Eu não sabia, nunca soube. Não sei se esse caminho que escolhi é o mais fácil, ou o mais difícil. O que eu sei é que não quero esquecer.
I
Assim que a escuridão a envolveu Éfrera se perguntou, mais uma vez, se podia voltar para a sua família, se deixariam que sua saudade fosse apaziguada. Prestou atenção no grande silêncio, e sentiu seu coração bater seco ao sentir que o tempo para isso não havia chegado. Então, às sombras contou de sua dor, e do que já aprendera e de como lutava para se manter íntegra.
- Eu ainda não mereço? – gemeu baixinho para a escuridão.
Apesar de ficar longo tempo aguardando, como das outras vezes em que morrera, não conheceu qualquer resposta. Mas, tal como das outras vezes, sorriu apaziguada ao sentir que havia um amor imenso ao seu lado, se esforçando em mostrar que nunca a deixara abandonada.
Então a sensação novamente se foi, deixando para trás apenas numa fraca lembrança.
- Apenas mais uma dose de sofrimento – sentiu resignada.
Sozinha, deixada e não encontrada pelo deus que tanto amava, chorou sentida.
Se sentindo desamparada novamente se deixou na onda terrível e sufocante, encharcada de dor que a atingiu por todo o corpo. Ondas e ondas de imagens e dores, revivendo, chorando, chagas e sofrimentos. E, entre todo aquele terror, era nos momentos em que pudera sorrir que se apegava, pois era neles que sentia o deus que ela abandonara, dizendo que era por amor que ia contra ele.
Em alguns momentos até pensara em aceitar, como a imensa maioria dos caídos aceitava, de se deixar esquecer, afundar na matéria, esquecer das dores, que infringira e que sofrera, em humano se tornar. Aprender no esquecimento, ouvira inúmeras vezes.
Mas, novamente, não aceitou isso, e se viu outra vez em queda, totalmente desperta no terrível assombro, na medonha verdade de saber que, mais uma vez, falhara.
No crepúsculo se viu novamente refeita no mundo, e como sempre quando voltava à vida na prisão, as falhas e erros pintados com cores extremamente nítidas, exigindo sua atenção e toda a dor. Sem poder se concentrar e deixar as coisas passarem se afundou num vale à direita, escondido dentro de uma espessa neblina que se levantava de um rio esquecido.
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Com os olhos doloridos se lembrou de Mercator, e pensou em toda a dor que ele tinha que ficar remoendo, vezes sem conta. Então ficou se perguntando qual dos dois escolhera o pior caminho para se purgar. Sem querer, naquele mundo sombrio, sorriu, ao lembrar dele, gigantesco, humilde em sua pergunta.
Subitamente tudo foi ficando ainda mais sufocante. Uma nevoa terrível e espessa a atingiu, e nela só havia silêncio. Uma forma dentro daquela névoa avançou sobre ela e a carregou, subindo alto naquele céu que, subitamente se tornara azul.
E ela nem mesmo pensou em resistir.
Meio sonolenta procurou pela criatura que a carregava, e viu apenas uma luz, percebendo que ela também havia se tornado uma luz.
Mas, foi por pouco tempo. Logo algo, como uma sombra, a foi envolvendo, espremendo, como se uma montanha se transformasse em um ovo que encolhia rapidamente. E dentro daquela sombra surgiu uma pequena flor azul, e perto dela havia uma voz, gentil e amorosa, que sussurrava com extremado carinho: Arael, você nunca estará sozinha.
II
- Nós já a localizamos, Mercator – informou o anjo, muito longe no horizonte.
- Ela encarnou como o que?
- Ela continuará como demiana. Ela é uma entrante, e seu nome é Arael.
O silêncio escorreu pela distância.
- Arael, princesa entre o povo. Um bonito nome. E onde ela está?
- Ela já está conosco – revelou.
- Entendo... Ela se tornou uma garantia contra mim?
- Precisamos? Ah, tenho certeza que não. Você evoluiu demais, Mercator - disse Miguel com um largo e amigável sorriso.
- Não, não vão precisar. Ela... ela perguntou por mim?
- Se preocupa tanto com ela, assim? – Miguel perguntou, surgindo ao lado do gigante.
Mercator, sério e pensativo, o avaliou, e permaneceu tranquilo
> Como entrante, Mercator, ela vai demorar um pouquinho para se ajustar ao novo corpo, mas logo terá todas as lembranças. Mas, sim, ela tocou em seu nome. Falou que tinha um amigo, um gigante... – Miguel sorriu. – Só pode ser você, não é mesmo? Ainda mais considerando que ela só teve um amigo.
- É, ela me contou. Disse que ele encarnou, acho que como um ser humano.
- Isso mesmo. Ele está, desde que desceu, por conta própria.
- Acha que devo procurá-la?
- Em dúvida?
- Fui eu que a coloquei em risco, e fui a causa de sua morte. Se não fosse por mim...
- É um erro julgar que as coisas sempre são sobre nós. Tem a vontade dos outros na estória. Então, que culpa se deve carregar?
Mercator, que mantinha os olhos no chão, encarou o anjo.
- Você deve estar certo porque...
- Por que sou um anjo?
- Não, não por ser um anjo imbecil, mas, porque é Miguel...
Miguel o observou, e havia muito carinho em seu olhar.
Obrigado, Mercator. E quanto à procurá-la ou não, aconselho que dê mais um pouquinho de tempo para ela. Ela está se recuperando e se acomodando no novo corpo. No momento certo fará muito bem para vocês se encontrarem. Vai ser de imensa ajuda para ela, e para você.
Mercator ficou em silêncio, se avaliando.
- Sabe, Miguel, eu tenho receio. Ainda perco muito fácil o meu controle. Poderia atacá-la e...
- As chances disso acontecer são mínimas, Mercator. Por mais incrível que possa parecer, vocês se respeitam como guerreiros, e se tornaram amigos. Tudo está bem agora, acredite.
- Acredito em você, Miguel – falou Mercator, se distraindo com uma nuvem gigantesca mais para o oeste.