No silêncio da madrugada, bateram à porta. Lilian saiu correndo da cozinha para atender. Mas, para ela, pouco importava quem batia. O importante era a criança deixada aos pés da porta, muitas vezes sem proteção alguma do frio e da chuva. Esse era o caso da recém-nascida daquela noite. Lilian rapidamente pegou a criança no colo e levou-a para dentro.
“E dessa vez?” perguntou Madre Zeta, descendo as escadas.
“Mais uma menina” disse Lilian.
“Mais uma…”
“Ela não chorou. Acho que pode dormir no berço com as outras.”
“Ah, ótimo” disse, subindo as escadas. “Boa noite, Lili.”
No dia seguinte, tocou-se o sino das seis horas. E antes que a corda fosse puxada para a quarta badalada, Lilian já havia se levantado da cama de feno. Limpou as remelas dos olhos e foi andando até a janela, com cuidado para não pisar nas camas dos irmãos, e abriu as cortinas. Enquanto os meninos se enrolavam ainda mais nos lençóis de pano para fugir da luz, as meninas, de pé, penteavam os cabelos.
Dormir por último e acordar primeiro foi um costume que Lilian precisou incorporar em sua rotina quando se tornou a criança mais velha do orfanato — e tinha apenas 14 anos. Na Dinaev das décadas de 20 e 30, aquele era o único lugar que as crianças que perderam os pais na guerra ou na fome tinham para onde ir. Porém, isso não significava que a perspectiva de vida delas seria de qualquer forma boa. Os pequenos quartos beiravam a superlotação, e a comida escassa era uma concessão que o status quo regente poderia negar a qualquer momento, por qualquer motivo. Para aquele primeiro mês do Verão, quando as colheitas e os grãos ainda eram abundantes, a comida era a menor das preocupações das crianças.
Lilian pegou a neném da noite anterior no colo e andou até a porta do quarto — dessa vez, dando uns chutes naqueles ainda fingindo estar dormindo. Os mais velhos iam ajudando os mais novos a se arrumarem e preparavam as atividades do dia. Mas naquele dia não haveria brincadeira; o orfanato esperava a visita de uma pessoa muito importante.
“Eu quero todo mundo bem vestido, tá bom?” disse Lilian. “Ele vai chegar daqui a pou—”
Bateram à porta. Lilian nem terminou o que teria dito e foi aos pulos para a entrada. Madre Zeta, descendo as escadas, fez um sinal com as mãos para Lilian esperar um pouco. Outra batida, dessa vez mais forte. E a Madre chamava as crianças com toda a calma do mundo. A terceira batida foi interrompida quando a porta se abriu.
“Bom dia, Comandante!” disseram as crianças em coro.
Lerel entrou na sala para a recepção com um sorriso unilateral no rosto e disse:
“Crianças muito educadas, Madre Zeta. Meus parabéns.”
“Nós preparamos um teatro para…”
“Não será necessário. Vamos ao que interessa. Quantos meninos a senhora tem para oferecer?”
“Meninos… Esses são os nossos três com mais de 12 anos.”
“Só três? Como pode?”
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Um dos que estavam com Lerel sussurrou algo em seu ouvido.
“Canalhas! E eu não sabia disso? Todos serão castrados e degolados.” Virou-se para Madre Zeta. “Se os meninos forem encontrados com vida, serão muito bem tratados, Madre. Mas isso não muda o fato de que meu batalhão está em falta de pelo menos cinco soldados. Sinto que a guerra está finalmente se aproximando do fim… Mas a hora exata ninguém pode saber. Enquanto isso, os Cianum se reproduzem como ratos, e eu preciso de soldados para repor meus exércitos por vaŕios anos. Se a senhora não colaborar…”
“Eu vou” disse Lilian. “Eu conto por cinco soldados.”
“Lilian!” Madre Zeta tapou a boca da garota. “Ela não quis dizer isso, ela…”
“Bobagem, Madre! Deixe ela falar. Isso, venha aqui perto.” Lerel se agachou para ficar no nível dos olhos de Lilian. “Você quer lutar?”
“Quero.”
“Por quê?”
“Porque os meus pais…”
“Shh. Não, não. Você quer ir no lugar dos seus irmãos. Não é por isso?” Lilian não respondeu. “Tudo bem se for! Lutar pelos seus irmãos é o motivo mais nobre que existe! Cá entre nós, foi por isso que eu entrei no exército.”
“Verdade?”
“É claro! E sabe o que mais?”
“O quê?”
“No dia seguinte, o meu capitão colocou fogo na minha casa e matou a minha família na minha frente.”
“Comandante” disse um dos soldados. “Ela é só uma criança…”
“Eu também era. Crianças fazem coisas idiotas.” Lerel pegou a bochecha da neném no colo de Lilian. “Se você for embora, quem vai cuidar dessas crianças?”
Lilian olhou para trás. Madre Zeta sacudia a cabeça, dizendo não. As crianças olhavam para ela com medo, algumas mal conseguiam segurar o choro. Aquela era a sua família, ela não poderia abandonar seus irmãos por nada. E era exatamente por isso que deveria ir embora.
“Se não eu, quem vai lutar por elas?”
“Hum… Muito bem” disse, desarrumando o cabelo de Lilian. “Madre, vou levar os três meninos e essa aqui.”
“Não!” protestou Lilian. “Eles não, eu!”
“Uma boa médica de campo pode valer por dois combatentes, não mais que isso.” Lerel deu um sinal para que os soldados fossem entre as crianças levar os meninos. “Determinação não vence guerras. Homens vencem guerras.”
Lilian encheu-se de raiva com aquela injustiça e mordeu os próprios lábios até que começassem a sangrar. Quando Lerel viu a cor daquele sangue, ordenou que os soldados parassem no mesmo instante.
“Você tem sangue Ichorum! Por que não disse antes?” Lerel olhou para Madre Zeta. “Por quanto tempo esteve escondendo isso de mim? Essa garota não vale por cinco… Vale por cem soldados!”
Lerel arrancou a criança do colo de Lilian e a entregou à Madre. Porém, antes que pudesse levar a garota do orfanato, todos ouviram um estrondo do lado de fora. E outro, seguido de outro, e ainda mais um depois daquele. Madre Zeta correu com as crianças para dentro do quarto, onde estariam mais seguras; e Lilian ficou com Lerel e os soldados próximo à entrada.
O orfanato ficava em uma área neutra da cidade. Havia um acordo silencioso entre todos os povos de não agressão mútua em regiões habitadas unicamente por civis — atacar um orfanato era uma quebra nada sutil desse contrato. Mas as tropas lideradas por Kleyvan, o Mercenário, acreditavam que a cabeça de Lerel valia mais do que as vidas de centenas de pessoas, inclusive crianças.
Lerel sentou-se aos pés da escada e tirou uma sacola do bolso interno da sua farda. Desenrolando o nó, pegou dali um punhado de grãos e ervas e começou a mastigar. Lilian lambia os próprios lábios e suas mãos tremiam, olhando para fora do orfanato.
“Quer?” Lerel ofereceu a mistura para Lilian.
“Você não vai fazer nada?”
“Como assim?” Lerel comeu a oferta recusada. “Já está feito.”
Os barulhos de explosões continuaram por mais alguns minutos, interrompidos de vez em quando por gritos e choros, diminuindo de intensidade aos poucos até restar apenas silêncio. Um guerrilheiro vestido de campesino entrou no orfanato, e não precisou dizer nada. Lerel levantou-se, segurou Lilian pelo braço e disse:
“Vamos conhecer a sua nova casa?”