A carruagem de Lilian ficou para trás naquela tarde. Lerel e seus dois oficiais haviam saído às pressas da formação, cavalgando à frente sem explicar por quê. Antes que a noite os surpreendesse no meio do caminho, os soldados decidiram parar para descansar em uma gruta à beira da estrada. Em poucos minutos, eles já haviam montado uma barraca na entrada e acolchoado o gelado chão de pedra. Lilian não podia acreditar em quantos recursos o exército possuía — ela própria só tinha as roupas do corpo e o lençol da cama, igual a todas as outras crianças. Sendo a mais velha, sua única vantagem era ter uma cama só sua; e, mesmo assim, deixava seus irmãos se esconderem no seu abraço quando tinham pesadelos ou choviam relâmpagos. Agora, nem mesmo a cama ou os irmãos eram dela — estava sozinha, de pernas cruzadas em um lugar escuro e frio.
“O seu nome é Lilian, não é?” O jovem acendeu uma lanterna e sentou-se à esquerda da garota. “Esse era o nome da minha mãe” disse, no passado.
“O que aconteceu com ela?”
“Ela morreu quando eu nasci.”
“Eu sinto a sua dor.”
“É, eu sei… Às vezes, gosto de pensar que ela ainda está viva. Me olhando, de longe. E que o meu pai mentiu para me proteger.”
“Madre Zeta era igual. Da primeira vez que fui ajudar em um parto, a mãe não queria a menina. Voltando para o orfanato, Madre disse que os pais da Ayla, esse é o nome dela, tinham morrido.”
“Dói muito menos quando eles morrem, não é? Se a minha mãe ainda está viva, por que me abandonou? Ela não me amava? E essas coisas…”
“Que caras são essas?” perguntou um segundo jovem, sentando-se ao outro lado de Lilian. “Já vão acabar com o clima da noite? Ei, pessoal, todo mundo junta aqui! Vamos começar as apresentações para a novata.” Indicou com o dedo o jovem que estava conversando com Lilian.
“Dario. 17 anos. Fazenda de Tal-Reasi, recruta de Inverno.”
Depois de Dario, todos foram falando seguindo a ordem em que estavam sentados ao redor das lanternas e dos cobertores.
“Beta. 19 anos. Hospital Geral de Beramor, recruta de Inverno.”
“Sylon. 18 anos. Academia Geômetra de Alamor, recruta de Outono.”
“Armio. 17 anos. Academia Geômetra de Alamor, recruta de Outono.”
“Lemen. 21 anos. Veterano de guerra e instrutor desse batalhão provisório” disse, confiante. “Agora, você.”
“Lilian. 14 anos… Orfanato de Dinaev, recruta de Verão.”
“Lilian, você não poderia ter sido escolhida em um dia melhor! Sabem que dia é hoje?”
“Ah, não…” reclamou Sylon.
“É hoje?” perguntou Beta. “Você pode me abraçar se ficar com muito medo, Sy…”
“Hoje, Lilian…” continuou Lemen. “Nós vamos ter a noooite assombraaaada!”
“Cada um conta uma história assustadora. Pode ser real ou inventada” explicou Dario.
“As melhores são as reais” afirmou Armio.
“Muito bem, quem quer começar?” A jovem levantou a mão, ansiosa. “Pode ir, Beta.”
“Essa é a primeira vez que conto essa história para alguém… Na última Primavera antes do meu alistamento, eu fui obrigada a pegar um plantão de três dias.”
“Nossa…” sussurrou Sylon.
“Shh.” Armio o cutucou com o cotovelo.
“Todos os três dias foram horríveis, eu não me lembro de várias coisas que meus amigos disseram que eu fiz… E o pouco que ainda lembro, é como se aquelas memórias não fossem minhas…” Beta respirou fundo. “Na última noite do plantão, eu estava andando pelo corredor pediátrico. Tudo estava deserto e as portas para os quartos estavam fechadas, e isso é muito estranho porque as portas sempre ficam abertas. De repente, eu comecei a escutar um choro bem baixinho em um dos quartos. Era o quarto 112. Eu fui até lá e abri a porta, mas o choro parou. Mesmo assim, eu entrei no quarto, era o de dois meninos que foram queimados em um incêndio. Queimaduras doem muito, então eu queria ficar um tempo com eles, para não se sentirem sozinhos. Eu coloquei a mão na cabeça do primeiro, ele se mexeu um pouco e continuou dormindo. Na hora, pensei que deveria ser o outro chorando. Só que, quando fui colocar a mão na cabeça dele, vi que embaixo do lençol só tinha o travesseiro. E aí… Tap, tap, tap, tap, tap… Eu comecei a ouvir passos no corredor. Parecia o menino correndo de um lado para o outro. Tap, tap, tap, tap, tap… Eu saí do quarto, olhei em volta, e não tinha ninguém. Mas vi que o quarto logo em frente estava agora com a porta aberta. Era o quarto 113. Quando olhei para dentro do quarto, tinha a silhueta de um homem adulto me encarando.” Sylon segurou forte a mão de Beta. “A minha memória para aí… A próxima coisa que me lembro é acordar no dia seguinte no quarto dos enfermeiros. Eles me disseram que eu escorreguei no chão molhado e bati a cabeça. Quando perguntei onde tinha caído…” Beta apertou a mão de Sylon. “Eles disseram que foi na frente do quarto 113…”
“Sinistro…” disse Lemen. “Essa foi a sua melhor história até agora, Beta!”
“Verdade” disse Dario.
“E isso é impressionante” acrescentou Armio.
“Alguém mais quer se voluntariar?”
“Eu!” Armio levantou a mão.
“Ótimo, pode ir.”
“No Verão passado, a nossa turma foi para Leyseed por causa do eclipse…”
“Não” interrompeu Sylon. “Você não vai contar essa histó—”
“Shh.” Beta tapou a boca de Sylon. “Agora é a vez dele.”
“Ahem… Obrigado, Beta. Continuando… Nós fomos para Leyseed por causa do eclipse lunar. Viajar para outras cidades duas ou três vezes ao ano é uma prática comum em Alamor. Serve tanto para enamorar ainda mais os novos alunos, que foi o meu caso, quanto para forçar os mais velhos a aprenderem como ensinar. Digamos que as viagens eram mais proveitosas para mim do que para ele.” Apontou na direção de Sylon. “Mas a nossa intenção era usar o tamanho aparente da Lua em relação à sombra do eclipse para…”
“Eles não ligam para isso.”
“Silêncio, Sylon” Lemen interferiu. “Não vou pedir de novo.”
“Não, tudo bem. Vou falar do que interessa. O nosso trabalho era fixar os telescópios na angulação certa. Enquanto isso, os outros alunos montavam as barracas, porque nós fomos para uma parte rural, relativamente longe da cidade. Tudo aconteceu exatamente como planejado. Começamos a marcar o tempo no momento em que a sombra tocou a Lua, e deixamos de lado. Eclipses duram algumas horas, então sempre levávamos jogos de tabuleiro e de cartas para passar o tempo. Mas, procurando entre os jogos que trouxemos, tinha um a mais. O nome era Azruk-ze. A madeira da caixa estava tão puída que era difícil ler as regras do jogo, e mesmo assim resolvemos jogar. Fomos para longe dos outros alunos e dos professores, e nos reunimos em seis ao redor do tabuleiro, cada um com um alfinete de uma cor diferente. O objetivo do jogo era ser o primeiro a colocar o seu alfinete no centro do tabuleiro. Uma rodada consistia em fazer perguntas de sim ou não uns para os outros. Todos que responderem a pergunta andam de acordo com sua resposta. Cada sim é um avanço para a casa da frente, cada não é um retorno para a casa anterior. O que fez a pergunta anda de acordo com as respostas dos outros. Se todos responderem não, volta uma casa; se todos responderem sim, anda uma casa.”
“Parece um jogo bem simples...” Dario coçou a cabeça. “Mas com essas regras deve ser impossível vencer individualmente.”
“Exato. Nós percebemos isso desde o começo, mas tentamos criar duplas e inventar todo tipo de estratégia maluca para que fosse possível chegar em um único vencedor. No fim das contas, foi mais divertido tentar dominar o jogo dessa forma do que teria sido jogar cada um por si. E foi aí que tudo começou. As primeiras perguntas no jogo foram inofensivas: você é menina?; você tem mais de 15 anos?; você já ficou bêbado?... Mas o jogo foi escalonando de uma forma que ninguém poderia prever. Até eu me envergonho das coisas que perguntei e respondi… O que foi dito entre nós seis vai ficar entre nós seis até o fim. Eventualmente, a dupla das meninas venceu… E isso aconteceu quando a Lua já estava vermelha como sangue. De repente, shuaaa! Um vento fortíssimo correu por nós e apagou as nossas lanternas. Tudo ficou muito escuro, ninguém tinha coragem de levantar e sair dali. Com o tempo, nossos olhos foram se ajustando à escuridão… E eu podia ver a figura de uma mulher vindo na nossa direção. Ela tinha cabelos pretos bem compridos e usava um vestido branco, todo sujo de terra e lama. Mas quando gritei para avisar os outros… Ela desapareceu. Depois disso, conseguimos acender as lanternas e voltar para a observação. De vez em quando, eu ainda sonho com o rosto daquela mulher.”
This story has been stolen from Royal Road. If you read it on Amazon, please report it
“Então, o que era esse jogo? Azru…?” perguntou Lemen.
“Azruk-ze. Voltando para a Academia, fui perguntar isso para vários professores, e só a bibliotecária conhecia o jogo. Ela disse que era um ritual antigo de invocação de espíritos. O inventor do jogo gostava de mexer com o oculto, e tentou criar um portal para o mundo dos mortos. Ela ficou surpresa quando eu disse que a coisa mais estranha foi a visão que tive daquela mulher. Se nós não tivéssemos quebrado o círculo naquele momento, uma coisa muito pior poderia ter acontecido…”
“O quê?” perguntou Beta.
“Possessão” disse Sylon.
“Espera” Armio arregalou os olhos. “Como você sabe disso?”
“Ah, Armio…” Sylon sorriu. “Mais coisas aconteceram depois do eclipse.”
“E a trama se complica!” Lemen se curvou para ouvir melhor. “Conta a sua versão, Sylon.”
“Bom… Depois que o eclipse acabou, nós fomos dormir. Mas, no meio da madrugada, eu comecei a ouvir alguns barulhos estranhos vindo da barraca das meninas. Esse aqui tem um sono de pedra, não acorda com nada.” Apontou para Armio. “Quando fui conferir o que estava acontecendo, vi que as meninas tinham acabado de sair da barraca. Eu fui correndo até elas perguntar o que iriam fazer, mas elas pediram para eu ficar em silêncio. Quando chegamos até o lugar em que montamos o tabuleiro pela primeira vez, elas pediram para eu participar do jogo de novo, dessa vez só nós três jogando. Vocês sabem que eu não gosto de me envolver com esse tipo de coisa, ainda mais depois do que tinha acontecido mais cedo… Mas, no fim, aceitei. Sentamos formando um triângulo no chão e pegamos os nossos alfinetes. Elas disseram que era preciso colocarmos os alfinetes onde estavam antes do fim do jogo e voltarmos com eles para as posições iniciais. Essa seria a única forma de impedir que o espírito daquela mulher tomasse conta do corpo de uma delas. Eu coloquei o meu alfinete na quinta casa, a última antes do centro, e as duas colocaram os alfinetes no centro. Elas tentaram me explicar que o espírito da mulher não conseguiu escolher apenas uma das duas porque a dupla venceu ao mesmo tempo. Então, eu deveria fazer uma pergunta em que as duas respondessem não, para ambas voltarem juntas uma casa. Mas eu estava tão cansado e cheio de tudo aquilo… Eu resolvi fazer uma brincadeirinha inofensiva… Eu perguntei: você me ama?”
“Como é?” Beta beliscou o braço de Sylon.
“Ai, ai! Eu achei que as duas iam dizer não, mas elas começaram a gritar comigo. Uma voltou o alfinete para a quinta casa, mas a outra começou a chorar e não tirou o dela do centro do tabuleiro.”
“Sylon arrasa corações” brincou Lemen. “O que aconteceu depois?”
“Mais uma vez, veio um vento muito forte e apagou as nossas lanternas. Eu estava preparado e acendi a minha de novo logo em seguida… Mas a garota que não conseguiu dizer não tinha ficado diferente. Ainda era a aparência dela sem tirar nem pôr, mas eu posso jurar que não era ela ali. O ar estava frio e seco, e eu comecei a me tremer todo, mais por causa do medo que do frio. A garota normal perguntou: você é idiota?... E eu pensei, nossa como eu sou idiota… E aí me veio a ideia de responder sim! Eu coloquei o meu alfinete no centro do tabuleiro do lado do dela. Alguns segundos passaram e achei que nada tinha acontecido, mas de repente a garota respirou fundo e voltou a choramingar. Ela fez uma pergunta para todos respondermos não e voltarmos uma casa. E foi isso, nunca mais tocamos no assunto.”
“Eu não esperava isso de você” disse Armio.
“Ah, você vai ver só…” remoeu Beta.
“Eu só tenho uma dúvida” disse Dario. “Qual foi a pergunta que a garota fez no final?”
“É segredo.”
“Ah! Agora, eu quero saber ainda mais…”
“As histórias de hoje estão surpreendendo!” disse Lemen. “Sendo assim, eu tenho uma ótima para contar também. Vocês já ouviram falar do monstro de Polireti?”
Todos se entreolharam, sem responder.
“Polireti é uma vila escondida na floresta de Yirgan. Ano passado, servi perto daquela região com uns cinquenta soldados. Uma noite, os batedores viram uma grande movimentação de soldados da capital por ali. Nós ficamos um bom tempo sem entender o que aquilo significava. Seria a escolta de alguém importante até lá? Ou o contrário, alguém daquela vila era importante o suficiente para ser escoltado para a capital? Minha capitã resolveu vir comigo e mais dois soldados para uma missão de reconhecimento. Nosso objetivo era descobrir o máximo possível sem chamar atenção. No meio da noite, minha capitã se separou do grupo. Até hoje, ela não quis me dizer aonde foi, mas trouxe muitas informações na manhã seguinte.” Lemen respirou fundo. “Enfim… A história começa em uma noite de Lua cheia, no final do Inverno do ano passado. O senhor que cuidava do templo de Iaos, ele devia ter seus cinquenta e muitos anos, estava colhendo ervas boas e daninhas do seu jardim quando, de repente… Crack… Crack… Ele ouviu algum barulho na floresta atrás da fazenda. Imaginando que era só uma raposa ou um mico-das-neves, foi investigar. Mas ele não poderia estar mais enganado.”
Lemen fez garras com a mão e apertou o lado de Armio, completando a pantomima com um movimento rápido, dando a entender uma laceração total do serrátil ao peitoral maior.
“Chaaak! O senhor foi arremessado contra uma árvore, segurando seu peito e sua barriga como se tivesse sido partido ao meio… E foi aí que ele viu… O monstro. Ele tinha bem mais de dois metros de altura, mas andava tão curvado para frente que não parecia. Seu corpo era todo coberto por pelos curtos e finos de uma cor que se camuflava na escuridão e contrastava com o branco da neve. E as suas garras…” Lemen esticou a mão no centro do círculo para que todos pudessem ver. “Eram maiores que os meus dedos. Mas o pior de tudo eram os olhos. Não eram olhos de lobo, de urso… Eram olhos pretos, cinzentos… Com a luz dos olhos que só homens têm. Como os meus…” Cutucou o ombro de Lilian. “E os seus.”
“Ele sobreviveu?” perguntou Dario.
“Por alguns dias, sim. O importante é que ele viveu tempo suficiente para conferir a missão de matar o monstro a um homem… O Filho do Fogo!”
“Você encontrou o Filho do Fogo?” Sylon e Beta perguntaram ao mesmo tempo.
“Bom, não diretamente… Mas naquela noite em que fiquei de vigia, os soldados voltaram para a capital de Yirgan com um homem a mais na traseira da carruagem. Eu não consegui ver nada além disso, mas posso jurar que ouvi correntes sacudindo quando passaram perto da minha camuflagem. Era certo de que o homem não estava ali por opção própria.”
“Então, o que aconteceu com o monstro de Polireti?” perguntou Armio.
“Naquela mesma noite, antes de ser preso pelos soldados, o Filho do Fogo descobriu onde estava o monstro. Ele ficava em uma pequena cabana de caça no meio da floresta. Quando chegou lá, o monstro estava comendo as entranhas do Embaixador que havia acabado de assassinar a sangue frio… O Filho do Fogo disse…!” Lemen ficou de pé e fingiu sacar um sabre da cintura. “Besta das profundezas! Trema perante minha espada flamejante! E com um único golpe, shuaa! Ele perfurou o coração do monstro!” Com um longo suspiro, Lemen sentou-se novamente. “E foi isso que aconteceu.”
“Não sei como minha história vai superar essa…” disse Dario.
“A sua da última vez foi muito boa” consolou Beta.
“Era a melhor que eu tinha…”
“Conta a segunda melhor” disse Sylon.
“Vai, Dario, sua vez.”
“Tudo bem… Eu vou contar para vocês um sonho que tive antes de ser recrutado. Eu não me lembro muito bem, mas sei que minha mãe estava lá. Ela estava cobrindo o rosto com as mãos, chorando… Mas o cabelo, a voz… Era exatamente como eu imaginava que ela seria. E ela estava ali, chorando. Pedindo para eu não ir… Porque eu iria morrer. E pedia, pedia para eu não ir… E eu dizia, não, mãe… Mas ela continuava chorando. E foi aí que eu vi… Era uma grande fogueira… Maior que qualquer uma que já vi antes. As labaredas subiam até o céu, e tudo ficou vermelho. Eu comecei a ouvir o meu coração batendo, mas também uma respiração que não era minha nas minhas costas… Eu olhei para trás e vi uma… Uma coisa desfigurada. Era branca como marfim, um rosto de alguém… Parecendo que estava derretendo com o calor… Morta de orgulho.”
Ninguém tinha coragem de dizer nada, e o silêncio tomou conta da caverna.
“Depois disso…” continou Dario. “Eu tive outro sonho. Eu estava…”
“Foi uma boa história, Dario” interrompeu Lemen. “Fiquei arrepiado o tempo inteiro… E parece que o Sylon engoliu a própria língua!” Descontraídos, todos deram uma leve risada. “O resto fica para a próxima vez.”
“Tudo bem.”
“Agora…” Lemen olhou para Lilian. “Você ficou quieta o tempo inteiro… Será que poderia compartilhar uma história com a gente?”
“Se não quiser, não precisa” disse Beta.
“Não… Tem uma história que posso contar.”
“Ótimo! O palco é todo seu, Lilian.”
A garota abraçou os joelhos. Respirando fundo, levantou o rosto e, olhando para cada um dos que estavam ao seu redor, disse:
“Eu sempre gostei de ouvir os sinos. Eles tocam a cada sexta hora, para ninguém se esquecer das seis virtudes… Mas eu não gosto deles por causa disso. E também não é por causa do som. Dói minha cabeça, às vezes. Eu gosto dos sinos porque eles afastam os espíritos maus. Eu me sinto segura, porque os espíritos maus não gostam dos sinos. Dói a cabeça deles também… Mas teve uma noite que o teto rachou com a chuva e os sinos pararam de tocar. Eu fiquei o dia seguinte morrendo de medo… Eu ia correndo para os meninos mais velhos por cada coisinha que acontecia. Um copo caindo no chão, um vento frio do banheiro… De tanto que eles disseram que não era nada, eu acreditei. Mas, de noite, eu ouvi um barulho da cozinha. Não deve ser nada. Deve ter sido o vento. E o barulho veio de novo. Era como se uma coisa tivesse caído. E de novo, mais um barulho. Eu sacudi as meninas do meu lado, mas elas não queriam acordar. Então, fui sozinha para a cozinha. Estava muito escuro, mas eu já conhecia o caminho. Chegando lá… Veio um vento forte passando por mim, e eu fiquei com muito frio. E o barulho continuava, até mais forte. Quando olhei para a despensa, a porta para a parte de trás do orfanato estava aberta e batendo. Não é nada. É só o vento. Os meninos vão rir de mim se eu voltar para o quarto com medo… Indo mais perto, eu comecei a ouvir outros barulhos do lado de fora. Eram gemidos. Eu olhei para fora, mas não consegui ver nada direito, só duas sombras se agarrando… Elas estavam brigando, se machucando… E só eu poderia fazer alguma coisa. Eu abri o armário da cozinha e comecei a bater com uma colher de pau nas panelas. Espírito mau, vai embora… Espírito mau, vai embora… Todo mundo acordou e foi para a cozinha… Eu fui muito corajosa, mas os meninos riram de mim mesmo assim… Madre Zeta foi a única que acreditou no que eu vi.”
“Eu acredito, Lilian” disse Lemen.
“Eu também.” Dario seguiu.
“Todos nós acreditamos” concluiu Beta.
“E eu não disse?” Armio estava sorridente. “As melhores histórias são as reais!”