“Tire as suas patas nojentas do meu filho!”
“Grr…” O monstro deixou sair um ruído gutural. “Quem você pensa que é para me dar ordens?”
O monstro soltou o rapaz desacordado contra a parede e foi em direção a Seutak. O Embaixador se recolheu aos avanços do animal bípede, mas permaneceu com os pés firmes no chão.
“Não foi isso que nós combinamos.”
“Grah! Você nunca pensou em cumprir a sua parte.”
“Isso não é verda—” O monstro agarrou Seutak pelo pescoço.
“Eu sinto o cheiro do seu medo. Você não tem ideia de como é desagradável sentir esse mesmo cheiro sempre que chego perto de você… Pelo menos agora eu não preciso me segurar.”
“E-Eu salvei a s-sua vi… Vida…!”
“Não! Você me fez de escravo! Me fez de fantoche!” O monstro começou a sufocar Seutak. “E queria me matar no instante em que pisasse fora dessa maldita vila!”
Seutak não conseguia aliviar a pressão no seu pescoço, parecia que sua cabeça iria explodir. Porém, o monstro deixou que ele se soltasse.
“O seu sangue nas minhas mãos é um desperdício, mas nas mãos da—” O monstro sentiu um cheiro, ou talvez ouviu um barulho do lado de fora.
“Nastátia!” disse o homem, abrindo a porta da cabana. “Por favor, pare com isso! Vamos conversar!”
Olhando em volta, o homem podia ver Romuno desacordado ao lado da mesa de estripar e Seutak tossindo e segurando seu pescoço de joelhos no chão. Mas a presença do Licano era avassaladora demais para perceber qualquer outra coisa.
“Hmph! Hmmm!”
O homem ouviu um barulho abafado no canto da cabana. Estava muito escuro, porque não havia luz alguma acesa, mas ele sabia que aquela poderia ser a voz da garota que havia encontrado naquele dia mais cedo.
“Está procurando a minha filha?” disse o monstro. “Perfeito! Três é um bom número para fecharmos a conta.”
O Licano foi andando a passos largos e lentos até o homem, não se importando que Seutak fosse até seu filho, conferindo se estava bem.
“Eu dei uma segunda chance a você porque achei que fosse mais inteligente. Uma cortesia entre estrangeiros, sabe?” disse Edmont. “E você desperdiçou a sua vida por causa de quê? Hm?”
“Eu não desperdiço a minha vida. Se perdê-la, é porque eu a entreguei.”
“Grahah!” Edmont pegou o homem pelo pescoço, assim como fez com Seutak, e começou a apertar suas garras contra a garganta dele. “Você seria tão fácil de rasgar… Retalhar… Devorar… Já sei! Eu vou deixar você por último, e vou comer o que a minha filha não aguentar.”
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De repente, Edmont soltou o pescoço do homem e virou-se num piscar de olhos. Seutak havia pego uma das facas de caça na cabana e correu para atacá-lo pelas costas, desprevenido. Mas o Licano foi muito mais rápido, e segurou o punho fechado antes que a faca pudesse encostar nele; com a outra mão, fincou suas garras nos intestinos de Seutak, abrindo-o como se fosse um animal pronto para ser eviscerado.
“Peste! Pragas! Maldição! Olha o que você me fez fazer!” Edmont jogou Seutak no chão e começou a lamber suas garras para limpar o sangue. “Carne morta é tão menos saboro— Guh!”
O homem conseguiu aproveitar aquela distração para fincar sua adaga entre as costelas de Edmont. O monstro começou a soltar gritos e esperneios pavorosos, e já não conseguia mais formar palavras. Com um soco, arremessou o homem para fora da cabana. Sem cerimônia, retirou a adaga e largou-a no chão. Em seguida, curvou-se e partiu em quatro patas até o homem jogado na neve.
Nastátia nunca havia visto o pai daquela forma — em todos os sentidos. Edmont sempre foi um pai amoroso, ainda que do seu próprio jeito. Tudo que ele fazia era pensando em sua filha, disso não restam dúvidas.
Seutak era diferente. Tudo que ele fazia era pensando em si mesmo. A forma como controlava seu filho e o monstro em coleiras de semelhante tamanho era a prova disso. Porém, em seus momentos finais, uma luz pode ter surgido para ele.
Seutak tomou nos ombros a sua verdadeira responsabilidade de Embaixador da pequena vila de Polireti, segurou suas tripas junto ao corpo com uma mão e pegou a adaga do Escolhido na outra. Ele fazia aquilo não por si próprio, nem por seu filho, nem por sua futura nora, mas por um estrangeiro, que naquele mesmo dia havia destratado como se não valesse nada. E era isso que lhe dava força. Iaos lhe dava força — foi o que disseram — naquele momento. Um de seus mensageiros desceu dos céus e segurou-lhe a adaga no alto; e desceu com ela em um movimento certeiro, que a encaixou entre as vértebras do monstro quadrúpede.
Mais gritos e esperneios vieram… Mas o Licano não conseguia nem mesmo rolar pelo chão de neve. Até que os gritos se tornaram choro, e os esperneios viraram ranger de dentes.
Seutak morreu poucos instantes depois. O lugar em que seu sangue foi derramado empolou a neve de tal modo que ela não veio a derreter no começo da Primavera, nem no meio do Verão… E vi com meus próprios olhos que continua lá até hoje.
O homem conseguiu sair de debaixo de Edmont e retirar a adaga.
“Liaobe” disse, fincando a adaga no coração de Edmont.
Aos poucos, o monstro ia tomando cada vez mais uma aparência humana, e o homem virou o rosto porque não queria enxergar o que tinha feito. Naquela hora, Nastátia podia sentir uma plena calma em seu coração. A maldição também havia sido retirada dela com a morte de seu pai. Voltando para a cabana, o homem desamarrou Nastátia, que foi correndo para Romuno, já recobrando a consciência. Infelizmente, a reunião não durou muito.
“Mas o que aconteceu aqui?” perguntavam os soldados.
A guarda de dez homens que Seutak havia chamado para matar Edmont e Nastátia assim que saíssem de Polireti escutou os gritos do Licano e todos foram correndo até o local. Havia uma porta do outro lado da cabana, e foi por lá que Nastátia saiu, emprestando o ombro para Romuno não cair.
“Podem deixar comigo” disse o homem com um sorriso no rosto.
E foi assim que o Escolhido caiu nas mãos do tirano Khyton III.
Mas a noite ainda não havia terminado. Ystvan e Yeta estavam caminhando de volta para casa. Do lado de fora, conseguiam ouvir sons de uma conversa vindo do quarto de Ystal. Subindo as escadas, os dois podiam ver sombras se movendo ao chão da porta fechada. Era como se duas pessoas estivessem dançando lá dentro, mas isso seria bobagem ou miragem. Quando Ystvan fez como que para girar a tranca e abrir a porta, Yeta segurou o seu braço. Ela queria abrir a porta — finalmente estava pronta, pensava, para encarar o que viesse. Mas não restava mais nenhuma alma viva quando a porta foi aberta — as sombras se esconderam nas sombras, e a luz de um sorriso virou o refúgio das lágrimas.
Três homens morreram naquela noite. A verdade tem um preço realmente muito alto.