Antes eu dava um nome para essa saudade no meu peito, e a chamava de deus, ou em alguns momentos de família. Agora descobri que ela ainda não possui um nome, até que você me diga o seu.
I
Arael ficou martelando isso em sua cabeça, como as pessoas da comitiva de Adanu pensavam sobre ela e Mercator, como pensavam em Allenda, a guerreira dura, tão maluca pelo seu demônio, que já mostrara inúmeras vezes ser capaz de absurdos para protegê-la.
Riu descrente de que isso pudesse ser replicado, ainda mais com ela e Mercator.
Na madrugada que findava se deixou quieta, sentindo o ar fresco e agradavelmente frio.
Estava assim tranquila até que o sentiu ao longe, quieto. A mente dele parecia um pouco mais diferente, como se houvesse alguns nódulos de paz entre os pensamentos de questionamentos que era seu comum.
Então foi até ele, descendo a alguns metros de distância, dando tempo para que ele a sentisse, para que se lembrasse.
Sentou-se e olhou para além, para o horizonte, e viu que a barra do dia surgia, anunciada por uma faixa abóbora que delineava as montanhas e delimitava o céu ainda escuro.
Foi só quando o viu se virar e observá-la, e conferir que havia tranquilidade no seu olhar, que foi se aproximando lentamente, sentando-se cada vez mais perto.
Ele estava sentado num promontório, os pés imensos no vazio descomunal. O vento açoitava suas vestes, com o que ele não mostrava se importar.
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Ela sorriu, vendo que ele aguardava o alvorecer.
Sem qualquer palavra Arael sentou-se na beira do penhasco bem mais perto dele, e deixou seus olhos pensarem sobre aquelas distâncias, também esperando o dia nascer.
O vento uivava naquelas alturas, e parecia querer contar estórias. Então ela se deixou em paz a ouvi-las.
Em um momento voltou os olhos para Mercator, e viu que ele estava bem. Os ombros estavam caídos, o rosto um pouquinho para frente, parecendo estar tocantemente em paz.
Foi então que percebeu que, sem que se desse conta, Mercator havia se aproximado alguns centímetros dela, estando ao seu alcance. As mãos imensas dele estavam apoiadas na rocha, o corpo e o rosto um pouco fletidos para a frente, e ele parecia distraído e, até mesmo, feliz.
Arael sorriu maravilhada.
Então, sem pensar, pôs sua mão direita sobre a mão esquerda dele com imensa suavidade.
Ela quase se assustou quando sentiu os nervos da mão dele se enrijecerem numa reação súbita.
Sua atenção subiu ao máximo, o sangue pulsando em seus ouvidos.
Seu coração pulsou mais forte ao ver que ele não havia tirado a mão, mas que, lentamente, voltava a relaxar.
Então, num momento, ele estava como antes, em paz, aceitando a mão dela sobre a dele.
Ela não pode deixar de sorrir ao ver o quanto sua mão era pequena sobre a dele.
Arael o examinou pelo canto dos olhos e viu o momento em que ele a observou com um pequeno movimento da cabeça.
Arael podia jurar que havia carinho naqueles olhos que rapidamente se voltaram para as distantes montanhas.
II
Miguel inspirou demoradamente.
Não tinha como negar que estava comovido com aquela visão, como todos os que estavam ao seu lado. E, sem que houvesse anunciado ou chamado, em pouco tempo estavam dezenas de anjos ao seu lado, examinando a cena inusitada, com sorrisos bobos e esquecidos pendurados nos rostos.
Miguel teve que concordar que era uma visão tocante e comovente.
À frente deles, bem à frente, havia um gigante e uma pequena demiana de mãos dadas, vendo o nascer do sol.
- Que bom... Dois demônios que estão despertando – suspirou feliz. – Que caminho longo e incrível eles tiveram, e como o caminho foi duro e perigoso.
- Vocês dois sempre acreditaram neles – suspirou uma demiana, mantendo os dois sob vigília amorosa.
- Acho que Yeshua sempre acreditou mais que eu nesses dois demônios. Ele nunca deixou de acreditar, nem por um momento que fosse.