Como torturador sádico me tortura e me retalha, e costura e afaga, dizendo de esperanças quando não há, de sois quando há escuridão, de risos quando vejo apenas dor. Ás vezes quase consigo me desvencilhar, mas me prende novamente, alertada pelo seu sexto sentido. Como é incrível essa sua prisão...
Uivo ficou parado na subida para o Pouso Frio, onde o seu aruá estava pronto para atacar alguns mantos e alguns bonecos. Suspirou, sabendo que ainda tinha muito tempo, antes que fossem mobilizados para atacar os invasores. Ficou observando, procurando-a em meio aos pontinhos negros que se ajuntavam e se moviam no chão, muito distante. Olhou o sol, vendo que ainda estava jovem no céu, apesar da neblina que ia se espessando. Mas, quanto mais subia, mais sentia que era puxado de volta. Como poderia aceitar ir embora e deixar algo tão importante para trás?, cismou meio desalentado.
Seu peito se oprimiu ao pensar que logo a comitiva partiria para sua missão, e que ela iria embora sem que a pudesse ter por perto, e que ela logo esqueceria que ele, um dia, teria existido.
- Despedida – cismou. - Como gostaria de dizer adeus.
Já ia se virar para continuar a subir em direção ao pouso frio onde seu grupo o aguardava para dar combate a um grande bando de invasores quando a viu ao longe. Seus olhos foram aprisionados sem que fosse dado a ele qualquer possibilidade de escapar.
Lá estava ela, e ela nem devia saber que ele a procurara agora há pouco, com a alma apequenada. Talvez, caso soubesse, tinha certeza, ela giraria a cabeça, totalmente indiferente. Mas seus olhos a seguiam, como que enfeitiçados.
Ela estava linda, altaneira, brilhando no meio dos outros seres que pareciam feitos de sombras. Tudo se escondia de sua luz, cismou pesaroso. Seu peito doeu, imaginando os perigos que passaria, as dores que teria, os medos com que teria que se arranjar. Uma dor o atingiu mais fundo, imaginando que a perderia para sempre, que ela encontraria um novo alguém, e o esqueceria de vez, se alguma vez se importara com ele. Com força apertou o peito, desejando ter o controle suficiente para arrancar de dentro do seu coração toda aquela dor.
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Uma tristeza profunda o abateu. Não podia deixar de pensar nela, apesar de toda a energia que dispendia para a manter longe. Seu peito doeu ainda mais quando pensou que ele não era suficiente para ela. Ela era incrível, e ele, apenas um nefelin medíocre, de pequenos poderes e de pequenos feitos.
- Gostaria de poder lhe desejar sorte para que encontre outros braços e outros sorrisos, gostaria de poder sorrir ao vê-la partir, como quando se solta um belo pássaro – sussurrou para si mesmo, sabendo o quanto mentia.
Virou o rosto para o alto do morro e desejou sumir e perder de vista em definitivo a silhueta de sua maldição, porque sabia que assim ela se tornara. Uma maldição, correndo e esmagando lentamente seu coração, e que o fazia desejar destruir qualquer braço que a enlaçasse.
Suspirou pesado e os ombros caíram.
Voltou os olhos para o horizonte distante. Por um momento quase se decidiu em partir de vez, para esquecer e ser esquecido. Os pés titubearam, e partir pareceu mergulhar o mundo em luz, que logo se foi e deixou o mundo cinza novamente.
Suspirou.
Não poderia ir embora. Ela já estava indo, sorriu. Se era distância o que precisava, ela já estava lhe dando isso.
> Eu te renego – falou alto para as árvores e para o céu e as nuvens e a neblina que se espraiava pela face do monte, em direção aos campos perto do rio, onde o danush de Adanu se perfilava para partir. E a viu lá embaixo montada no ArrancaToco, majestosa, aguardando o momento de se ir.
> Te renego, te renego mais uma vez – lamentou, - porque sei que não há como eu ser merecedor de uma luz como a sua, dos seus olhos pousarem em mim, de ter seus sorrisos para mim, de um dia ser aquele para quem vai olhar e sorrir. Eu te renego, para te libertar e, assim, me libertar. Que vá, que suma além dos horizontes, que estique tanto essa corda de lembranças até que ela, finalmente, se rompa e me liberte – falou duro, o corpo rijo, se voltando para o morro íngreme, sobre o qual invasores haviam sido avistados, se forçando a ignorar as ovações pela partida da comitiva de Adanu.
- Fim do volume 01 -