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TREINO

Os movimentos eram quase mecânicos; quase, porque eu sempre te via.

Sorri ao ver os nossos pais se ajeitarem na varanda, na casa do Raul, na roça. Eles pareciam felizes, um casal ameaçando o outro. Iam jogar cartas, sorri ao ver meu pai colocar um pacote sobre a mesa da varanda. Abri mais o sorriso e levantei o braço para eles, enquanto se serviam na mesa arrumada com bolos, chás, café, sucos e pães.

Nós estávamos no gramado bem cuidado, na frente da casa.

Ema sorria divertida, vendo-os com cara de moleques lá na varanda.

- Agora, meu amigo, esqueça eles – ela falou se virando para mim, seu rosto agora sério e compenetrado. – Iyu Kumite? – sugeriu.

- Sério? Combate livre? – me preocupei, arrumando meu quimono.

- Sim... Medo de se machucar, meu bem? – riu debochada, também ajeitando sua vestimenta.

- Medo de machucar você, Ema – falei sério.

- Pois fique tranquilo. Não vai conseguir. E, caso consiga, então bem me fará, por saber que preciso ser ainda melhor. Vamos, dê o seu melhor, Nóia... – então ela riu abertamente. – Legal, gostei de chamar você de Nóia... – Riu ainda mais.

- Então está bem. Sem clemência – falei, agora sério, prestando atenção nela.

Eu a observei, satisfeito que seus olhos se mostravam diferentes. Sorri e acenei que aceitava o Iyu Kumite. Ela sorriu confiante em resposta.

Eu fiquei ereto e relaxado, a respiração leve e suave, observando cada movimento que ela preparava, tentando antecipar suas intenções.

E ela veio com fintas e uma sequência violenta e rápida de golpes. Havia poder em seus golpes, e uma inclemência que me deixou um pouco assombrado. Já treinávamos quase duas vezes por semana, mas neste dia ela estava com força total. Desconfiei que hoje ela estava rememorando o que lhe acontecera. Avaliei com bastante cuidado e resolvi que assim estaria muito bem. Ela precisava deixar a raiva fluir para, assim, passar a encarar o ocorrido mais livremente. No entanto, eu estava bem ciente de tomar todo o cuidado para não me machucar, como ter o cuidado de não dar uma resposta de impulso que poderia feri-la.

A sequência inicial foi uma sequência absurda de Tsukis potentes e bem direcionados, tentando me acertar do estômago até a cabeça. Mas eu sabia que ela estava me dirigindo, me distraindo. E eu estava certo. De repente começaram golpes diversos, de Hiji até uma sequência terrível de Keris.

No começo ela me acertou dois golpes dolorosos, mas não muito. Ela estava me avisando que era para valer, e que eu deveria estar em prontidão. E assim eu fiz, me esquivando e desviando alguns de seus golpes, boa parte deles usando-os contra ela mesma.

Com um grito ela avançou, a sua perna dirigida para o meu queixo.

Me afastei centímetros e, segurando sua perna, a puxei e a derrubei, forçando que ela batesse com força no chão.

Num salto ela se levantou, o ódio em seu rosto, que subitamente aliviou, deixando apenas a concentração do combate.

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Foi quando nossos pais gritaram de alegria que aliviamos o combate.

Paramos e olhamos onde eles estavam, e não pudemos deixar de rir. Eles agora jogavam paciência, mantendo um olho no jogo e outro em nós.

Como se fosse acordado, eles levantaram as mãos em cumprimento, como se dissessem que estava tudo bem.

Rimos mais ainda. Nos viramos um para o outro, nos cumprimentamos e nos abraçamos, tomando o rumo da casa.

- Você me acertou algumas vezes. Doeu. Anotou? Doeu – reclamei.

- E você que quase quebrou minha perna e quase deslocou o meu ombro? Acho que vou mancar e sentir dor quando levantar o braço por vários dias – reclamou por sua vez.

- Ara, só uns dois dias. Eu, olha só: vou ficar com o rosto inchado por vários dias, além do roxo que já começou a aparecer aqui do lado – falei, mostrando o meu lado direito.

- Pois mostre com orgulho, meu bem. Marcas de guerra – riu, se apertando em minha cintura.

- Então, Ema, resolveu se vai participar do campeonato de Karatê? – perguntei, fingindo dor no corpo, do que ela riu satisfeita.

- Estou esperando você se decidir, se vai participar do campeonato de kung fu – espetou. – E você até poderia entrar na de aikidô, não poderia?

- É, eu poderia. Mas, o aikidô vai apenas como demonstração – lembrei.

- É, está certo. Noah, até que faixa você chegou no aikidô?

- Bem, eu estou no 1º KYU, a faixa marrom – expliquei.

- Está? – ela pareceu surpresa. – Achei que você tivesse deixado o aikidô. Não te vejo treinando mais ele, mas só o kung fu.

- Não, fofinha, não parei não. Só diminui. É que eu estou dando mais ênfase ao kung fu – expliquei.

- Então está bem... Então, você vai se inscrever, não vai? Ou vai se registrar para participar da demonstração de aikidô?

- Ah, Ema, não sei não. Treino e luto não para campeonatos, nem para me exibir. Só quero saber e poder me defender, e defender os que amo.

- Por isso está fazendo kung fu também? – perguntou sentando-se no gramado.

- O aikidô tem uma doutrina diferente, você sabe. Ele foca mais na harmonia, no chi, e não em competitividade e violência.

- Mas você, quando treina aikidô comigo, se pudesse me machucaria para valer. Ele também pode ser violento, eu bem sei.

- Pode, pode sim. Mas não é por isso que eu gosto de aikidô. É uma arte que flui. É como um vento que tem a força de um vendaval, é uma dança, é um controle de energia. Apesar das outras artes marciais terem em si uma competição implícita, mas todas declararem uma filosofia de equilíbrio, nesse ponto o aikidô é mais consistente.

- Então, pelo que entendi, nada de participar da demonstração de aikidô, né?

- Sem demonstração – sorri.

- E competição de king fu? – insistiu.

- Estou em dúvida. Na verdade, Ema, não tenho muito interesse.

- Espero que repense isso, meu querido. Que mal há em se divertir enquanto isso? Veja o campeonato por outra perspectiva, como um super treino. Você já está faixa roxa de kung fu, e até hoje não foi em nenhum. Será legal, Noah.

Eu sorri e baixei a cabeça, enquanto caminhávamos. A Ema era bem combativa, e adorava essas disputas. Apesar de ela ainda estar na faixa laranja, já impunha respeito em muitos faixas marrom. Que sabe, suspirei.

- Ah, está bem. Vou pensar, está certo? Ainda tem bastante tempo até encerrar as inscrições. Mas, não tenha muita esperança – brinquei.

- Espero que vá. Tem muita gente que adoraria se bater com você – ela falou.

Inspirei com discrição, sabendo o que os motivava a desejarem se testar comigo. A surra que havia dado no cara que ferira a Ema virara como que uma marca.

- Sério, Ema, vou pensar com bastante carinho, ainda mais sabendo que você está doidinha para me ver apanhando em um dojo - ri baixinho.

- Dando um pau neles, dando um pau neles. Adoro ver você lutando. Você parece dançar, leve, perigoso. Até parece o Ip Man – sorriu. - É muito bom. Mas, então está bem, vou esperar sua decisão... – aceitou, me dando um beliscão e se apertando novamente em mim, enquanto subíamos a escada para a varanda.

Então ela me deu um beijo e ficou agarrada no pescoço do pai, sentado e tentando passar uma carta para a Margarida, o que fez a Ema rir e tossir, escondendo o rosto no ombro do pai.

- Perdedores inocentes – ri quando passei perto dos meus pais, indo para tomar um banho.

- Eles roubaram - ouvi minha mãe falando, enquanto o Raul e a Margarida riam da cara deles.

– Estão levando um banho aqui – ouvi a Margarida satisfeita, debochando dos dois. – Igual você para a Ema – ouvi novas risadas, dessa vez apoiada pela Ema.

- Isso é verdade... Estou todo machucado. Vou querer remédio para dor – ameacei, sumindo dentro da casa.

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