No primeiro dia do quarto mês de 1338, às quatro horas da manhã, Milo já estava de pé. Como todo soldado raso da guarda real, seu dever era ficar de ronda pela madrugada, da cinza das horas ao nascer do Sol.
“Cansei. Troca comigo” disse Milo.
Por sorte, o serviço não era completamente entediante. Os guardas vigiavam em duplas, e isso abria um espaço infinito para a criatividade daqueles que de fato sabiam o que queriam.
“Mas ela acabou de tirar a roupa…!” protestou Turio.
“Se ela entrar na banheira, eu não vou ter tempo de ver nada, seu salafrário…!” respondeu Milo, contando mentalmente os juros do empréstimo que fez de seus ombros.
Milo e Turio estavam fazendo o que moleques da idade deles costumam fazer. Sim, 18 anos nunca foram — nem jamais serão — suficientes para o amadurecimento de meninos. E naquela noite decidiram espiar a própria filha do Rei.
“Ei… Cara, isso tá muito errado… Me deixa descer.” disse Turio.
“Já era hora…”
Milo se agachou para que Turio pudesse descer sem fazer barulho naquele chão de brita. Contudo, assim que Milo pediu para o amigo fazer o mesmo na sua vez de olhar, não recebeu a resposta que gostaria:
“Isso não é certo, é melhor a gente só ir embora…”
“O quê? Mas não é justo só você ter visto…!”
Percebendo que Milo não mudaria de ideia por nada no mundo, Turio desistiu de adverti-lo. Milo, agora apoiado nos ombros do amigo cabisbaixo, podia se puxar para o parapeito da janela do banheiro para ter a tão esperada visão do paraíso. Mas todos aqueles meses vendo a Princesa de longe, admirando suas belas feições externas — seu rosto sereno, suas mãos delicadas —, apenas imaginando como seriam suas partes cobertas… serviram para nada além de um sofrimento confuso naquele momento.
A garota estava recolhida em frente ao espelho de bronze, acariciando seus braços e suas coxas, cobertos de vermelhos e roxos de hematomas, enquanto suspirava um choro seco e mudo. Isso era tudo que as luzes de velas permitiam que ele visse lá dentro.
O jovem rapaz, que nunca tinha visto nada parecido, deixou transbordar seu coração pela boca em uma única palavra, esdrúxula demais para constar nos meus escritos. E a jovem moça, como uma pena pairando à vontade da brisa, virou seu olhar para a janela. O jardim estava completamente escuro, não deveria ser possível ver nada — ou talvez um vulto — do lado de fora, mas Milo podia jurar que seus olhos se encontraram com os dela. Foi apenas uma fração de segundo, mas a conversa que os dois tiveram pareceu durar uma eternidade.
Em um sinal de desespero, Milo e Turio partiram tão depressa de volta para seus postos de ronda que quase deixaram seus sabres para trás. Agarraram-nos pela bainha e correram como se não houvesse amanhã.
Mas o tempo passou, como sempre passa, e o Sol começou a abrir espaço por entre vales e colinas. Milo e Turio, pálidos como cadáveres, esperavam ansiosamente a chegada da nova dupla que os substituiria no turno da manhã.
“Atenção!”
Ao comando do General, que os surpreendeu pela retaguarda, os dois se esticaram com os braços ao longo do corpo como varas fincadas no chão.
“Um ataque inimigo pelas costas é o quê?!”
“Morte certa, senhor!” responderam os dois a uma só voz.
“Dois soldados olhando pro mesmo lugar são o que, zero-nove?!”
“Dois idiotas, senhor!” respondeu Turio.
“Paga cinquenta!”
Turio, no mesmo instante, se abaixou para fazer as flexões de braço.
“Dois soldados olhando pro mesmo lugar são o que, zero-sete?!”
“Um só soldado, senhor!”
“Meia-volta, recruta!”
Milo girou os 180 graus com a presteza exigida, sem desperdiçar movimento algum. Estando de frente para o General, viu que ele não estava sozinho. Atrás, estava a própria Princesa, usando um vestido inédito: amarelo, como o Sol no zênite, com detalhes em branco, como a neve do segundo mês.
“Você e o zero-nove são um só, zero-sete?” perguntou o General, chamando a atenção de Milo.
“Sim, senhor!”
“O que você faria pelo seu irmão, zero-sete?”
“Daria a minha vida!”
“Ouviu isso, zero-nove?”
“Sim…! Senhor!” respondeu Turio, ofegante.
“Quantas você fez, zero-nove?”
“Vinte e duas! Vinte e três!”
“De pé! Zero-sete, completa a série!”
Enquanto Turio se levantava com um sorriso, virando-se para ficar em posição de atenção de frente para o General, Milo se abaixava com um rosto impassível. O General, então, disse algo em segredo para a Princesa e voltou para o castelo. Milo ainda estava na sexta flexão quando a Princesa disse:
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“Já pode parar. Pode se levantar, zero-sete.”
Sabendo que uma ordem dada deve ser completada até seu fim último a menos que revogada, Milo não poderia acatar o pedido da jovem. Insinuações brandas não poderiam ser consideradas ordens, ainda que a Princesa fosse a pessoa de mais alta hierarquia presente.
“Por favor, dê a ordem, senhorita.” Turio desafiou o senso comum, dirigindo-se à jovem com muita leveza de coração.
Entendendo o que o soldado quis dizer, ela repensou seu discurso:
“Levante-se, zero-sete!” disse em alto e bom tom.
Imediatamente, Milo se levantou, voltando à posição de atenção. Os cantos dos lábios da Princesa se curvaram, exaltando suas bochechas rosadas. Claramente, tinha gostado de mexer com seu soldadinho, quase como com um de chumbo.
“Agora…” olhou para Turio.
“Descansar…!” sussurrou o soldado.
“Descansar!” disse, mantendo o olhar em Turio.
“Dispersar…!” sussurrou novamente.
“Dispersar!” concluiu a jovem.
Vendo que as formalidades do exército haviam sido deixadas de lado, a Princesa podia falar mais livremente.
“Qual é o seu nome, zero-nove?”
“Turio, senhorita! Filho de Zanue e Keria!”
“E você?”
“Milo, senhorita! Filho de Moroi e Nera!”
“Turio e Milo… Sigam-me!”
Ao comando da jovem, os guardas a acompanharam. Já eram mais de duas horas para além do plantão de ronda dos dois, e eles estavam mais se arrastando do que andando pelo jardim. Milo mordia a própria língua para se manter em estado de alerta, mas Turio era incapaz de engolir seus bocejos. Conforme se aproximavam da entrada principal do castelo, o murmurinho ficava mais perceptível. Era a grande multidão que se prestava à próxima humilhação pública guardando lugares próximos ao palanque.
A Princesa, como de costume, era obrigada a participar dos “grandes eventos” proporcionados por seu pai, o Rei. De frente para o palanque, havia três assentos para a realeza. O maior trono, no centro, pertencia ao Rei; e o trono à direita pertencia ao Príncipe. A jovem, tendo sido a primeira a chegar, tomou seu lugar à esquerda e começou a acenar para a população ao longe. Milo e Turio se colocaram em atenção ao lado do trono.
“Por favor, não contem a ninguém o que viram hoje” disse a jovem.
Felizmente, Milo não considerou aquilo uma ordem formal. Deveria manter em segredo o que viu apenas por cortesia, não por obrigação. Por isso, posso contar todos os detalhes dessa história fascinante da forma como me foi contada. Mas talvez você esteja começando a se perguntar qual é o papel da jovem Princesa, cujo nome propositalmente deixei de revelar, na vida secreta do Escolhido. Ela voltará a ser uma personagem constante em breve, e tudo ficará claro no fim das contas.
Quando o sino bateu às sete horas, chegaram aos tronos o Rei e o Príncipe. Ignorando a presença da Princesa, os dois estavam de olho no homem sendo levado em correntes para o palanque. No momento em que a jovem percebeu quem seria o coitado da vez, deu um salto do assento. Sua respiração ficou instável e começou a murmurar palavras inaudíveis.
Pela descrição abrangente de Milo, não é possível saber com certeza do que se tratava aquele comportamento. Minha suspeita é que a jovem estava realizando um encantamento de proteção. Encantamento porque, sabe-se, a Princesa já havia começado por conta própria seus estudos naquela época. E de proteção, é claro, porque o homem estava prestes a sofrer inúmeros açoites e bofetadas. Contudo, é possível que ela estivesse apenas sussurrando uma palavra de incredulidade, inconformada com a rapidez com que o homem teria sido levado de volta ao palanque.
O homem foi acorrentado a um tronco, e o Rei fez um pronunciamento:
“Ao invasor! Estou disposto! A oferecer! Minha! Clemência!”
Como fantoches, a massa de pessoas começou a aplaudir. O Rei fez um sinal de silêncio e continuou:
“Basta que ele! Me adore! Como Mestre!”
O homem cuspiu no chão e disse algo, mas sua voz não alcançou além da primeira fileira de pessoas na praça do castelo; que dirá o lugar onde ficavam os tronos. Um dos carrascos falou por ele:
“Ele disse: Nunca!”
O Rei cravou e rangeu os dentes, seu rosto ficou mais vermelho do que um tomate maduro e seus olhos arregalados dariam medo em qualquer um. Porém, quando abriu a boca para dar a ordem derradeira, engasgou-se e começou a tossir. Duas figuras sombrias apareceram no palanque ao lado do homem. Primeiro, todos os carrascos fugiram, gritando:
“Magia! Feitiçaria!”
Depois, toda a população na praça correu para longe do palanque de volta às suas casas.
Quando as figuras se estabilizaram, deram forma a um homem e uma mulher, ambos com fama indiscutível. O homem era Mael, o Soberano do reino de Ichorum, e a mulher era Camie, a Rainha dos povos Redium.
“Este homem é meu protegido!” bradou Mael. “Um dia, chegará a tua hora! Como chegará a minha!”
Certamente, essa era uma ameaça que pessoa nenhuma gostaria de escutar. Imaginem, pois, o sangue borbulhando no corpo do Rei Khyton III nesse momento. E imaginem, mais ainda, seu espanto ao ver sua única filha descendo dos tronos para se juntar às pessoas no palanque. Bastou um sinal de seu braço para que todos os guardas reais percebessem a vontade daquele ser podre e imundo: a Princesa, sua própria filha, jamais deveria ser permitida de ir embora, nem que isso custasse a vida dela.
Quando Milo empunhou o seu sabre e correu na direção da jovem, Turio deu-lhe um chute na parte posterior do joelho, fazendo-o perder o equilíbrio. Turio derrubou mais um guarda pelas costas e se colocou entre a Princesa e seus algozes. Estavam ali três contra um, todos sabiam qual seria o resultado daquele motim escandaloso.
Antes de se juntar aos três para fugir de uma vez por todas daquele lugar, a Princesa virou seu rosto, como havia feito mais cedo naquele mesmo dia. Dessa vez, porém, seus olhos não se rebaixaram aos de Milo. Ela estava com o olhar centrado em um rapaz que, mesmo sem conhecê-la, estava dando sua vida por ela.
“Voa, canarinho, voa…” foram as últimas palavras de Turio.
Esse testemunho do atual General da guarda real era indispensável para a compreensão maior da obra que estou acumulando. Junto com o de Isbe, e por isso os escolhi como complementares, englobam toda a relevância de Yirgan para a vida do Escolhido. Por dois ângulos completamente distintos, não vi quase nenhuma contradição desses relatos entre si, diferente de vários outros que certamente buscavam fama indevida. Milo e Isbe, cada um com seus motivos, decidiram revelar a mim esses episódios de suas vidas. A eles, fico extremamente grato. Que esse relato, em especial, valha como homenagem a Turio. Jovem e pequeno, mas grande como poucos.
Suas palavras finais também não foram difíceis de desvendar. “Canário rebelde” é uma cantiga de ninar própria do reino de Yirgan, que surgiu por volta do Verão de 1314. Uma das versões atuais segue:
Vem de manhã
Bem cedo, bem cedo
Já canta, canarinho!
Chega de tarde
Sacode, sacode
Bica, canarinho!
Olha a noite!
Que rápido, que rápido
Nem viu, canarinho!
Pega o cordão
E voa!
Voa, canarinho, voa!
Surpreendam-se, agora, os que não conheciam o nome da filha do Rei Khyton III. Hjaava é um lindo nome, cada vez mais comum, que quer dizer "canário rebelde". É estranho como tudo está ligado de alguma forma.