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FAMÍLIA

O tempo corre e as linhas, por mais esticadas que estejam, nunca perdem a forma e a força. É pura verdade que o tempo e a distância não têm poder para isso.

- Uivo – Allenda gritou de alegria, vendo-o surgir da floresta, diminuindo de tamanho enquanto vinha ao seu encontro. Sem pensar correu até ele e o guardou num longo abraço.

Uivo se despoderou rapidamente, envolvendo-a num abraço apertado.

Quando se separaram viram a comitiva em torno, observando com curiosidade a demiana que aguardava ao lado de LuaEscura, um belo sorriso pendurado no rosto.

Allenda suspirou cumprimentando com um aceno amigável LuaEscura e a demiana.

- Pessoal, essa é uma demiana, e seu nome é Arael – Uivo apresentou a demiana, ainda em um abraço abandonado com Allenda.

Sorriu quando a comitiva, feliz, puxou as duas, deixando-os ali apenas abraçados, em silêncio, um sentindo o calor e a alma do outro.

- Vamos... Esses dois agora vão ficar assim por um bom tempo hipnotizados um com o outro – falou Itanauara acompanhando as duas para o acampamento. – E você, demiana, que bom que veio...

- Ora, e por quê? Me esperavam?

- Sabíamos que alguém se aproximava. Sabe como é, tempos difíceis. Sentimos LuaEscura, e vimos que tudo estava bem. Porém, não sabíamos de você. Mas, se veio com essa dêmona terrível, então deve ser de muito valor – riu.

- O que foi, Uivo? – Allenda perguntou, assim que viu que todos se afastavam, ao perceber uma sombra de tristeza nele. Não conseguiu evitar sentir como que um nó no coração. - Aconteceu alguma coisa? – perguntou, puxando-o para baixo, obrigando-o a sentar-se ao seu lado.

- Já ouviu falar de um demônio chamado Mercator?

- Acho que todos já ouviram. Alguma coisa sobre um demônio solitário, que se deixado em paz não incomoda ninguém – falou.

- Esse mesmo. RoupaSuja e BraçoDePedra foram tentar conversar com ele. Acho que pensaram que poderiam ajudá-lo.

Allenda franziu os cenhos, já desconfiando do que acontecera. Seus olhos pesaram, relembrando os dois, e como pareciam muito amigos, e de como se alinharam com perfeição à comitiva.

- Eles se foram? – perguntou num sussurro esmagado.

- Sim – Uivo murmurou. – Mercator os matou. Acho que Mercator nem mesmo se deu conta do que fez... – sofreu.

Allenda levantou os olhos pensativos para as nuvens.

- Morreram tentando ajudar... Foi uma morte mais nobre que a de um guerreiro – suspirou.

- Sim, sem dúvida. E Mercator foi procurado por um outro ainda, de quem também deu cabo.

- E quem foi esse?

- Meu avô. Ao que parece, ao desistir de me perseguir, foi ter com Mercator. Foi morto quase que no ato.

- Esse morreu como um guerreiro, temos que admitir – falou, sentindo em seu peito um hausto de ar renovado. O futuro agora tinha um fator complicador a menos. – Esse Mercator é louco, irascível, de quem nem se pode aproximar?

- Pelo que soube dele, desde a segunda era ele está assim, apenas cismando dentro de si mesmo. Pelas lendas antigas ele matou um arcanjo, depois de torturá-lo por um bom tempo. Dizem que ele é mais poderoso que Trevas ou Escuridão...

- Nossa, então é bom a gente se manter longe dele...

- Sinto que há algo mais quanto a ele, Allenda. Acho que ele pode ser um peso na balança. Parece que os demônios o querem do lado deles, mas os anjos também. E aposto que os anjos são os que têm mais possibilidades.

- Ora, e por quê?

- Arael... LuaEscura disse que ela é para aquele demônio o que você é para mim...

Allenda abriu um enorme e grandioso sorriso.

- Ora, e o que eu sou para você, demônio?

- Luz, Allenda, um maravilhoso facho de luz na escuridão.

- Ai, ai... Vamos. Agora com certeza eu preciso conhecer essa demiana – riu, puxando Uivo para junto dos outros.

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Quando Uivo e Allenda se juntaram à comitiva elas já estavam entrosadas com todos, que sorriam e se divertiam contando casos.

Durante um bom tempo ficaram todos juntos, conversando. Foi quando Uivo contou para todos que seu avô havia sido morto, e que BraçoDePedra e RoupaSuja também haviam sido, e os três pelo mesmo demônio chamado Mercator, o que causou enorme comoção em toda a comitiva. Então Uivo falou da relação especial que Arael tinha com esse demônio em particular.

Todos sorriram, ao perceber nas entrelinhas que devia ser a mesma relação de Uivo com Allenda.

- As coisas estão ficando muito boas, assim tão emaranhadas, não estão? – riu Ybynété feliz.

- É isso aí, gigante – concordou LuaEscura encarando o mapinguari.

- Não é mesmo? – falou Ybynété, dando um sorriso imenso para a dêmona, que o observou com mais cuidado.

Como a noite já se anunciava a fogueira foi logo acesa. Carnes foram postas nas cuias, e água e suco de amoras recém-colhidas em cumbucas, do que se serviam todos por meio de pequenas cumbuquinhas.

- Allenda... – Arael falou o nome lentamente, como se o saboreasse, procurando ligações, os olhos luminosos na flor-do-mato. – Sabe, eu sou uma entrante, e sei que sabem bem o que isso representa. Então, em mim tenho lembrança de dois seres, o que eu era, e algo das lembranças do corpo que ficou.

Allenda se descolou um pouco de Uivo, o corpo dobrado em direção à demiana, a atenção toda em Arael. Todos os outros, até mesmo a juguena, observavam as duas, totalmente curiosos. O silêncio se manifestou e permaneceu, aguardando o que estava acontecendo.

- Já nos encontramos? Qual era o seu nome?

- Meu nome era Éfrera...

Allenda se levantou de súbito, os olhos presos na demiana, que também se levantara.

Uivo examinou rapidamente as duas, temendo que tivesse trazido para o acampamento alguma antiga inimiga de Allenda.

Sua alma relaxou de súbito quando Allenda se aproximou rapidamente da demiana e a abraçou com força. Havia energia ali, e muita alegria.

- É você mesma, Éfrera? Não está de brincadeira? Quando te vi senti algo que reconhecia, mas não conseguia definir. É você mesma?

- Sou eu mesma... Eu não reconheci o seu nome quando LuaEscura me contou sobre vocês. Sabe como é... Como entrante as coisas ficam bem confusas. Mas, quando a vi, algumas coisas começaram a vir à tona, e eu julguei que te conhecia de algum lugar, de algum tempo. E agora, as coisas estão ficando mais claras – sorriu, mostrando-se mais luminosa. – Ah, Allenda, não imagina quanto estou feliz por te encontrar.

- E eu então? – falou se sentando e puxando a amiga para baixo. – Uivo, essa é Éfrera...

- Eu já ouvi, meu bem...

- Sim, mas é Éfrera – repetiu, apontando para ela as duas mãos espalmadas, um sorriso abandonado e surpreso no rosto. – Me desculpem – riu, os olhos se voltando para a amiga.

- Posso contar, Allenda?

- Claro, claro que sim – concordou Allenda, se levantando e tomando acento ao lado de Uivo. Alegre tomou sua mão entre as suas enquanto seus olhos se postavam sobre Éfrera.

- Foi há muito tempo. Me desculpem se a estória ficar um pouco confusa, porque eu ainda estou lembrando. Mas, naqueles dias, eu soube depois, Allenda caçava os que haviam atingido sua família – contou, a voz tomando uma suave nota de dor e um pouco distante, por se esforçar no lembrar. - Eu estava longe, muito longe daqui. Eu caçava demônios que estavam destruindo várias aldeias ao Norte. Quando dei uma passada sobre uma área da floresta eu vi um poder que me preocupou. Era um poder diferente, feito de ilusões e manipulações. Quando dei uma nova passada eu vi um magnífico ser de fogo tomado de ira se jogando contra eles. Eu sondei suas mentes e vi tudo o que enviavam contra esse ser, mas ele dava de ombros pelas fantasias que lhe lançavam, e destruiu cada um deles.

> Eu, desavisadamente, desci à sua frente, e ela, sem pensar, me atacou com uma ferocidade terrível. Eu me defendia, e gritava que não queria o seu mal. Mas ela, julgando que eu era a ilusão de um daqueles que ela caçava, não parava. Então me lancei para o alto, e tive muito trabalho para escapar de suas flechas de fogo. Então, num descuido, ela já estava num galho bem à minha frente, uma seta de fogo entre os meus olhos. Eu me preparava para me defender quando vi que ela segurava a seta. Resolvi arriscar e ficar em silêncio, flutuando na frente dela.

> Então, sem nada dizer, ela recolheu a seta e saltou para o chão, e simplesmente começou a se afastar pelo meio das árvores.

- Eu não vi o mal nela, e resolvi ir embora – Allenda tomou a conversa para si. – Eu tinha sentido mais alguns potaraobis negros à frente, e resolvi ir atrás deles. Mas ela desceu na minha frente de novo, e no ato me lembrei de sussurros nas sombras, que diziam de uma demiana que combatia demônios por aqueles lados. Então saltei para um galho e me sentei, e logo ela estava ao meu lado. Conversamos durante bastante tempo.

- Por anos ficamos por lá, caçando, limpando, protegendo.

- Senti muitas saudades suas, Éfrera. Quer dizer, Arael.

- A grata surpresa é minha, Allenda. É muito bom rever velhas amigas. Passamos grande bocados, não foi?

- É sim... Por várias vezes achava que não iriamos conseguir – riu satisfeita. – E, ainda mais agora, porque me disseram que somos muito parecidas – sorriu.

Arael a olhou confusa. Então, ao examinar a cara de Uivo, não pode deixar de sorrir.

- Ah, não... Não é assim não, Allenda. LuaEscura está alucinando.

- Tomara que seja assim, Arael – falou com suavidade, o que fez Arael sorrir feliz. – E esses são meus amigos – e um a um apresentou os membros da comitiva para Arael, falando com carinho alguma coisa sobre cada um deles, que a cada apresentação se tornava mais alegre e feliz. Então, na noite que escoava, contaram, todos, algumas das aventuras que tiveram. Até mesmo a juguena, esquecida do demônio que era, foi pega rindo muitas vezes. No começo contara algumas vezes em que torturara ou matara por prazer, mas logo viu que a temática estava errada, e se ateve mais às vezes em que, sem que percebesse, confrontara o mal. E isso a fez ficar pensativa, vendo que, por mais estranho que fosse, que esse ir contra a escuridão fora a grande maioria das vezes.

Assim que percebeu isso suas nuvens se foram e, sem perceber, ela se mostrou, para surpresa de todos, como realmente era.

Ali, junto deles, estava uma mulher, o corpo todo de um cinza brilhante, mavioso e elegante, a esclera branca como uma louça, a íris em um tom de abóbora. Ela estava com uma tanga e o busto estava coberto por roupas de névoas, que ficavam esvoaçando pelo seu corpo.

- Nossa, isso é que é uma dêmona bonita... – riu Ybynété, o que foi confirmado pelos suspiros dos outros. Allenda e Itanauara riram, vendo como LuaEscura se tornara um pouco mais tímida, o que foi uma surpresa para todos.

Uivo suspirou fundo e demorado, o sorriso abandonado no canto dos lábios, deixando-se perder naquelas pessoas, nos risos que subiam nas fagulhas da fogueira. Como poderia ter imaginado que a vida iria se mostrar assim?