O segundo mês de 1338 já chegava ao seu fim, mas a neve, teimosa, custava ir embora. Ainda que Polireti não fosse nem de longe a vila mais fria da região Norte, suas temperaturas podiam chegar facilmente à negativa de um quinto da ebulição da água. Foi durante uma dessas noites que foi visto um vulto chegando ao longe. Caminhando, a passos constantes, ele vinha de pés afundados no tapete branco da floresta. Mais próximo, era possível ver que vestia um sobretudo preto e usava botas grossas por causa do frio. Seu rosto, porém, estava descoberto e seu cabelo estava sujeito a respingos brancos da neve — eventualmente sacudida das árvores por algum mico-das-neves.
Os camponeses, sem dúvida, fizeram certo em se trancarem dentro de casa e fecharem as cortinas. Aquela não era a hora de ninguém estar vagando pela floresta, e estrangeiro nenhum viria de longe com nada além de um sobretudo e boas intenções. Mas o homem continuou andando, passando pelas casas à procura de um lugar que ainda não lhe tivesse rejeitado de antemão. Fosse sorte, necessidade ou destino, um jovem chamado Ystvan e sua irmã mais nova Yeta estavam prestes a fechar os portões do único estabelecimento que nunca se fecha a ninguém quando o homem cruzou a rua principal.
“Venha, entre!” chamou Ystvan. “Uma tempestade vem chegando!”
O homem apertou o passo e se recolheu embaixo daquele telhado amigável. O lugar exalava um cheiro suave de ervas aromáticas, por conta dos vários incensos queimando em frente aos altares dispostos ao longo dos corredores. Pela nave central havia vários bancos individuais — sem encosto — de uma madeira bem-acabada. No fundo da nave central, todos os bancos e altares pareciam se voltar a um único altar, não maior que os outros, nem com mais incensos, mas com uma cesta de palha.
O homem se sentou em um dos bancos e abaixou sua cabeça, apoiando seus cotovelos nas coxas. Com um longo suspiro, varreu as mãos pelo cabelo para se livrar de todo o excesso de neve. Talvez aquele tenha sido o primeiro momento em que o homem parou quieto desde muito tempo. O silêncio, contudo, veio apenas de passagem:
“Você quer uma bebida quente?” perguntou Yeta.
“Quero, por favor.”
A garota prontamente saiu pela porta atrás dos altares à esquerda, e Ystvan se sentou em um banco ao lado do homem.
“De onde você é?”
“Ah, você não conhece. É muito longe daqui.”
“Se é tão longe, por que você veio?”
“Eu não sei. Acredita?”
“Se você diz…”
Yeta logo voltou com uma caneca na mão e a entregou ao homem.
“Obrigado” disse.
Mas o homem achou algo estranho na caneca. Olhou-a de cima para ver o líquido transparente e segurou-a por baixo para sentir sua temperatura.
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“Está fria. Você disse que seria uma bebida quente.”
Ystvan e Yeta trocaram olhares, sem entenderem o que o viajante queria dizer.
“Mas é quente” confirmou Yeta. “Pode beber.”
O homem, então, tomou um gole. Certamente, maior do que deveria, já que quase pôs tudo para fora. O calor subiu por sua garganta como sobe à de qualquer um. Porém, o homem não estava acostumado com a ardência necessária para empatar os dias mais congelantes do Inverno — isso era claro como a neve lá fora.
“O—” tossiu.”Obrigado.”
“Não tem de quê” respondeu, risonha.
“Mas se você não sabe por que veio…” continuou Ystvan. “O que vai fazer agora?”
“Eu devo um favor a uma pessoa. Ela me trouxe até aqui para pagar essa dívida. Vocês conhecem um homem chamado Ystal?”
Os dois jovens se entreolharam mais uma vez, abrindo sorrisos sem perceberem.
“Papai!” disse Yeta.
“Você veio ajudar o nosso pai?” perguntou Ystvan.
“O que eu puder fazer para ajudar vai ser uma honra.”
Pela mesma porta que levava à cozinha, os dois mostraram o caminho subindo as escadas com o homem, avisando-lhe para tomar cuidado e não bater a cabeça no teto baixo. No andar de cima já era possível ficar em pé normalmente; e o homem, levantando o olhar, podia ver um senhor deitado em uma cama num dos quartos. Ystvan e Yeta entraram primeiro, sentando-se cada um em um banco na lateral da cama. O homem entrou logo em seguida, e ficou parado à porta até que o senhor disse:
“Ah! Chegue mais perto… Esse velho não tem mais dentes para morder.”
“Eu avisei, pai!” disse Ystvan. “Iaos trouxe esse homem para salvar o senhor!”
“Se Iaos quisesse me salvar, teria trazido um dos seus mensageiros dos céus… Esse homem não veio me salvar. Ele tem uma missão muito mais importante do que essa.”
Ystal, com tremendo esforço, abaixou os lençóis que o cobriam até o pescoço. O homem quase teve uma reação visceral àquela cena, como se não só a aparência, mas também o cheiro fosse nauseante. O senhor estava com o torso todo enfaixado, e o sangue não estancado havia formado estampas nas ataduras e poças na cama. Yeta não conseguia olhar, costumava virar o rosto e se esconder nos braços do irmão — e não poderia ter sido diferente naquela hora.
“Como isso aconteceu?” perguntou o homem.
“Foi um urso dos polos” respondeu Ystvan. “Eles costumam migrar para a floresta atrás de comida nessa época do ano.”
“Não foi” Ystal se impôs. “Eu sei bem o que vi…!”
“Pai…”
“Me conte o que aconteceu” pediu o homem.
De alguns anos para lá, passou a ser comum que algumas ovelhas se perdessem de vez em quando. De noite eram postas no aprisco, de manhã não estavam mais lá. Já que isso somente acontecia com as de velha idade, as pessoas começaram a acreditar que deveria ser alguma doença dos animais, que os deixava dementes de certa forma. Porém, com o tempo, até mesmo algumas mais jovens estavam sendo afetadas, e o número de cabeças de gado estava diminuindo em níveis alarmantes. Outra característica estranha, percebida pelos pastores, era que os desaparecimentos só aconteciam nas noites de Lua cheia. Daí, criou-se um folclore local:
“Foi o Licano…” disse Ystal. “Um homem que se transforma em lobo e devora as nossas ovelhas nas noites de Lua cheia…!”
O senhor começou a tirar as ataduras, e Ystvan não podia impedi-lo enquanto segurava os soluços de sua irmã nos braços.
“Veja os cortes…! Urso nenhum, lobo nenhum fez isso…! Eu já vi ursos, lobos e raposas de todos os tipos, aquilo não era um animal…” Ystal tirou os olhos do homem, como se estivesse relembrando — revivendo — o momento fatídico. “Ele tinha olhos de homem. Como os meus, como os seus.”
“Chega, pai…” disse Ystvan, levando a irmã e o homem para fora do quarto. “Eu preciso refazer os seus curativos.” E fechou a porta.