Quanto vale uma vida, qual o tamanho do valor que dá a um sorriso, a um olhar brilhando? Saiba que terá o mesmo valor e tamanho da sua alma.
O equinócio do inverno se aproximava. O mundo estava confuso entre o frio do inverno e a explosão de vida da primavera, confusão que se mostrava principalmente nos menores seres viciados em flores. Um desses, um pequeno e lustroso beija-flor, provavelmente atrapalhado por essa confusão ou por ver os cabelos em fogo de uma pessoa, passou zunindo perto da cabeça em chamas e se espatifou de encontro ao tronco rugoso de uma árvore. O pequeno pássaro caiu num baque inaudível no chão de folhas onde quase desapareceu entre as grossas raízes que, como veias lenhosas, cravava-se e desaparecia sob o solo. As pontas das asas, que se erguiam acima das folhas secas, tremeram dolorosamente, em profunda e abandonada agonia. Lentamente as asas foram se fechando, as patinhas se esticando para cima, até que por fim o bichinho se imobilizou em definitivo.
O curupira parou o feroz queixada e olhou onde tinha caído o pássaro, e constatou, pesaroso, que ele tinha morrido.
- Vamos, FuraTerra! – Adanu falou para o queixada. – Ainda não chegou o tempo para esse nosso amiguinho.
A floresta ficou em silêncio, emudecida por aquela voz que parecia o vento tocando as folhas e movendo os grossos troncos das árvores, quebrado apenas pelo som das passadas do queixada nas folhas caídas.
Adanu era um curupira muito, muito velho, mas ainda muito poderoso. Todas as florestas e seus bichos o adoravam. Ele cuidava deles há muito tempo, e seus cuidados eram cuidados carinhosos e gentis. Havia uma bondade, uma fina inteligência e uma firmeza que impressionavam. Ele era um dos poucos curupiras que tinham como constante companheiro um queixada, poderoso e de aspecto terrível. Ele tinha 1,80 mts de altura, musculoso, ombros e peito largos, braços e pernas grossos, rosto quadrado e forte, o que o fazia parecer erroneamente baixo. Diferente dos outros curupiras, ele não tinha todo o corpo coberto de pelos, mas apenas o peito, pernas e braços, e ostentava uma cabeleira negra e macia que descia até os ombros. Partindo do lobo frontal, sua tatuagem era uma fina linha que, após dar uma volta na orelha esquerda, descia pelo queixo, terminando no ombro direito, onde se ramificava como gravetos antes de desaparecer.
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Desde que sua esposa fora morta por feiticeiros, longo tempo atrás, nunca mais se ligou fortemente com alguém, apesar do romance discreto que mantinha com a bela mãe-da-mata Itanauara.
O poderoso curupira, com o coração apertado de pesar, parou o queixada ao lado do pássaro. Com um movimento extremamente ágil desceu da fera. Com um joelho fincado no chão afastou com suavidade algumas folhas para os lados e, carinhosamente, apanhou o pássaro pintado de verde metálico, elevando-o bem à frente de seus olhos de fogo. Ficou por algum tempo observando-o, procurando qualquer sinal de vida. Ali não estava mais o pássaro, mas somente um diminuto corpo que logo se tornaria terra. Uma brisa tocou nos galhos das árvores mais próximas, enquanto sua tatuagem se tomava de uma brasa rosácea.
Adanu[1] encheu o peito em silêncio e soprou no pássaro.
Nada, constatou.
Com a face concentrada levantou-se e levou-o até o queixada chamado FuraTerra, postando-se à sua frente, as duas mãos com o pássaro aninhado esticadas à frente do corpo. Em voz pausada e cantada, baixinho proferiu um encanto numa língua estranha, só entendida pelas árvores e animais. FuraTerra se aproximou majestoso e resfolegou suavemente no pássaro; deu um pequeno grunhido e recuou alguns centímetros, a cara concentrada. De repente o pequeno corpo, aconchegado nas mãos do curupira, estremeceu e silenciou. Não demorou muito e estremeceu novamente, e mais uma vez. Então, como que por mágica, subitamente se agitou e alçou voo alguns poucos centímetros sobre a mão do ser, planando à frente do queixada e do curupira de cabelos e olhos de fogo. Havia um cumprimento, um agradecimento no movimento do corpo e da cauda. O curupira sorriu, FuraTerra resfolegou suavemente. O pássaro, com um pequeno zunido das asas arabescadas, partiu em grande velocidade, sumindo nas sombras da floresta.
Adanu, satisfeito, subiu no queixada, o fogo de sua tatuagem arrefecendo, até por fim se apagar.
Arrastando indolentemente os pés no chão continuou em direção ao burburinho da reunião, através do coração da velha floresta.
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[1] Adanu, em linguagem dos povos senucidas, uma nação de pessoas guerreiras do norte, quer dizer: o último amigo.