Eu até cheguei a pensar que seria fácil apagar você da minha alma. Eu não sabia que até sua ausência fazia parte dessa dor terrível.
- Eu fiquei sabendo. Todos comentam sobre isso. Você ficou louco? – Tenebe foi reclamando assim que viu Uivo no meio da trilha. – E quase atacou Adanu e...
Uivo se virou e olhou para Tenebe. A dor que tinha no peito devia ser muito aparente, porque Tenebe parou de chofre, a surpresa assustada nos olhos. Doeu ver um princípio de desespero, daqueles de um pai que vê uma dor monstruosa num filho e fica sem saber como agir, a não ser sentir parte da dor.
Em silêncio ele se aproximou e se sentou no tronco de uma árvore que caíra há algum tempo, os olhos pesados vendo pequenas plantas que aproveitavam a luz do sol que entravam pela clareira aberta pela queda da árvore.
> Estou aqui, meu filho. O que aconteceu? Esse Lavareda e os outros o atacaram por causa da Alcapa? – perguntou.
Uivo se remexeu incomodado, como se uma dor navegasse dentro de seu corpo.
- Claro que não. Mas, isso não tem importância – falou, a voz distante e pensativa. - Estou de partida, Tenebe - anunciou.
Uivo levantou os olhos para as copas das árvores. Não queria ver a dor povoando o rosto que tanto amava.
- Eu não entendo... – ouviu o gemido agoniado.
- Você está indo embora, de partida com a comitiva de Adanu. Então também vou embora desse lugar. Não há nada para mim aqui.
- Mas,... Então é essa decisão que se exige que vem te amolando por esses dias, te mantendo pensativo? Ah, Uivo, peço que pense muito sobre essa decisão - sussurrou quase inaudível. – Os exércitos estão sendo convocados, os danush estão nomeados e prontos para partir. Olha, você pode vir comigo, no danush de Adanu...
- Não, de forma alguma – negou rápido e com firmeza, o que aumentou a dor em Tenebe.
Tenebe, martirizado, ficou vasculhando tudo o que sabia, procurando alguma forma de ajudar Uivo.
- O que aconteceu, Uivo?
- Apenas sinto que devo fazer isso, pai. Tenho que ir embora.
Tenebe sentiu o aperto no peito aumentar. Raramente Uivo o chamava de pai, e quando ele fazia isso era por algo realmente grande e importante.
- Mas, tem a Allenda, e...
- Eu já tomei minha decisão...
- Está chateado porque não foi o próprio Adanu que te convidou, ou algum outro danush ou exército por não tê-lo nomeado? Uivo, o próprio Adanu me pediu para te convidar. Mas, se quiser, posso pedir para ele vir pessoalmente...
- Não, não é isso. Bem sabe que não tenho esse tipo de orgulho, pai. Quanto aos outros danush ou exércitos que não me chamaram, tenha certeza de que isso não me causa qualquer desconforto. Sei que me veem como um problema, e lhes dou inteira razão. Eu também não gostaria de ter sob meu comando alguém como eu – sorriu abatido. – Sei que não sou muito afeito a receber ordens.
O silêncio perdurou por muito tempo, Tenebe procurando desesperadamente acertar seus pensamentos.
- Há algo que posso fazer para que pense melhor? – pediu, a dor controlada na voz.
- Não, não há nada que possa fazer ou dizer, pai. Apenas acho que o tempo para ir embora chegou.
- Está bem, está bem. Mas, o que pretende fazer, então, quando partir dessas terras?
- Seguirei por minha conta. Aqui no entorno primeiro, pois que há muitos demônios e bonecos[1] que se infiltraram por essas terras. Depois, eu talvez siga para o norte. Ainda não me decidi sobre o caminho, mas isso não é importante agora. Nesses tempos os caminhos se mostram naturalmente. Acho que, afinal, terei alguma utilidade.
- Sabe, filho, se não quer vir comigo, ainda tem...
- Danbara? Jádina? Não nos acertamos...
- É, está bem... Mas tem a matilha de lobisomens...
- Que não me veem com bons olhos – sorriu pesaroso, sentando-se ao seu lado, abatido e desanimado.
- Éééé... – sorriu também.
- Esse é meu jeito, e acredito nele por enquanto, apesar de tudo.
- Eu me orgulho de você, Uivo. Você tem honra, e um carinho com a vida que me deixa feliz, apesar de preocupado com o que lhe causa. Mas, partir? Há muitas ameaças aqui por esses lados, você sabe, já ouviu sobre eles. E o conselho já colocou seu nome em pauta. Eles, nós precisamos de você. Suas batalhas, principalmente a última, te recomendam com sobras.
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- A última? – sofreu, parecendo meio envergonhado.
- A do formigueiro... – sussurrou Tenebe.
Tenebe observou Uivo por um tempo, e percebeu que ele, na verdade, não queria partir. Tinha que achar a palavra exata, que Uivo desejava ouvir para ficar.
Com a cabeça baixa ficou algum tempo remoendo.
> Por que não fazemos um acordo, meu filho?
- O que está pensando, Tenebe?
- Fique por aqui, atenda o conselho, limpe essa área. Você não precisa partir hoje, agora. Você poderá partir no momento em que desejar, sabe disso. Então, você é, como sempre foi, livre para ir pela trilha que desejar. É uma boa forma de não deixar a dor comandar seus caminhos, não acha?
- E por que acha que é pela dor que me decidi a ir embora?
- Eu conheço você... Não sei porque, mas sei que ela está aí, dentro do seu peito. Você não quer me falar, mas saiba que estou sempre disposto a te ouvir.
Então sua esperança e alívio se ascenderam, ao perceber que ele aceitaria, o que lhe daria o tempo necessário para tentar encontrar alguma forma de amainar sua dor. No fundo de sua mente acreditava que somente duas coisas poderiam fazer isso: a rejeição de algum danush ou mesmo a dor de não ter sido chamado diretamente por Adanu ou Allenda, ou então, algo a ver com a própria Allenda.
Uivo baixou a cabeça, os olhos vasculhando o chão da floresta.
- Está bem, Tenebe. Por hora, fico, por você. Mas fica aqui a despedida, pois se eu resolver partir...
- Se resolver partir, meu filho, irá com minha benção, e meu coração. Que suas lutas sejam honradas e gloriosas.
- As suas também, meu pai – se levantou, os olhos postos carinhosamente em Tenebe, se perdendo rapidamente para dentro da floresta.
II
- Foi pelo que aconteceu com Lavareda e os outros que não chamou o Uivo para o danush? – Tenebe perguntou, o olhar triste no amigo.
Adanu baixou a cabeça, muito sem-graça.
- Uivo é uma força que não aceita controle, Tenebe. Você sabe disso.
- Quando o que pedem não é o correto, ou o que ele não aceita, sim, isso é verdade nele.
Adanu suspirou fundo.
- Muitas vezes em uma guerra as ordens são dadas. Se tivermos que explicar cada uma delas então estaremos fadados a sermos derrotados, você bem sabe.
- Sim, eu sei. Me desculpe.
- Mas ele é uma pessoa que eu gostaria de ter na equipe, sem dúvidas. Mas, não é só por isso...
- Allenda?
Com um peso estranho viu que acertara no motivo. Evitou pensar no que poderia ter acontecido enquanto estivera longe.
> Ah, Adanu, mas eles vão acabar se acertando, tal como você e a Bella. É só dar um tempo para eles...
- Sabe, Tenebe, é até bom que eles fiquem afastados um pouco – disse baixinho, a voz triste e um pouco distante. - Uivo ficou chateado por eu não o ter convidado?
- Ele disse que não, e acho que ele disse a verdade. Ele é bem resolvido com essas coisas do ego. Mas, sabe Adanu, foi a providência. Ele já estava um pouco longe, lá pela trilha dos lobos, quando o vi. Quando perguntei o que fazia tão longe, ele disse que estava indo embora – sussurrou tomado de pesar.
- Como? – Adanu quase engasgou.
- Ele estava de partida. Acho que nunca mais o veria novamente.
- Pelo Trovão – Adanu sofreu, o rosto mostrando uma tensão dolorida.
- Eu não entendo, Adanu. Uivo estava indo embora. E eu perguntei, mas ele não quis me dizer o motivo verdadeiro.
- Mas, mas, partir? Para onde?
- Disse que ia se afundar para o norte, e depois, bem provável que fosse atrás dos thianahus...
- Conseguiu fazê-lo desistir disso? – Adanu quis saber.
- Não. Apenas ganhei um tempo... – falou Tenebe, a voz triste.
- E se você pedir para ele se juntar a nós?
- Eu pedi, e disse que você, através de mim, tinha pedido para ele se juntar ao danush... Me desculpe. Eu não tinha muita coisa para...
- Eu te procurava para isso mesmo, para pedir que se juntasse a nós – falou. – E então?
– Ele não quer nem pensar em ir na comitiva – falou Tenebe, a voz triste. - Eu insisti, e ele começou a ficar nervoso. Ele não vai, e não sei por que. Eu não entendo... Você sabe o que aconteceu com Uivo?
- Acho que sim, Tenebe – informou Adanu, as mãos caídas no colo.
Tenebe o encarou, a face concentrada, atenta.
- E o que foi? O que você acha que pode ter feito ele tomar essa decisão? Allenda? – perguntou, uma forte desconfiança remoendo seu cérebro.
- Sim, Allenda... – sussurrou Adanu.
- Ahhhhh – Tenebe suspirou pesado. – Eles brigaram de novo?
- Antes fosse – lamentou-se Adanu.
- Ah, não... Lavareda? – gemeu. – Eu soube do que aconteceu, e fui atrás dele para conversar. Soube que ele até mesmo quase o atacou.
- Exageros que contam. Ele estava muito transtornado, magoado...
- Por quê?
- Allenda me contou que estava nas margens de um rio há dois dias, com Lavareda. Uivo os viu... Depois eles se encontraram. Uivo a atacou e foi quando atacou Lavareda.
Os ombros de Tenebe caíram, o desânimo em seus olhos.
- Agora entendo...
- Então Lavareda, se sentindo desrespeitado, chamou alguns de seus amigos e foram atrás dele e... O resto já sabe...
- Então foi isso – cismou. – Dá para ver uma dor nele, uma mágoa... Ele está lutando contra, mas está meio difícil para ele. Ele fica muito tempo longe, arredio. Temo que ele me escape, Adanu – sofreu.
- Eu sinto muito, Tenebe. E eu sinto muito por ele..., e por Allenda, que está confusa e amargurada demais com isso. Ela gosta de estar perto dele, mas ele a está evitando.
- Ela não percebeu?
- Sobre ele ou sobre ela? – sorriu tristemente. - Claro que sim... Acho que ela tentou escapar do que sentia. Por isso aceitou o cortejo de Lavareda. Mas, tudo deu errado. Ao que parece ele reconheceu o que sente, ou sentia por ela, no último e desastroso encontro. Depois disso parece que passou a renegar tudo o que sentia com respeito a ela, porque ela me disse que ele a evita a todo o custo.
- Ela te disse isso?
- Sim... E ela me disse isso toda confusa e ruborizada... A juventude, muitas vezes, é cega demais...
- E se ela pedisse para ele ir conosco?
- Ela nunca pediria... Outro erro absurdo: o orgulho. Mas, caso ela pedisse, você acha que ele aceitaria?
- Não, não iria... - gemeu. - Eles vão sofrer demais.
- Sim, acho que vão... – suspirou, os olhos postos em Uivo, que surgira da floresta, conversando com uma manira ellos.
> Aquela manira, Elliara. Ela está muito próxima dele... – falou Adanu. – Ela mostra que gosta muito dele.
- Ah, sim... Ela já está de olho nele há um bom tempo.
- Ela é muito bonita...
- Lindíssima, sim... Tomara que ela faça algum bem para ele – sussurrou triste. – Tomara que o mantenha por aqui, até que tudo se ajeite.
- Sim, tomara que ela faça algum bem para ele. Para ele.. – Adanu suspirou abatido.
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[1] Vide anexo, ao final deste livro.