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Máscara quebrada

O ambiente dentro da boate era... caótico, pelo menos aos olhos de Damien. As pessoas se moviam de formas estranhas, algumas pulando desordenadamente, outras trocando gestos de afeto em meio à multidão. Para ele, aquilo era um espetáculo incompreensível. Era tudo barulhento, brilhante e desconexo demais, algo que jamais teria presenciado no submundo.

Ele mal havia chegado ao mundo mortal, mas já tinha uma certeza clara: os humanos eram criaturas fascinantemente estranhas.

Damien fechou os olhos por um breve momento, concentrando-se em sua habilidade de observar as almas ao seu redor. Em meio àquela multidão dançante, ele viu uma torrente de emoções — diversão, tristeza, solidão, malícia e, em alguns casos, um leve traço de amor... ou talvez apenas luxúria mascarada.

Ainda assim, nada daquilo o surpreendia. Esses sentimentos eram parte da essência dos mortais, afinal. Ele suspirou, cansado de estudar a confusão ao redor, e voltou sua atenção para Ellie, que segurava sua mão, liderando-o por um caminho que parecia levar a um local mais reservado.

Damien estreitou os olhos, analisando novamente a alma dela. Era ali que sua curiosidade despertava ainda mais.

"Nada."

Não havia nada além de uma escuridão impenetrável. Ele não via qualquer emoção. Nenhuma alegria genuína, nenhuma tristeza reprimida, nenhum resquício de dor ou prazer. Apenas um vazio absoluto.

Mas lá estava ela, sorrindo com vivacidade, exalando felicidade para os amigos e até mesmo para ele. Como ela conseguia esconder tão bem o vazio de sua alma?

Ellie percebeu o olhar fixo de Damien e abriu um sorriso travesso, quebrando o silêncio:

— O quê?

Ela fez uma pausa, olhando para as mãos de ambos antes de adicionar com um tom provocativo:

— Ah... entendi. Deve ser a sua primeira vez segurando a mão de uma mulher, não é?

Damien abaixou os olhos para suas mãos entrelaçadas, mas sua expressão permaneceu séria.

— Você é algum tipo de oráculo ou algo assim?

A pergunta o surpreendeu tanto quanto a ela, que explodiu em risadas.

Damien inclinou a cabeça, observando-a atentamente. Ele não conseguia entender por que ela achava tudo tão engraçado.

"O que há de tão cômico em mim hoje?", ele pensou, frustrado.

Balançando a cabeça, como quem deixa de lado a dúvida, Damien deu um passo mais perto de Ellie e perguntou com calma:

— Ellie, você está bem?

As risadas dela cessaram abruptamente. Seus olhos, antes cheios de malícia brincalhona, tornaram-se curiosos, como se esperassem outra piada.

— Claro que estou. Por que pergunta?

Damien manteve a voz firme, mas algo em seu tom carregava a gravidade de um julgamento final:

— Porque, aos olhos de todos aqui, você parece radiante e feliz. Mas aos meus... não é nada disso que vejo. Tudo o que vejo em você é... escuridão.

A expressão de Ellie mudou instantaneamente. Seus olhos se arregalaram e seu sorriso morreu, como uma chama sufocada. Por um breve momento, ela parecia vulnerável, desarmada. A máscara que carregava com tanto cuidado havia sido quebrada por um estranho.

Damien ficou parado, observando. Ele sabia que essa era a reação natural de alguém que tinha seus segredos expostos. E ainda assim, ele não recuou.

Por longos segundos, Ellie o encarou em silêncio, sem dizer nada. O som ensurdecedor da música e das pessoas ao redor parecia agora distante, quase inexistente.

Sem aviso, ela o puxou pela mão novamente, afastando-o do tumulto.

— Para onde está me levando dessa vez? — Damien perguntou, sua voz carregada de curiosidade genuína.

Dessa vez, Ellie respondeu sem hesitar, mas sua voz era quase um sussurro desesperado:

— Apenas me siga... por favor.

O tom dela fez Damien arquear uma sobrancelha. Ele sentiu que havia algo mais profundo por trás daquele pedido, algo que ela não estava pronta para revelar. Ele permitiu que ela o conduzisse, seus olhos fixos nas costas da mulher que agora parecia estar fugindo de algo — talvez de si mesma.

Ellie guiou Damien por um caminho sinuoso, afastando-se da confusão e da intensidade da boate. Conforme se distanciavam, o som ensurdecedor da música foi gradualmente substituído pelo silêncio tranquilo da noite. O ar ao redor tornou-se mais fresco, carregando consigo o aroma de grama úmida e flores silvestres.

Após alguns minutos de caminhada, eles chegaram a um pequeno parque escondido entre os prédios da cidade. Era um espaço sereno, quase esquecido pelo ritmo frenético ao redor. O lugar parecia mágico de tão calmo, como se pertencesse a uma realidade paralela.

Um lago cristalino ocupava o centro do parque, refletindo o brilho pálido da lua cheia. Ao redor do lago, árvores robustas estendiam seus galhos como guardiãs silenciosas, e algumas flores noturnas desabrochavam, exalando um perfume suave. Havia bancos de madeira simples ao longo da margem, posicionados estrategicamente para que os visitantes pudessem contemplar a beleza da água e do céu estrelado.

Ellie finalmente parou, soltando a mão de Damien e deixando escapar um suspiro. Ela caminhou até a margem do lago e sentou-se na grama macia, abraçando os próprios joelhos.

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Damien permaneceu de pé por um momento, estudando o ambiente ao seu redor. Era diferente de qualquer lugar que já tivesse visto. O submundo era sombrio e opressivo, enquanto esse lugar era calmo, vibrante e cheio de vida. A luz da lua, refletida no lago, parecia quase acolhedora, algo que ele não estava acostumado a sentir.

Depois de alguns segundos, ele caminhou até Ellie e sentou-se ao seu lado, mantendo uma distância respeitosa.

— Esse lugar... é estranho. — Damien quebrou o silêncio, observando a água. — Não é como o resto da cidade.

Ellie sorriu de canto, sem tirar os olhos do lago.

— Eu costumava vir aqui quando era criança. É um dos poucos lugares que ainda me fazem sentir... em paz.

Damien arqueou uma sobrancelha, intrigado.

— Paz? Parece algo que os humanos buscam, mas raramente encontram.

Ela riu suavemente, mas havia um toque de melancolia em sua risada.

— Você tem razão. Paz é algo raro. Mas aqui... por um momento, eu consigo esquecer o resto do mundo.

Damien observou Ellie mais de perto. Seu sorriso era pequeno, quase triste, e ela parecia mais vulnerável ali, longe das luzes e do barulho da boate. Pela primeira vez, ele viu algo diferente em seus olhos. Não era escuridão pura como antes, mas um traço de nostalgia, talvez até arrependimento.

— Por que você me trouxe aqui? — ele perguntou, sua voz baixa e direta.

Ellie demorou alguns instantes para responder. Ela jogou uma pequena pedra no lago, observando as ondulações na água antes de falar:

— Porque você viu através de mim. E achei que você merecia ver a parte de mim que nem todos enxergam.

Damien não respondeu imediatamente. Ele olhou para o lago, as ondulações se dissipando lentamente, e se perguntou se aquela mulher tinha mais a esconder do que ele inicialmente imaginara.

O silêncio entre eles não era desconfortável. Era um silêncio que carregava peso, como se as palavras não fossem necessárias naquele momento. O brilho da lua iluminava o lago, enquanto um vento suave fazia as folhas das árvores sussurrarem.

Damien inclinou-se para trás, apoiando-se nos braços enquanto continuava observando a paisagem. Pela primeira vez desde que deixara o submundo, ele sentiu algo próximo de tranquilidade. Talvez os humanos fossem realmente estranhos, mas, naquele lugar, havia algo que ele não podia negar: uma beleza genuína e efêmera que nunca teria encontrado em sua antiga casa.

Ellie o observou por um momento, seus olhos carregando uma dor profunda. Então, quebrou o silêncio com uma voz carregada de tristeza e angústia.

"Você estaria disposto a ouvir minha história? É a única forma que tenho de responder ao que você disse antes."

Damien a encarou, seus olhos intensos cravados nos dela. Ajustando sua postura, ele respondeu sem hesitar:

"Sim, estou disposto."

Ao ver a seriedade nos olhos dele, Ellie esboçou um sorriso tímido, o primeiro sorriso genuíno que havia dado em muito tempo.

"Minha história começa antes mesmo de eu nascer..." Ela começou, sua voz agora mais baixa, como se cada palavra pesasse em sua alma.

"Minha mãe era uma mulher incrivelmente bela. Não era só sua aparência; havia algo nela que atraía as pessoas - força, coragem, um brilho que parecia vir de dentro. Homens a admiravam e a cortejavam em todos os momentos, mas ela lidava com isso com graça e firmeza, nunca se deixando abalar."

Ellie fez uma pausa, seus olhos se perdendo na memória.

"Mas então ela conheceu alguém diferente, um semideus. Ele era encantador à sua maneira, mas havia algo obscuro nele, uma obsessão. Ele a desejava de forma doentia, tentando conquistá-la a qualquer custo. Só que minha mãe... minha mãe já tinha dado seu coração a outro homem meu pai. Ele era um homem comum, mas para ela era tudo. Juntos, construíram um amor que não precisava de divindades ou poderes, apenas de respeito e lealdade."

A voz de Ellie começou a vacilar.

"Quando o semideus descobriu que minha mãe estava grávida do homem que ela amava, ele ficou furioso. A obsessão dele virou algo monstruoso. Minha mãe e meu pai tentaram de tudo para se proteger. Buscaram ajuda até de outros semideuses, mas o preço que cobraram foi alto demais, e ainda assim, não foi suficiente."

Ela respirou fundo, como se reunir forças para continuar fosse uma batalha interna. "Meses se passaram, e eu finalmente nasci. Era para ser um momento de felicidade, de renovação, mas foi aí que eles baixaram a guarda. Foi quando ele nos encontrou. O semideus não era apenas poderoso, ele era cruel além do que palavras podem descrever."

Ellie apertou as mãos, a raiva e a dor transparecendo em sua expressão. "Ele matou meu pai na nossa frente, de forma lenta e brutal, fazendo questão de prolongar o sofrimento dele. Mas com minha mãe... ele foi ainda pior. Ela, que sempre foi tão forte, tão determinada, enfrentou horrores que ninguém deveria enfrentar. Ele destruiu sua beleza, arrancou seus dentes com socos, quebrou seu espírito com palavras e atos. Ele a violentou, física e emocionalmente, por três dias seguidos. Ela lutou, Damien. Mesmo em meio à dor, ela tentou proteger o que restava de sua dignidade. Mas ele não parou até arrancar tudo dela."

As lágrimas começaram a escorrer pelo rosto de Ellie, mas sua voz, embora embargada, continuou firme. "E então, quando finalmente se cansou dela, ele a matou. Cortou a cabeça da mulher mais forte que eu já conheci, que não merecia nada do que ele fez. Ela morreu desfigurada, mas ainda assim era minha mãe. Minha heroína."

Ela fez uma pausa longa, enxugando as lágrimas, mas outras imediatamente tomaram o lugar das que secaram. "E quanto a mim? Ele me poupou. Um ato de misericórdia, você diria? Não. Ele me deixou viva com uma maldição, correntes invisíveis que me amarram a ele. Essa maldição me faz lembrar de tudo. Eu era apenas um bebê, mas cada grito, cada lágrima, cada detalhe daquele dia está gravado na minha mente. Um peso que nunca me deixa respirar em paz."

Ellie olhou para Damien por um momento, tentando recompor-se. "Desculpe, não sei por que estou contando tudo isso para um estranho. Talvez porque você seja bonito demais para ignorar." Ela sorriu, um sorriso frustrado, enquanto mais lágrimas escapavam.

Damien a observou em silêncio, seus olhos inabaláveis, esperando que ela continuasse. Ellie notou, e pareceu reunir mais forças para concluir.

"O semideus roubou tudo de mim, Damien. Minha família, minha felicidade, minha liberdade. Não consigo sentir alegria, nem com aquelas pessoas que chamam a si mesmas de meus amigos. Tudo o que faço é fingir. Fingir que estou bem, que sou alguém radiante e feliz. Mas por dentro... não existe nada. Apenas uma escuridão que eu nunca consegui escapar."

Ao terminar, sua voz quebrou de vez. Ellie abaixou a cabeça, limpando as lágrimas novamente, como se estivesse envergonhada por mostrar tanta vulnerabilidade.

Damien continuou imóvel, processando cada palavra que ela disse. Ele estava prestes a expressar sua curiosidade em cima dela, porém seu pingente brilhou sutilmente, fazendo-o mudar de ideia.

Dentro dele, algo havia se mexido. Talvez fosse compaixão. Talvez fosse admiração pela força que ela ainda possuía, mesmo que escondida sob a dor. "Ellie," ele disse, finalmente, sua voz firme e calma, "você sobreviveu. Isso já faz de você alguém extraordinário.”

Damien permaneceu em silêncio por um momento, os olhos fixos em Ellie, como se enxergasse além de sua carne e ossos, além da dor que ela carregava. Quando ele finalmente falou, sua voz era baixa, mas carregava um peso avassalador, como o eco de um trovão distante.

"Ellie," ele começou, cada palavra parecendo vibrar no ar ao seu redor, "você me contou uma história de dor, perda e injustiça. Mas há algo que precisa saber. Eu não sou apenas um estranho que cruzou o seu caminho. Eu sou Damien, o Deus da Morte... e da Vida."

Ao pronunciar essas palavras, o ambiente ao redor deles mudou. O mundo parecia parar. O vento cessou, as árvores ficaram imóveis, e o ar ficou denso, como se a própria natureza reconhecesse a presença de algo imensurável. Damien deu um passo à frente, e em sua mão materializou-se um objeto singular: um pequeno cálice feito de um metal negro, adornado com runas vivas que brilhavam em tons ora dourados, ora prateados.

"Você está diante de uma escolha, Ellie. E como o deus que rege o fim e o renascimento, eu lhe concedo o poder de decidir o que vem a seguir."

Ellie o olhou, os olhos arregalados pela surpresa. Mas havia algo em sua presença que a impedia de questioná-lo. Era como se cada palavra que ele dissesse fosse incontestável, a própria verdade do universo.

Damien ergueu o cálice, sua voz se tornando ainda mais grave e reverberante.

"Este cálice contém dois destinos. Um é a morte definitiva. Se você beber deste lado..." Ele girou o cálice, e as runas douradas começaram a brilhar intensamente. "Seu sofrimento acabará. A dor, a escuridão, a maldição – tudo será silenciado. Você será libertada de sua existência atormentada."

Ele fez uma pausa, seus olhos sombrios cravados nos dela, antes de girar o cálice novamente. Agora as runas prateadas pulsavam com uma luz suave.

"Mas, se beber deste lado, você renascerá. Não como a Ellie de agora, mas como uma nova versão de si mesma, com um propósito. Suas correntes serão quebradas, mas isso exigirá de você algo que muitos não têm: coragem para enfrentar a dor e transformá-la em força."

Ellie engoliu em seco, sentindo a gravidade da escolha. Sua mente era um turbilhão. As palavras de Damien, a presença dele, tudo parecia surreal, mas ao mesmo tempo... absolutamente real.

"Por que... por que você está fazendo isso por mim?" ela perguntou, sua voz quase um sussurro.

Damien inclinou a cabeça, o cálice ainda seguro em sua mão, sua expressão tão neutra quanto a própria morte.

"Porque eu vejo algo em você, Ellie. Você é mais do que a dor que carrega, mais do que o sofrimento que enfrentou. Mas se quiser desistir, eu não a julgarei. Meu papel não é decidir por você, mas conceder-lhe a escolha que poucos têm: o poder sobre seu próprio destino."

Ellie olhou para o cálice, suas mãos tremendo. As palavras de Damien ecoavam em sua mente. Morte definitiva ou renascimento? Fim ou um novo começo? Ela sentiu as lágrimas retornarem, mas dessa vez, não eram apenas de tristeza. Eram de medo... e de esperança.

"Eu... eu não sei o que escolher," ela murmurou, a voz fraca.

Damien deu um passo à frente, aproximando o cálice dela, sua voz mais suave agora.

"Não há pressa. Esta decisão é sua, e só sua. Mas saiba disso: mesmo na escuridão mais profunda, há uma centelha de luz, esperando para ser encontrada."

O ambiente continuou parado, o mundo parecendo segurar a respiração, enquanto Ellie encarava o cálice, sabendo que o momento de sua escolha definiria não apenas seu destino, mas quem ela se tornaria dali em diante.