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Do outro lado do Rio (PT-BR)
23/09/1374 - Carta 3

23/09/1374 - Carta 3

Era o começo da Primavera de 1338, e o Sol rompia a neve dos meses anteriores. Isbe, ainda nos seus 16 anos, descia as escadas para o subsolo do castelo de Yirgan. Naquela época, o que hoje é um armazém reformado costumava ser uma claustrofóbica masmorra para presos políticos. Enquanto os malfeitores de outra natureza — ladrões, assassinos, adúlteros e traidores — eram enviados para as bastilhas, aqueles considerados subversivos aos olhos do Rei tinham um destino diferente. Muitas vezes pior.

Devido a uma investida militar dos povos Redium durante o Outono passado, aquela área do castelo estava aos pedaços, e até o subsolo era abrigo de alguns feixes de luz nos dias ensolarados. Por outro lado, em dias de chuva, tudo se alagava à altura dos calcanhares. Isbe, carregando uma bacia de vinagre e um pano em farrapos, precisava tomar duplo cuidado ao pisar nas pedras escorregadias de orvalho e com gelo entranhado nas rachaduras. Logo no seu primeiro dia em serviço, recebeu uma ordem direta do majordomo… E a corte do Rei Khyton III não era conhecida por sua clemência.

Isbe, de ascendência Redium, vinha de uma família de escravos de guerra, seus pais — um de infantaria baixa e uma enfermeira de campo — foram capturados em uma investida malsucedida. A batalha não recebeu nome, tampouco foi documentada por escrito, mas sabemos que aconteceu no terço final da vida do Rei Khyton II, em 1322, no mais tardar. Naqueles anos, os jogos políticos e a podridão dos corações da nova aristocracia já estavam evidentes para todo o reino; a desumanização dos serventes e escravos da família real era inevitável. Mas Juon e Giana, no que lhes era permitido e encorajado por lei, tiveram uma filha; e puseram seu nome de “Esperança”, “Isbe” em seu dialeto local.

De acordo com o adendo quinto ao decreto-lei da Primavera de 1278, todos os filhos de servos e escravos, concebidos em qualquer tempo ou circunstância, seriam livres; permanecendo sob tutela do mestre da mãe até seus 16 anos, quando receberiam uma carta de cidadania. Contudo, quando o Rei Khyton III assumiu o trono em 1334, foi declarado que essa lei somente deveria ser válida para filhos homens. Claramente, uma interpretação maliciosa e desprezível.

Não duvidei quando Isbe me contou que ainda se lembrava do cheiro daquela masmorra depois de tanto tempo. A cada passo, suas sandálias eram mais consumidas pela mistura de dejetos e fluidos corporais que cobria grande parte do chão, e ela havia sido informada de que o prisioneiro estava na última cela à direita. Mantendo a compostura — não deveria jamais demonstrar fraqueza —, caminhou até seu objetivo sem dar atenção aos vários olhares que a acompanhavam pelo corredor.

No canto mais escuro da cela, de joelhos para a parede, estava um homem derrotado. Suas costas estavam em carne viva dos açoites que recebera no dia anterior e seus pulsos estavam algemados acima da sua cabeça, na parede, às munhequeiras de um metal enferrujado. Seus braços tremiam constantemente, e seus ombros subiam e desciam em uma respiração arritmada. Isbe podia ver nas feridas alguns sinais de infecção, e prendeu sua respiração para não desmaiar ou vomitar. Tomando coragem, fez como que para ajoelhar-se no chão da cela — porque sentar-se era impensável —, mas o homem no mesmo instante se levantou e apoiou seu rosto em uma das rachaduras no concreto.

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Isbe começou a secar as feridas com o pano, para depois limpá-las com o vinagre. Toques suaves e leves, sem esfregar, imitando o jeito que Giana costumava fazer quando ela ralava seus joelhos ou caía de uma árvore — recorrências bastante comuns. Mesmo assim, com pequenos espasmos involuntários, as costas do homem convulsionavam cada vez que o pano frio encostava nas partes mais avariadas, e os grunhidos de dor, suprimidos por uma vontade descomunal, às vezes não podiam ser contidos.

Por mais que esse pareça ser um ato de bondade por parte do Rei, a realidade não poderia estar mais longe disso. A verdadeira intenção do Rei Khyton III era despedaçar seus oponentes de tal modo que seus espíritos fossem mortos antes da carne, para que a simples ideia de morrer fosse um alívio a todo o sofrimento. A nova aristocracia gostava de se deleitar com os gritos de dor daqueles que os desafiavam, e quanto antes os cortes e as bofetadas se curassem, antes seriam postos novamente em praças públicas para que o espetáculo se repetisse.

Em meio a tudo aquilo, porém, o homem perguntou: “Você gosta daqui?”

Isbe não deveria responder, era proibida de conversar com qualquer um que não fosse seu superior hierárquico. Mas os guardas estavam todos jogando cartas na entrada da masmorra, nem havia qualquer um fazendo ronda pelas escadas. Por outro lado, se algum deles ouvisse a conversa, seria impensavelmente pior para o prisioneiro, como já diziam várias anedotas circulantes entre os servos do castelo. Fazendo uma comparação chula, a aristocracia representa o condutor de uma carruagem, enquanto que a guarda real representa os cavalos guiados. Qual dos dois grupos é mais responsável pela dor dos pisoteados ao longo do caminho? Na minha experiência, quando o condutor fecha os olhos, o que fazem os cavalos ganha mérito próprio.

Isbe ignorou o homem, mas ele insistiu: “Você gosta desse lugar?”. Mais uma vez, Isbe não o respondeu.

E na terceira vez o homem disse: “Eu gosto… da minha casa. Eu gosto das árvores… dos prédios… das praias… das ruas… das lojas… Eu quero poder voltar. Andar por lá de novo. Fazer o que eu fazia, ficar com quem eu amava…”

Isbe começou a pensar que o homem já estava delirando. Ele parecia jovem, meia dúzia de anos mais velho do que ela, mas os efeitos da tortura mental já mostravam surtir efeito. Qualquer coisa que ela dissesse para tranquilizar o homem talvez tivesse o efeito contrário em uma psique tão desequilibrada.

E o homem continuou: “Se você fosse embora daqui… gostaria de voltar?”

Isbe, desarmada, respondeu: “Não.”

“Eu entendo… Eu também não gostaria de voltar aqui.”

Os dois ainda conversaram mais nos dias seguintes, mas nenhuma das conversas foi tão marcante para Isbe como essa. O cheiro da cela, a forma como o homem tremia aos seus toques, os grunhidos de dor e aquelas palavras acaloradas ficaram com ela todos esses anos, para bem ou mal. Naquela época, Isbe jamais poderia imaginar quem seria aquele homem.

Assim que pus meus achados sobre a mesa de escritório, aqui em Corvo Branco, e reli minhas notas de viagem de Yirgan, fiquei bastante surpreso. Nos dias em que entrevistei Isbe, assim como ela, nem me passou pela cabeça que aquelas palavras poderiam significar mais do que um simples delírio ou uma vontade infantil de voltar para casa quando se está à beira da morte. Mas as evidências para a vida sobrenatural do Escolhido são substanciais, e esse fragmento de diálogo é apenas uma faísca do que virá.