Assim que caiu o lençol da noite sobre Polireti, pais e filhos, muitos já pregando os olhos, podiam ouvir uma voz se aproximando.
“O monstro!” gritava Romuno. “É o monstro! Socorro!”
O rapaz vinha correndo da fazenda dos Reso, passando por todas as casas com alguma luz ainda acesa na pequena vila. Aos montes, saíam os homens das casas com paus, tochas, lanternas e ferramentas de colheita nas mãos. Quando Romuno juntou uma multidão considerável — e acordou todo o resto da vila — correu na frente para mostrar o caminho.
“Ali!” disse, apontando para trás de algumas árvores. “É o monstro!”
Os que estavam mais na frente, seguindo Romuno de perto, conseguiam ver alguma coisa atrás da árvore. Era um vulto bípede, mas com forma de urso ou lobo. Quando percebeu que havia uma multidão atrás dele, o monstro fugiu.
“Atrás dele!” gritou Romuno.
Pegando a lanterna e a foice das mãos de um dos que estavam lá, o rapaz foi destemidamente até o coração da floresta, além das cercas da fazenda. Porém, o resto da multidão ficou para trás, apenas observando o fogo se perder no meio da escuridão densa das árvores.
“Filho!” Seutak atravessou a multidão. “Onde está meu filho?”
“Ele foi para a floresta” disse um baixo.
“E por que vocês não o impediram?”
“Essa deve ser outra brincadeira dele” respondeu um alto.
“Mas ele se superou nessa” tossiu um gordo. “Vocês viram o tal “monstro”?”
“Ficou bem feito” espirrou um magro. “Vai esfriar, essa noite. Vamos indo, ele sabe se cuidar.”
Seutak viu todos os rostos na multidão e, por isso mesmo, seu coração estava batendo como os sinos da Catedral de Yorshim — com uma desordem frenética e agitante. Enquanto todos voltavam para suas respectivas casas, Seutak era o único que ia para um lugar diferente.
Ao mesmo tempo, Ystvan refazia os curativos de seu pai para aquela noite.
“A Lua só vai estar cheia na noite de amanhã… Mas o Licano já apareceu.”
“Você conhece o Romuno melhor que ninguém. Essa é mais uma das loucuras dele.”
“Não basta que eu seja louco, ele também tem que ser?”
“Eu não disse isso.”
“Eu vi esse garoto nascer! A sua mãe—”
“Não fala da mamãe.”
“Ele é bagunceiro, mas tem um coração puro.”
“Eu sei, pai…”
“E a sua irmã? Ela é louca também?”
“Se você se esforçar muito, os curativos vão abrir.”
“Será que você é o único são da família, filho…” Ystal segurou a mão de Ystvan. “Ou é o único que não enxerga a verdade?”
Naquele momento, rangeu o piso do corredor. Os dois puderam ouvir a mudança de cadência dos passos do outro lado da porta — leves, próximos ao quarto, tornaram-se uma corrida na descida das escadas. Ystal disse:
Stolen from its rightful place, this narrative is not meant to be on Amazon; report any sightings.
“É a sua irmã. Vá atrás dela.”
Ystvan deixou as bandagens e bebidas quentes ao lado da cama e correu atrás de Yeta. Quando ele saiu pelo portão do templo, ela já estava correndo pelo caminho de terra até a floresta. Ystvan poderia — e deveria — ter ido mais rápido, mas preferiu manter um ritmo constante para não chegar exausto até a irmã.
Na floresta, a claridade inconstante da Lua achava alguns buracos por entre as copas das árvores para se manifestar, contudo a lanterna que segurava era a única confiança que Romuno tinha no seu caminho.
“Hahaha! Você viu aquilo?” perguntou o rapaz. “Deu certo! Todo mundo acha que é brincadeira.”
Romuno não estava sozinho, era com o vulto negro por trás das árvores que ele conversava.
“Agora, me entrega essa pele. Eu só preciso lembrar onde deixei o balde de sangue…”
Aos poucos, o vulto se aproximava e ganhava cor. O seu pelo exalava um cheiro forte de cachorro molhado, as suas patas pesadas compactavam a neve, e as suas garras cresciam em tamanho. O monstro andava arqueado para frente, rosnando e babando como um animal faminto. A boca estirada era característica de um lobo, mas os olhos negros que a criatura tinha besta nenhuma da floresta teria igual.
Romuno não conseguia se mexer. Suas pernas tremiam, e as suas mãos ficaram dormentes. Estava difícil respirar, ainda que o ar gélido das madrugadas de Inverno não fosse novidade para ele. Naquele momento, todavia, ele não pensava em si mesmo. Só um nome, um rosto aparecia estampado no seu coração. Era por aquela jovem que ele estava ali. Era por ela que ele fazia tudo.
Ystvan passou pela cerca da fazenda, cortando caminho para alcançar a sua irmã, mas Yeta já não estava mais à vista. Ele deveria ter levado pelo menos uma tocha, mas seria tarde demais para voltar. Yeta também não havia levado luz, portanto seria impossível achá-la naquele ambiente escuro sem qualquer referência.
Contudo, Ystvan sabia onde procurar sua irmã. Talvez pelo mesmo motivo que Yeta saiu correndo para a floresta, sem saber explicar. Ystvan seguiu Norte, pelas estrelas, até encontrar uma clareira. Aquele era um lugar conhecido por eles. Ystvan, Yeta e Romuno costumavam brincar por lá quando crianças. E Yeta estava agachada ao lado de algo no chão. Chegando perto, Ystvan viu que não era um animal. Era o homem coberto com couro de lobo.
Yeta estava preocupada porque o homem não se mexia, mas Ystvan viu que ele ainda estava respirando — estava apenas dormindo. Com uns bons empurrões, o homem acordou.
“O monstro é real!” disse, tirando a pele de animal que vestia e se colocando em pé.
A pressão que subiu à sua cabeça deve ter sido tão forte, depois de se levantar tão rápido, que o homem colocou a mão na testa. Cambaleando, quase caindo, foi apoiado pelos irmãos a ficar em pé.
“Romuno! Ele está em perigo. Eu tenho que ir atrás dele” disse, dando o primeiro passo.
“Espere!” Ystvan segurou o homem pelo ombro. “É impossível encontrar alguém nessa floresta a essa hora.”
“Não pode ser impossível.”
O homem pegou do bolso interno do sobretudo um pano enrolado. Abrindo o laço, descobriu do lenço uma adaga. Depois de desembainhada, a lâmina azul refletia a luz da Lua como o mar é espelho do céu, mas também emitia um brilho turquesa por conta própria — como se fosse uma joia-da-noite.
“Me disseram que essa adaga mostraria o meu objetivo…” suspirou o homem. “E enquanto conversava com uma garota na prefeitura, a lâmina ficava tremendo no meu peito… Eu não sabia o que fazer.”
“Nastátia?” perguntou Ystvan. “Ela é o monstro…?”
“Não pode ser…” Yeta abaixou a cabeça.
“Onde ela pode estar? Para onde levou Romuno?”
“O pai dela tem uma cabana de caça não muito longe daqui” disse Ystvan.
“Onde ela fica?”
“Você quer ir até lá? Ficou maluco?”
“Eu tenho que ir. Ninguém mais pode morrer por minha causa.”
Ystvan percebeu uma determinação de leão no olhar daquele homem. Nada que ele dissesse ou fizesse o impediria de cumprir o seu objetivo.
“É por ali, depois dos grandes pinheiros. Tem um caminho de terra, mas deve ter ficado coberto pela neve…” Ystvan abraçou o homem. “Liaobe.”
“O que isso quer dizer?”
“Iaos te guie.” Yeta fez o mesmo. “Cuidado.”
Enquanto os dois voltavam para casa, virando para trás de vez em quando para olhar o homem, Yeta apertava o braço do irmão.
“Os dois se encontravam…” disse Yeta. “Eles costumavam ir juntos para a cabana.”
“Quem?”
“Nastátia e Romuno.”
“O quê?” Ystvan olhou confuso para a irmã. “Como você sabe disso?”
“Heh… Todo mundo sabe disso…”