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Do outro lado do Rio (PT-BR)
23/09/1374 - Carta 11

23/09/1374 - Carta 11

Antes que eu comece a escrever sobre minha viagem a Dinaev, preciso falar de uma possibilidade que não sai da minha cabeça. Atente-se que tudo neste curto relato reflete unicamente a minha interpretação dos acontecimentos em Polireti, e o leitor que busca apenas certezas incontestáveis poderá continuar para os próximos capítulos. Aqui, escreverei um panorama geral de como entendi a cadeia de eventos, e o leitor ávido será capaz de entender por que escrevi as cartas anteriores da forma que as fiz.

Tudo surgiu com a pergunta: quem matou Ystal?

No fim das contas, esse é um mistério em aberto, que talvez jamais será desvendado. Contudo, sempre que penso no que aconteceu, uma ideia nada agradável se agarra em mim e não quer descolar de jeito e maneira.

Vou dizer de uma vez: Nastátia o fez.

Sinto que nesse momento, uma parte está pensando: “O quê?”

E a outra: “Eu sabia!”

Ambas fiquem comigo, pois deixarei minha hipótese o mais clara possível.

Argumento 1: Nastátia era amaldiçoada.

É incontestável que Nastátia partilhava da maldição de Edmont. Porém, o momento exato em que suas transformações começaram não é fácil de supor. O mais provável é que tenha começado por volta do momento em que atingiu a maioridade. Dois Licanos ao invés de um explicam o maior número de cabeças de gado desaparecidas nos anos recentes. Contudo, ainda é preciso ressaltar que Nastátia não controlava os seus impulsos — eles a controlavam. A transformação de Edmont estava completa, por isso era capaz de raciocinar enquanto cometia as atrocidades que planejava. Por outro lado, Nastátia era incapaz de possuir o pleno entendimento dos seus atos; não diferente de um animal que age puramente por instinto.

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A maldição ficava mais poderosa — a sede de sangue e fome de carne inclusive — nas noites de Lua cheia, e até mesmo Edmont poderia perder o controle. Com Nastátia, as noites que antecediam a fase cheia da Lua já deveriam ser capazes de transformá-la contra a sua vontade e fazê-la escrava de seus atributos animalescos.

Daí surge a possibilidade de ter se transformado em uma noite em que Edmont não estava por perto para detê-la. Da cabana de caça de Edmont até a fazenda atrás do templo de Iaos, a distância pode ser percorrida em poucos minutos por um lobo. Não é irrazoável imaginar que Nastátia se assustou com o senhor caminhando pela floresta e o atacou sem motivo aparente.

Argumento 2: O ritual de transformação.

Não se sabe o que Edmont pretendia fazer naquela noite, caso não fosse parado pelo Escolhido. Pelo que conheço de maldições hereditárias, existe sempre um ponto em que é necessária a completa e total adesão do filho ao modo de vida do pai por livre e espontânea vontade.

Assim como Romuno queria que todos pensassem que ele tinha matado corajosamente o monstro para que Nastátia não fosse embora de Polireti— dado que ele não sabia que o Licano era real, ingenuamente acreditava que Seutak havia resolvido o problema da vila com as rações bem-compradas —, o plano de Edmont era igualmente simples. Se Nastátia acordasse de seu transe após a noite de Lua cheia e encontrasse na sua boca o gosto do sangue do homem que amava — segredo que contou naquela tarde a Edmont, seguindo o conselho do Escolhido, e impulsionou o monstro a agir contra Romuno — nada mais restaria para ela além de se juntar às intenções nefastas do pai.

Conclusões:

Esse episódio foi talvez o mais complexo que tive de enfrentar em todas as minhas viagens, e precisei interferir mais do que gostaria na organização dos fatos. Espero que essa carta seja útil para os que buscavam uma compreensão mais abrangente do que aconteceu em Polireti.

Ah, e quanto mais eu poderia ficar falando da simbólica desse episódio na vida do Escolhido! Iaos, magia e maldições; relacionamento entre pais e filhos; amor, conselhos e suas consequências… Não restariam papéis em Cahgri quando os copistas terminassem as infindas cartas!

Para muitos — e para mim — um alívio: essa obra não busca explicitar nenhuma associação transcendental. A interpretação simbólica cabe inteiramente ao leitor, meu único dever é apresentar pontos de vista e opiniões com respaldo na realidade.