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A Escolhida.

Com a espada agora completamente escura, começo a correr para casa. Faço os meus máximos para não escorregar, mas percebo que a neve derrete-se à medida que a piso e a erva por baixo dela começa a perder a cor verde. Fica tal igual à minha espada. As árvores que antes formavam um túnel, agora pareciam desfazer-se em cinzas. Olho para trás, tudo aquilo parecia o resultado de um incêndio, mas não havia fogo.

Finalmente termino a minha corrida quando chego de novo à cidade, no local exato onde me tinha esbarrado contra aquele cão. Com a minha respiração ainda ofegante, volto o meu olhar para a floresta, e perplexa, observo com atenção o cenário diante de mim. A folhagem verde e a neve branquinha teriam desaparecido, tudo o que sobrava agora eram cinzas e partículas escuras que flutuavam no ar, tal como a magia pura que vi. Mas isto de longe era magia pura. Sinceramente, parecia mais o pó que tinha na cave debaixo da minha casa...

Suspiro e olho para a espada que tenho segurado este tempo todo. Felizmente esta área da cidade não era muito frequentada a estas horas. Geralmente só se via tanto movimento quando os adolescentes saíam da escola e vinham testar sua sorte, ou apenas tirar fotos com a estátua. Bem... agora era impossível. Ao ver que não tem ninguém por perto, agacho-me e deixo a minha mochila e espada no chão. Não vai ficar muito bem escondida, mas é melhor do que a levar na mão. Abro o fecho da mala e tento colocar a espada lá dentro.

Como é óbvio, o cabo fica de fora, mas melhor nunca conseguirei. Fecho o que consigo da mochila, volto a colocá-la às costas e começo então a andar para casa. O alívio no meu peito vem à tona ao ver que estou com neve nos meus pés novamente, e a cinza daquele local que caía sobre mim teria sido substituída pelos floquinhos de neve pousados na minha cabeça. Foi o suficientemente para me deixar com um sorriso no rosto, sorriso este que some ao me aperceber que estou à frente da minha casa.

A minha mão treme enquanto se aproxima da maçaneta. Não sei se é do frio, ou do facto de ter de explicar ao meu pai porque voltei para casa uma hora depois de sair para ir para a escola. Mas algo dentro de mim reconhia o motivo, e de longe era a primeira opção. Respiro fundo e rodo a maçaneta, pinsando o chão de casa e segundos depois fechando a porta.

"Hum... comecei a sentir-me mal disposta, por isso voltei..." Digo ao olhar para a sala, onde o meu pai continua sentado, agora com a caneca de café na mesinha à frente do sofá, mas ainda com o comando na mão.

No seu estilo habitual, não me responde, por isso decido ir logo para o meu quarto. Sem demoras, abro a mochila e retiro a espada, à procura de um lugar para a esconder. Os meus olhos percorrem o quarto, a cabeceira, o meu armário, a secretária... mas uma lâmpada acende-se na minha mente quando olho para a minha cama. Levanto com cuidado o colchão e coloco então a arma por cima do estrado. Agora sim, tudo estava bem novamente, e melhor ainda, tenho um dia livre de aulas.

Aproveito então para fazer o que faço melhor...deitar-me na cama a ler um livro. Pego no meu livro, deito-me debaixo dos lençóis, e começo a ler. Tendo a habilidade de magia negra, os meus pais sempre me incentivaram a conhecer as minhas raízes. Eles não gostavam do que eu era capaz, por isso os livros que me davam, ou até os filmes que me colocavam a ver tinham uma má conotação contra a magia negra. Mesmo assim, adotei uma paixão por ler tópicos de magia.

O livro que segurava nas mãos agora contava a história das estrelas, e como elas ajudaram a sua Deusa criar o planeta em que estamos. Supostamente, ela fez com que o universo, que ainda estava totalmente vazio, explodisse e criasse vários planetas, estrelas, e até buracos negros. Acho que é qualquer coisa "Bang"? Não sei, este livro é um pouco confuso para mim. Se ela fez os planetas e as estrelas, quem é que a fez?

Uns minutos se passam, e depois uma hora ou duas, e quando dou por mim, estou... naquela maldita floresta de novo? Não é possível, só pode ser um sonho! Mas é tudo tão real. As árvores em cinza, a neve derretida, a estátua partida. Mas a espada... a espada não está aqui. Procuro a minha mochila mas esta também teria desaparecido. Era só eu, o cenário sombrio e a figura da mulher, agora a olhar diretamente para mim. Tento fugir no sentido contrário, mas por algum motivo não consigo sair do lugar. Olho para a mulher, mas para minha surpresa, ela já lá não está.

"Como é que...?" Oiço a minha voz ecoar e a minha respiração ficar mais pesada.

O silêncio era intenso, com o único som a se ouvir sendo o meu fôlego.

Decido respirar fundo e fechar os meus olhos, certa de que quando os voltar a abrir, a estátua estará lá novamente. Abro os olhos. Nada. Pergunto-me o que está a acontecer, e ao virar-me de costas, sou subitamente levada para o meu quarto. Agora estou deitada, e diante de mim, em pé na cama, está a minha mãe a segurar a espada, que teria voltado à sua cor original.

"M-mãe?!"

Era impossível ela estar aqui. Ela estava morta, enterrada a seis pés de profundidade no cemitério da cidade. Antes de me poder sentar na cama, ela aperta o cabo da espada e, com um movimento mais rápido que podia prever, perfura o meu peito com a sua lâmina. Sinto meu coração disparar, e em pouco tempo acordo sobressaltada e com a minha respiração acelerada. Sento-me na cama e aperto o meu peito com força, tentado processar o sonho que acabei de ter.

"Kate, tem alguém à porta!" Não consigo pensar durante muito tempo, pois minutos depois, oiço o meu pai chamar-me.

Sempre que alguém batia ou tocava à porta, ele chamava-me para ser eu a abrir. Suponho que se fosse um ladrão ou algo parecido, o meu pai preferia que eu fosse assaltada. Isso ou adorava aquele sofá. Nesta situação, acho que são ambas as opções.

"Kate!"

"Vou já!" Grito de volta enquanto me levanto da cama.

Começo a andar até à entrada, e oiço alguém a bater à porta. O corredor por que passo dá para a sala, que em consequência dá para a entrada, já que estão na mesma divisão, e ao chegar, percebo que o meu pai teria baixado o volume da televisão. Talvez quer saber quem está no outro lado da porta, mas não é homem suficiente para abri-la e tem de pedir à filha. Oiço o bater novamente, três toques. Sinto os olhos do meu pai em mim, e sem sequer olhar pelo buraquinho, abro a porta.

A mulher perante mim era alta, com o cabelo negro longo e os olhos rasgados, a sua pele era clara e o sorriso que emitia era tão rosado como as flores no jardim da escola. Usava um vestido longo vermelho, com as mangas cortadas nos ombros, parecia até que não sentia o frio que estava. Mas o que mais me deixou curiosa foi a pedra que ela segurava na sua mão esquerda. Parecia um cristal, completamente branco, que brilhava mais que os postes da nossa rua. Era quase cegante.

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"Oh, peço desculpa!" Ao perceber os meus olhos quase fechados por conta da luz que emanava da pedra, a senhora tirou da sua pequena bolsa um lenço que colocou por cima da origem da minha futura cegueira. Agora, não brilhava tanto, já dava para olhar diretamente para aquilo. "Assim está melhor?" Aceno e volto a olhar para ela

"Então...o que a traz aqui?"

Sem responder, a mulher decide entrar em casa como se fosse dela e começa a analisar o local. Os olhos dela vão para a sala, depois para o corredor, depois para a cozinha. Vejo que o meu pai está agora de braços cruzados a observar a nossa visita, mas continua calado. Enquanto anda pela sala, ela olha para todas as nossas decorações, para a televisão, e muito provavelmente para o pó acumulado ao longo dos anos. Eu fazia a limpeza toda à casa. Não só isso, eu fazia tudo em casa, mas às vezes escapavam-me lugares, tipo a lareira que a senhora estava agora a ver.

Noto que algo ganha a sua atenção ao ver os seus olhos arregalarem com a visão da moldura à sua frente. É a moldura da minha mãe. Sempre que vejo aquela fotografia sinto um calor no coração que mais ninguém me consegue fazer sentir. É nítido que a senhora sente o mesmo, porque o seu sorriso fica mais pequeno, mas de certa forma, mais genuíno. Ela respira fundo e olha para mim novamente.

"Não era suposto estares na escola, menina?" Pergunta, levantando uma sobrancelha.

"E-eu senti-me mal disposta..." Tanto eu como as duas pessoas naquela sala sabemos que aquilo era uma mentira descarada, mas parece que ninguém quer saber. O meu pai continua neutro, e a mulher apenas diz um 'hm', e decide sentar-se na poltrona ao lado do sofá.

"Então explica-me porque é que esta jóia brilha da forma que brilha quando está perto de ti." Ao terminar a frase, ela atira a pedra mencionada para as minhas mãos e por pouco que não a apanho.

Com o súbito movimento, o lencinho que cobria a jóia cai no chão, deixando-me temporariamente cega de novo. Sem saber o que fazer, vou até ao sofá e coloco a jóia por baixo de uma das almofadas. Olho para a mulher novamente, as minhas sobrancelhas franzidas e os punhos cerrados.

"Já chega!" Grito. "O que é que você quer?! Quem é a senhora?! E o que raios é aquela rocha?!"

"Rocha?!" Ofendida com o termo, a mulher levanta-se e fica de frente para mim com o olhar de um dragão. Literalmente, as pupilas dela mudam completamente de forma e eu posso jurar que vejo fumo a sair das suas narinas. "Aquilo é uma das jóias mais raras do mundo! Como é que-"

Ela cala-se de repente, entrelaçando os dedos uns nos outros e deitando uma última bufada de fumo. Oiço-a murmurar enquanto abana levemente a cabeça para os lados, mas não consigo entender o que diz. Com um suspiro, ela continua:

"O meu nome é Chō Li Baker. Sou a diretora da melhor escola de magia do mundo! E esta jóia é de imensa importância, ok. E tu és...?" A atitude da aparente diretora muda por completo ao se apresentar. Talvez falar sozinha ajuda as pessoas ficarem calmas...

"Kate Garrison..."

"Bem, Kate, eu não vou atrasar mais isto." Sinto o olhar dela a penetrar o meu. "Sabes o que fizeste?"

Os meus olhos, tal como a minha boca, abrem, mas tento esconder o espanto.

Ela sabe. Ela sabe e é óbvio que ela sabe! Ela é diretora de uma escola de magia.

O meu coração começa a acelarar, a minha casa era agora uma sala de interrogação, iguais àquelas que vejo nos filmes policiais com o meu pai às vezes. Bem, eu vejo, pelo menos, ele fica a dormir bêbado no sofá. Sem saber o que dizer, olho para o meu pai que, consequentemente, também está a olhar para mim. A sua expressão diz mil palavras, ele está tão curioso como a senhora Baker para ouvir a minha resposta. Mordo o meu lábio a pensar no que poderei dizer para escapar desta situação, mas as minhas bochechas começam a aquecer no meio daquele frio e revelam que de facto estou a esconder algo.

"Foi o cão! O cão é que me levou para aquela floresta, ok?! E-ele disse- bem, não disse, ele é um cão, mas ele deu a entender que eu tinha de tentar tirar a espada daquele lugar!" As minhas palavras correm uma maratona enquanto falo. Agora já não dava para voltar atrás. "E a espada saiu e depois ficou tudo escuro e negro e-"

"Que espada?" Antes que me pudesse enterrar mais, o meu pai interrompe-me. Era sempre estranho ouvir a sua voz, especialmente quando esta era direcionada a mim.

"A espada da Escolhida." Sem me deixar responder, a diretora decide falar, e sinceramente, até prefiro assim.

O silêncio entra na sala como se tivesse chegado como última visita, e antes que ambas pudessemos dizer alguma coisa, oiço o meu pai a rir. O seu riso era de certa forma pertubador, já que não o oiço rir à 12 anos. Estou a exagerar, às vezes ele dá umas risadinhas para a televisão. Mas nunca para mim, nunca para algo relacionado a mim. Era estranho, era assustador, mas era bom finalmente ouvi-lo a rir como uma pessoa de verdade.

"Está a dizer-me que a minha filha, que ela" ele aponta para mim "é a Escolhida?" Questiona-se, claramente espantado, mas ainda entre risos.

"Sim, porque seria isso motivo de piada?" A diretora vê-se incrédula com a falta de apoio que o meu pai tem por mim. Fico calada. Nada que não esteja habituada.

"Com todo o respeito, diretora, mas a senhora está na casa errada."

"Como se atreve dizer isso quando a jóia-"

"A Kate tem magia negra."

E o silêncio volta. A diretora olha para mim, e por um milésimo de segundo, vejo os olhos da minha mãe, o momento em que descobriu que a sua querida filha possuí a "magia proibida". Eu sabia que ela nunca me discriminou, ela nunca teve medo de mim. Ela tinha medo das pessoas, de como elas iriam reagir. E acima de tudo, ela tinha medo que a próxima Escolhida, quem quer que ela fosse, tentasse terminar o trabalho incompleto da antiga. Ela sempre me protegeu, e o meu pai sempre protegeu esta família. Quem me dera poder dizer o mesmo atualmente.

"Isso é impossível..." A diretora sussurra, sempre com os seus olhos em mim.

"Foi o que disse." O meu pai responde.

"Por acaso..." Decido quebrar o meu silêncio. "Eu acho que é verdade."

Agora, os dois estavam a olhar para mim, ambos à espera de um resposta mais complexa para entender esta história toda. Suspiro e vou até ao quarto, onde retiro a espada debaixo do colchão. Ao voltar para a sala, os olhares já não estavam em mim, mas sim naquele artefacto mágico. Vejo a diretora a aproximar-se e a tirar-me a espada da mão bruscamente. Não contrario, provavelmente faria o mesmo se estivesse à procura da Escolhida e ela me aparecesse com a sua arma totalmente diferente.

"Porque é que ela está desta cor?! O que é que tu fizeste?!" Não era preciso olhar para ela para ver que estava aterrorizada. A sua cara, até a sua voz, parecia que tinha acabado de ver um assassinato à sua frente.

"Eu não fiz nada! Ela ficou dessa forma assim que a tirei da estátua."

"Posso ver?"

O meu pai estava agora em pé um pouco atrás da diretora, que lhe deu a espada. Ele começa a observar a espada, a examiná-la com cuidado. A minha ansiedade aumenta. Se ele não gostava de mim antes, então agora vai odiar-me de verdade ao perceber o que aconteceu à espada mais conhecida e mais adorada do mundo. Dá para cortar a tensão naquela sala com uma faca. Não sei quanto tempo se passa, mas estou cada vez mais ansiosa, com medo do que ele possa vir a dizer. É então que ele olha para mim, depois para a diretora.

"Isto é apenas uma teoria, mas..." ele pausa. "acho que esta espada foi corrompida pela magia da Kate."

Com a revelação, a mulher começa a arejar-se a si mesma e senta-se no sofá, como se estivesse quase a desmaiar.

"E quanta certeza tem dessa teoria?"

"Cem porcento. Já li muitos livros sobre magia negra, e se ela for forte o suficientemente... é, cem porcento."

"Mas como é que é possível?"

A diretora já não parecia tão assustada como antes, agora era simplesmente uma mulher confusa. Eu também sou. Isto é tudo confuso para mim. Volto a pegar a espada do meu pai, que não parece muito feliz com a ação. Devagar, sento-me ao lado da senhora Baker e deixo a espada ao nosso colo.

"Ela continua a ser uma espada, certo?" Digo com esperanças de conseguir aliviar o ambiente.

E continua de facto a ser uma espada. Pode não ser branca como antes, pode não deitar as partículas de magia que deitava antes, mas ainda dava para lutar com ela. Sinto que a diretora pensou o mesmo que eu, pois começou a acariciar a espada, o seu olhar sempre nela, e o sorriso sempre evidente, mas desta vez mais leve. De repente, ela olha para mim.

"Kate... queres estudar na minha escola?"

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