço.
Haamiah suspirou, colocando sua atenção discreta e carinhosa sobre um anjo e uma vigilante.