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ESCOLHAS DO CORAÇÃO

- Ishi aguni, repeti para o meu amigo que comigo estava no porto. Eu vou ganhar o grande prêmio, e vou ser muito rico. Você vai ver!

- Acho que você está sonhando, meu amigo. Nunca ninguém ganhou.

- Mas eu vou!

Então entramos no navio e fomos sem rumo. Descemos na costa de um outro país e subimos para a cidade. Em uma larga rua deserta vimos um galpão de máquinas. Conferi que tudo estava muito bem cuidado.

Vi uma caixa de ferramentas. Com interesse peguei uma das ferramentas e a testei. Vendo seu estranho funcionamento me perguntei para que ela serviria. Ao tentar fechar a tampa tive que fazer um pouco de força, porque ela estava empenada. Decidido a peguei e me afastei. Então parei alguns metros à frente, me sentindo mal pelo que planejava. Voltei e a devolvi para o local exato em que a pegara. Vi parafusos no local, mas eu queria aquela caixa. Saí e perguntei a um passante onde era a casa do dono da oficina, e ele me explicou. Quando íamos na direção de sua casa encontramos uma garota, com quem logo fizemos amizade. Meu amigo ficou encantado com ela. Andamos pela cidade a esmo, até que resolvi voltar ao assunto da caixa.

Parei em frente à casa, que ficava no alto de um morro. A rua que descia era toda tomada, do lado direito, por uma cópia da Disney, com várias construções copiadas.

Sorri.

Então me virei para a porta da casa do proprietário da oficina e bati na porta, e nada. Bati outra vez, tendo o mesmo resultado anterior. Foi aí que a moça começou a dar murros esparsados na parede, o que passei a fazer também, mesmo achando aquela forma estranha para se chamar alguém. Então a janela do segundo andar se abriu e uma senhora surgiu. Ela tinha o sorriso mais lindo que eu já vi, e fiquei maravilhado com ele. Sorri abertamente, momento em que a porta se abriu.

Um garotinho de belo sorriso desceu em direção à cópia da Disney, enquanto um senhor magro surgiu, depressa se pondo a tentar arrumar e aprumar o sofá. Olhei a sala e conferi que ela estava suja, e pensei em até mesmo trocar sua limpeza pela caixa de ferramentas.

Nos preparávamos para entrar quando um amigo da mulher que nos acompanhava surgiu. Ela o apresentou e conversaram por algum tempo, até que ele propôs para que fossemos todos caminhar até o pé do morro. Aceitando a sugestão nos despedimos da mulher de belo sorriso e do homem gentil. Lentamente descemos em direção à Disney. O rapaz parecia muito interessado nela, o que me entristeceu, porque eu também estava. Então, mais à frente, ele pediu para ela ir embora com ele.

Ela viu minha tristeza.

O rapaz também percebeu. Com ar de deboche mal disfarçado riu feliz.

- E você, ele perguntou, é tão rico quanto eu?

- Vou ser, eu falei, mostrando-me um pouco envergonhado.

Ele me avaliou divertido. Então, subitamente, seus olhos se iluminaram.

- Ara, Ishi aguni? Sério?, ele riu mostrando desprezo.

Na hora, com uma dor imensa no peito, eu vi a decepção nos olhos dela, como se eu a estivesse obrigando a escolher o outro. Vendo que ela estava indo embora meu amigo segurou suas mãos, e chorou. Ele tinha uma alma linda demais, e ele a amava como uma amiga. Ela, emocionada, disse que sentia muito pela dor dele, e que temera por isso. Mas ela tinha que ir.

E se foi.

Perdidos e sem rumo voltamos para a casa dos donos da oficina, onde fomos bem recebidos.

- Então a mocinha se foi, não?, perguntou o velho.

- Se foi, falei, mostrando toda a decepção com a vida.

- Escolhas, algumas que causam muitos sofrimentos a alguns mais. Temos que respeitar as escolhas feitas, e nos alegrarmos por elas, não?

- Nos alegrarmos?, estranhei.

- Claro, meu triste amigo. Afinal, é bom quando as pessoas decidem por si mesmas, não é? Cada um construindo seu caminho. Mas, e quanto a vocês, o que os trouxe aqui?

- Eu ia te roubar, mas resolvi negociar, contei, a alma tão desanimada que pouca importância tinha em eu me expor.

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A mulher deu um risinho baixo e discreto. Então levantou os olhos para mim, e havia carinho neles.

- Ah, sim, a caixa, ela manteve o sorriso compreensivo e bondoso. Ela não tem utilidade nenhuma, e as ferramentas que estão lá não servem para nada. Quando elas são roubadas ele faz outras iguais e põe de volta.

- Ora, sério? Mas, para que serve isso?, estranhei confuso.

- Para me trazer as boas almas, ele contou. Decisões sempre trazem retornos.

- Então é certo que o meu retorno foi um desastre - murmurei.

- As decisões que nos afetam não são sempre somente as nossas. Os outros são tão divinos quanto nós, e suas decisões contam, ele falou com a voz de um velho sábio.

À noite sonhei, e eu estava com dois nichos bem trabalhados e arabescados à minha frente, como se fossem ninhos. Eu tinha que escolher em qual deles eu iria me acomodar. Um era mais suave, e eu vi nele sorrisos e gentilezas, e uma abundância de coisas, principalmente de coisas do coração. O outro ninho era de sensações mais fortes, de sensações um pouco grotescas. Mas era bem claro que tinha poder e um certo isolamento. Era riqueza, eu via. Após muito pensar me acomodei no que sentia ser o meu desejo.

No dia seguinte nos despedimos e nós fomos embora. Em resumo, eu ganhei algum tempo depois o prêmio Ishi Aguni e me tornei extremamente rico. Criei companhias e fiz mais dinheiro ainda, mas...

O tempo que passou foi-me expondo a mim mesmo, e tornando visível todo o vazio em que eu estava mergulhado.

Então, um dia, tomado de um estranho cansaço em minha alma, dei a maior parte dos meus bens e pertences para o meu amigo e comprei uma pequena chácara na beira do mar, onde construí uma pequena casa e fiquei lá por um bom tempo, até que me lembrei deles.

Então voltei, e eles estavam como antes, somente o rapaz tendo crescido um pouco mais.

- Ola, ola... O nosso amigo voltou, me cumprimentaram felizes, como se eu houvesse ido embora no dia anterior. Então disseram que sua filha voltava para casa, quando ouvimos batidas na parede. Quando ela surgiu na porta não pude deixar de sorrir, porque nela estava o mesmo sorriso impressionante e cheio de luz da mãe. Nos tornamos grandes amigos acho que na mesma hora.

- Então o meu amigo aqui ficou rico, o velho perguntou, um sorriso brincalhão no rosto.

- Um pouco, mas...

- Mas se sentiu ainda mais pobre não?, sorriu a menina, o ar compreensivo e, estranhamente, orgulhoso.

- Acho que foi isso mesmo, confirmei.

- Isso porque não era o completo, não é mesmo?, o mãe completou.

- Não, não era, confirmei novamente.

- Escolhas, meu amigo. Escolhas novamente, falou o pai. Tal e qual conversarmos já algumas vezes. Muitas das escolhas são escolhas vazias, que infelizmente têm o poder de ferir a alma, que machucam em nome de coisas vazias. A alma não procura posse de coisas, mas sim coisas de alma. Escolhas e aprendizado, ele riu satisfeito. Como é bom saber que meu amigo aprendeu.

Olhei para eles e sorri também, sentindo um certo alívio em minha alma, porque eu não fora julgado por eles.

Alguns dias depois a menina que me abandonara voltou, um pouco mais triste, mostrando uma mágoa silenciosa. Ela agora tinha um filho, que era belo e feliz. Ele devia ter uns seis anos. O pai os deixara ir quase sem nada, eu soube. Não mandava dinheiro, e os ignorava completamente.

Tal como a mim aquela família os acolheu também.

Um dia, na mesa do café eu ouvi o menino perguntar num cochicho para a mãe se era eu que devia ter sido o seu pai. Ela fez um discreto sinal com a cabeça, e ele sorriu feliz, como sorriu a família que nos acolhera.

Ela então arrumou emprego na Disney como cinderela, como também seu filho, que se divertia fazendo papel de Mickey no estande ao lado do dela.

Como eles ganhavam o suficiente, logo estavam arrumados na cidade, em uma casa pequena e aconchegante.

- A alma está lá, intocada, me disse meu velho amigo enquanto observamos de longe a performance da cinderela. O corpo sofreu, há rugas de dor e autopunição pelas escolhas feitas, mas a alma está lá... Tal qual a sua, meu amigo.

Eu voltei os olhos e o observei com cuidado. Então vi ao seu lado o mesmo sorriso bondoso e o compadecido da filha.

- Apenas deixe ir, meu atormentado amigo, aconselhou a menina com um sorriso maravilhoso no rosto.

Inspirei demoradamente.

- E como faço para ver isso, para deixar a dor para trás?

- Isso é muito fácil, sussurrou o pai. Avalie sua dor e a ame, e então, apenas a deixe ir assim que agradecer o que te ensinou, aconselhou batendo em meu ombro, e entrando os dois na casa.

Me virei e olhei para dentro da casa, e os observei aquela família maravilhosamente feliz. Foi então que vi o engano em que estivera imerso: o eixo principal da casa sempre fora o meu silencioso amigo, o mago que enxergava e se preocupava com as almas. Sorri e voltei minha atenção para a cinderela e para o seu filho.

Fechei levemente meus olhos e acalmei minha respiração e fui trazendo as pequenas mágoas que tinha. Como se fosse uma lufada de vento fui deixando cada uma delas ser varrida gentilmente, enquanto agradecia as lições que me deram. Mais confiante, lentamente fui fazendo isso com cada coisa que me angustiava: as observava, avaliava, agradecia e deixava a brisa levar embora, até que, finalmente, a trouxe.

Devagar coloquei em evidência a dor de ter sido deixado pela mulher que eu queria, que se decidira se vender. Se vender, cismei sentindo meu coração pulsar, trazendo uma pequena voz que, agora via, sempre me recusara a ouvir: que direito tinha eu de julgar, que direito eu tinha de julgar as escolhas das outras pessoas? Quantas escolhas tortuosas eu também fizera, que eu tanto desculpava?

Devagar trouxe toda a dor de ter ficado sem ela, e com isso fiz a mesma coisa que fiz com as dores anteriores, tratando todas com o mesmo respeito, avaliando que eram lembranças, e que a força com que eu me deixava atingir era a que eu mesmo fornecia. Então, com um sorriso, também a deixei ir.

No exato momento em que fiz isso e senti minha alma aliviada e luminosa abri meus olhos e dei com ela, no estante da cinderela, parada, me olhando. Assim que viu que eu a observava ela levantou alegremente os braços, me cumprimentando feliz. Havia em seu rosto um sorriso enorme. Leve e feliz levantei meus braços também, totalmente feliz.

Foi então que vi que tudo estava bem, de novo.