Passos no chão de madeira, dobradiças de portas rangendo, do lado de fora o canto dos pássaros… Mas o que tirou o homem da cama naquela manhã foi o cheiro do pão recém-assado.
“Bom dia” disse Ystvan, fazendo ovos fritos na lareira. “Os pães estão na cesta do altar, pode pegar quantos quiser.”
Por algum motivo, o homem achou aquilo estranho. Disse algo como:
“Pensei que aquela cesta fosse para doações ao templo.”
Ao que Ystvan prontamente respondeu o que dizia a sua fé até aquele momento:
“Qualquer doação que fizermos a Iaos seria inútil. Tudo que nós temos já pertence a Ele. E não é como se Ele ou um dos seus mensageiros viesse pegar da nossa cesta.” E continuou “Você realmente vem de muito longe.”
“Mas se as pessoas não fazem contribuições, como vocês se mantêm?”
“Nós temos galinhas e algumas ovelhas” disse Yeta. “Conseguimos comprar trigo, mantimentos e boas ferramentas dos mercadores do reino. Isso é tudo que precisamos.”
“Mas duas das nossas ovelhas desapareceram mês passado… E o nosso pai você já viu.” completou Ystvan. “Se você puder descobrir o que está acontecendo, vamos ser eternamente gratos.”
Por sugestão dos dois, o homem foi à prefeitura da vila, onde ficava Seutak, o Embaixador. Chegando lá, foi recebido por uma jovem chamada Nastátia. Como Seutak estava em uma reunião com o pai de Nastátia, o homem deveria ficar esperando por um bom tempo até que chegasse a sua vez de ser atendido. Nas duas horas que a espera demorou, pode até parecer estranho, ele e Nastátia ficaram conversando. O homem não falou muito de si mesmo nem de sua vida, mas parecia extremamente entretido com as histórias da jovem. Ele queria saber mais do que estava acontecendo naquela vila, e a perspectiva de qualquer pessoa era bem-vinda.
Polireti foi criada quando dois pequenos clãs — um de lenhadores e outro de artesãos — se uniram com um casamento não arranjado e partiram para estabelecer um assentamento na floresta de Yirgan. A ideia deles era criar uma nova cidade tão próspera quanto a capital, mas onde as pessoas não precisariam se preocupar com a invasão dos povos Redium. Afinal, Iaos, o deus cultuado por eles, não distingue a dignidade das pessoas, independente do tipo de sangue que corre em suas veias. Naquela pequena aldeia, ninguém seria excluído ou desprezado. Porém, pela recepção que as pessoas deram ao homem na sua chegada a Polireti, é evidente que a fé dos aldeões não era mais a mesma. Na verdade, a aversão aos estrangeiros, vindos de onde quer que viessem, era uma realidade desde os tempos em que Polina — herdeira dos lenhadores — e Retier — herdeiro dos artesãos — ainda eram vivos. Parece que o coração dos bandeirantes se congelou logo no primeiro Inverno e não voltou a derreter nem mesmo nos Verões mais tórridos.
Fazia dez anos que Edmont e Nastátia se mudaram para Polireti, e os dois ainda não tinham conquistado a amizade da maior parte da sociedade. Inclusive, os dois eram tidos até mesmo como suspeitos de qualquer coisa de ruim que acontecia na vila — isso inclui os misteriosos desaparecimentos das ovelhas. Nastátia finalmente explicou ao homem por que seu pai estava conversando com o Embaixador: os dois iriam embora antes da próxima Lua cheia.
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“O meu pai diz que é para o meu próprio bem…” disse Nastátia. “Mas como ele pode saber o que é para o meu bem?”
“Eu sei como é. Os nossos pais fazem o que podem. Mas eles também não são videntes. Já tentou contar para ele o que você está escondendo?”
Essas palavras pegaram Nastátia de surpresa. Ela só queria alguém que a entendesse e dissesse o que ela gostaria de ouvir. Como o homem poderia saber que ela estava escondendo algo do pai? O choque daquelas palavras fez com que o resto daquela conversa ficasse perdido e fragmentado como fios de cabelo perdidos na correnteza de um rio. Nastátia podia se lembrar apenas da nuca do homem entrando no escritório de Seutak, enquanto seu pai a levava de volta para casa.
“Então…” disse o Embaixador, sentando-se à sua mesa. “O que você quer de mim, rapaz?”
“Eu quero que você me ajude a te ajudar” respondeu o homem, sentando-se em uma cadeira. “Os desaparecimentos das ovelhas, eu vou descobrir o que está acontecendo aqui.”
“Eu até perguntaria com que autoridade… mas pouco importa. Esse problema já foi resolvido.”
“O que quer dizer?”
“Os nossos pastores compram as rações em grande quantidade para nada faltar no Inverno… Isso porque, como pode ver, as nossas estradas não são muito amigáveis para cavalos e carruagens quando neva. O problema é que os mercadores se aproveitavam disso e vendiam alguns sacos misturados com outros tipos de rações ou com rações perto da validade para atender às nossas demandas.”
“Você acha que tudo isso aconteceu por causa das rações?”
“Não acho. Eu tenho certeza.”
“Então, o que aconteceu com Ystal?”
“Ha!” Seutak pegou seu cachimbo e começou a acender o tabaco. “É uma pena, mas aquele velho já ficou senil. Desde que a mulher morreu, ele e os filhos não são mais os mesmos. Mas Ystvan é um garoto forte, ele consegue trabalhar e cuidar da irmã. A garota fez a sua cabeça, não foi? Disse que existe um homem-lobo nessa floresta?”
“Nem a Yeta, nem você, nem ninguém vai fazer a minha cabeça. Eu só quero descobrir a verdade.”
“A verdade eu já disse.” Seutak puxou o fumo, guardou-o por um instante, e soprou para o alto. “O problema foi resolvido.”
“Você ainda não respondeu à minha pergunta. O que aconteceu com Ystal?”
“Foi um urso das cavernas, com certeza. Alguns hibernam cedo demais e acordam antes do fim do Inverno. Só isso.”
“Eu já ouvi tudo que precisava” disse o homem, levantando-se. “Obrigado pelo seu tempo.”
“Bom, que seja. Espero que goste de passar essa semana em Polireti. O começo da Primavera aqui é belíssimo.”
Seutak estava mentindo, isso era claro. O homem não precisava saber que ursos das cavernas hibernam até a metade da Primavera para perceber isso. Bastava a sua confiança em Ystvan, que atribuiu os ferimentos do pai a outra raça de urso, ou em Yeta, que estava convicta da existência do Licano. A partir daquelas interações com Nastátia e Seutak, o homem já deve ter começado a bolar um plano. Mas apenas aquilo não seria suficiente.
Felizmente, sua busca por mais informações não duraria um segundo sequer: saindo da prefeitura, foi recebido por um rapaz, que ouviu toda a conversa.
“Você é o homem que passou a noite no templo, não é?”
“Sou eu. E quem é você?”
“O meu nome é Romuno. Aquele—” apontou para a sala do Embaixador. “É o meu pai.”
“Você também vai me dizer que essa cidade não precisa de mim?”
“Claro que não! Muito pelo contrário, eu queria a ajuda de alguém exatamente como você… E você apareceu!”
“Isso só melhora…” sussurrou para si mesmo. “Do que precisa?”